Thiago P. Majolo [i]
“Se me dão licença, queria dar minha opinião sobre isso”, pediu o taxista, interrompendo minha conversa com um amigo sobre o incêndio do Museu Nacional. E continuou: “Estão todos lamentando agora, mas como podem deixar um museu funcionar sem o aval de segurança básico? Como podem não ouvir as pessoas que trabalham nesses lugares e que estão sempre tentando avisar sobre os problemas? Desculpem, é só minha opinião”.
Confesso que no momento exato em que ele pediu a palavra, e antes de expor seu argumento, ouvi dentro de mim um pensamento de repúdio, que se pudesse colocar em palavras, seria mais ou menos assim: “Lá vem um taxista radical falar que é tudo culpa deste ou daquele grupo, que o Brasil é um país de ladrões, que tem que prender, matar, disciplinar etc.”.
Mas o que acabei ouvindo dele foi uma voz que se solidarizava com os funcionários das instituições culturais brasileiras e que, assim como elas, não aguentava mais ficar calado ou não ser ouvido. Tomou coragem, pediu licença para falar e, depois, um tanto humilde e um tanto irônico, desculpou-se por dar sua opinião.
Senti um misto de vergonha e tristeza. Vergonha pelo meu preconceito surdo e silenciador. Tristeza por me perceber fazendo parte de algo que abomino: a estupidez de uma batalha nacional entre lados armados apenas com discursos de ódio e intolerância e sem vencedores.
Quando o assunto foi retomado, depois de alguns segundos de silêncio, o taxista passou a participar da conversa e eu percebi que eu e meu amigo conversávamos em um tom de voz mais alto, a fim de incluí-lo no assunto. Por que antes conversávamos como se sussurrássemos um segredo ou um privilégio de fala que não estendíamos a ele?
Logo após o incêndio no Museu Nacional ouvimos o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, um representante do que podemos chamar de direita, falar em “recompor” o museu; também ouvimos, do outro lado da estúpida batalha, Gleisi Hoffmann, representante da dita esquerda, dizer que “o museu é mais uma vítima do golpe”. Não sei quem entende menos de História e patrimônio, ou quem é mais cínico.
A começar por esta última, que jamais se pronunciou sobre os sucessivos cortes na verba para o Museu Nacional quando era ministra-chefe da Casa Civil no governo Dilma. E o que dizer da fala de Crivella? Um acervo histórico não se recompõe, é insubstituível.
Os museus de um país não são apenas guardiões de objetos de valor histórico. Eles são, acima de tudo, o esforço de construção de um discurso nacional. Não são lugares neutros, depósitos, mas contém uma história em constante movimento que luta por incluir e, também, por excluir, pessoas e eventos do nosso imaginário coletivo. Ou será que seria apenas coincidência que bem no Parque da Independência o 7 de setembro reúna milhares de pessoas na frente do Museu do Ipiranga para comemorar o fictício grito de Dom Pedro I? Ou, então, podemos acreditar que foi apenas um mero descuido o fato do Brasil ter demorado séculos para ter um museu dedicado à cultura africana?
Essas narrativas estão impregnadas em todos nós, quer queiramos ou não. A construção histórica de cada museu insere no discurso coletivo elementos que nos representam e com o qual nos identificamos, incluindo e excluindo pedaços da memória e do imaginário.
É óbvio que o incêndio no Museu Nacional levou às cinzas um acervo gigantesco, valioso e também parte de significativa de um edifício histórico, mas não esqueçamos todo o campo simbólico e identitário que igualmente se queimou; não esqueçamos as narrativas que foram pulverizadas. São séculos de uma árdua - e agora ardente - negociação sobre o que é ou não representativo do nosso patrimônio nacional; são séculos de um campo simbólico e imaginário jogados às chamas.
O que parece tão impossível de acreditar e tão distópico é, no entanto, tão crível e representativo dos nossos tempos. Está diariamente na batalha estúpida entre lados que não negociam e que gritam de modo ensurdecedor apagando ou omitindo a própria história em nome da uma verdade ideológica; está em milhares de posts de facebook; em golpes e conluios escusos; em radicalismos exacerbados; em grupos de whatsapp; em brigas de vizinhos; na minha estupidez quase clandestina dentro de um taxi; está em milhares de taxis e pontos de ônibus, está em todos os lugares. É uma rachadura bem no cerne do país, como se o meteorito Bendegó – um dos poucos remanescentes do incêndio – tivesse se chocado com o Brasil em pleno Planalto Central, produzindo um incêndio que se alastra.
Este incêndio vem queimando há décadas as conversas e os debates. Vem queimando o que move a produção do simbólico coletivo. Agora, quando parece que não encontrou mais nada o que queimar, de tanto que já queimou, chegou ao real, ao concreto, ao museu.
A história desse incêndio merece espaço em um futuro Museu Nacional, ou em outros. E ela não é a história de um curto-circuito, ou o que quer que tenha produzido as primeiras chamas, mas sim a história de um projeto nefasto de país, com as muitas narrativas que o compõem.
No Museu Nacional nós tínhamos um projeto identitário, que foi reformulado ao longo dos séculos. Agora, temos que incluir nesse projeto a complexa narrativa de um incêndio criminoso, para que ele possa ganhar o distanciamento histórico necessário para ser analisado, revisado, elaborado e, assim, quiçá prevenir o horror traumático de suas chamas.
E que cada um se pergunte em cada ato que faça ou palavra proferida: estarei eu contribuindo genuinamente para negociar a construção de um projeto e um discurso de país ou apenas atirando mais lenha?
SOBRE O INCÊNDIO DO MUSEU HISTÓRICO NACIONAL
EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE
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[i] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em História Social pela USP, membro da comissão de Debates da Revista Percurso. E-mail: tmajolo@gmail.com.