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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    49 Abril 2019  
 
 
O MUNDO, HOJE

DIA INTERNACIONAL DA MULHER - MULHERES, CORPOS POLÍTICOS


MARIA EDUARDA HASSELMANN DE O. LYRIO SEARSON [I]

 
Neste mês comemoramos o dia internacional da mulher. A data de 8 de março foi oficializada pela ONU em 1975, embora a ideia de um dia internacional da mulher tenha surgido no final do século XIX e ganhado força através da organização política de mulheres, em diferentes partes do mundo, durante o século XX. Desde então, manifestando sua indignação com penosas condições de trabalho, bem como suas reivindicações por melhores salários, redução da jornada de trabalho, acesso à educação, não discriminação, direito ao voto e a outros direitos fundamentais, o dia foi instituído como símbolo da luta pela igualdade completa de direitos.


Ironicamente, nestas mesmas águas de março, completamos, com pesar e indignação, um ano da morte de Marielle Franco - mulher, negra, feminista, lésbica, vereadora da Câmara do Rio de Janeiro - assassinada brutalmente em um atentado junto a Anderson Pedro Gomes. Desde o início, as suspeitas apontaram para uma execução política: uma reprimenda e um recado frente a sua atuação focada em políticas públicas para as mulheres, negros e para os LGBTs, e na defesa dos direitos humanos, com denúncias aos abusos da polícia e críticas à intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Nesta semana, poucos dias antes do aniversário de sua morte, dois homens, um ex-PM e um PM reformado, foram presos como suspeitos autores do crime após uma investigação acusada de receber interferência e desvios de autoridades, revelando um cenário sombrio, e ainda não esclarecido, da intimidade obscena entre milícia, polícia e políticos de destaque nacional.

O Brasil é reconhecidamente um país violento. De acordo com 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o país registrou 63.880 assassinatos em 2017. As mulheres, socialmente reconhecidas como um grupo submetido a altos índices de violência no país, obtiveram o direito ao pleno exercício de voto apenas em 1934, sendo que até então eram explicitamente cidadãs de segunda classe, tendo sua representatividade e seus direitos cerceados pelos interesses masculinos. Ainda hoje, lutam para ter sua representatividade respeitada na política formal. Segundo matéria de O Globo de 07/03/2018, de Clarissa Pains, as mulheres compunham até então apenas 10,5% do conjunto de deputados federais e 16% do de senadores. O Brasil, de um total de 192 países, ocupava a 152ª posição do ranking de representatividade feminina na Câmara dos deputados, ficando atrás de países como o Senegal e a Etiópia, e tendo imediatamente à frente de nós o Djibuti (151ª posição) e Burkina Faso (150ª).

Vivemos ainda hoje em um país que cerceia, que intimida, que ameaça, que violenta, fere e mata as mulheres. Por que querem calar nossos corpos políticos?

A psicanálise, durante mais de meio século, como nos lembra Pedro Ambra, “constituiu-se como um saber privilegiado em relação ao corpo, pois a ela eram socialmente endereçadas as questões relativas à sexualidade” (AMBRA, 2016, p. 106), questão crucial para o sujeito na criação de uma pretensa identidade, que lhe daria uma percepção e um sentimento de permanência em meio a mudanças e de unidade em meio a diversidade. Hoje, contudo, reconhecemos que a psicanálise não está sozinha neste campo. Nas últimas décadas houve contribuições importantes, principalmente do movimento feminista e das ditas “minorias” sexuais, que produzem e circulam saberes próprios, assim como dos estudos de gênero, que se inserem também no campo da política pós-identitária, atravessando estudos culturais, a antropologia social, a sociologia, a filosofia, a arte e uma infinidade de outras práticas. O termo gender foi cunhado pelas feministas anglo-saxãs exatamente para distinguir o gênero do sexo. Embora não haja a pretensão de negar que a identidade de gênero, assim como outras, é constituída com e através de corpos sexuados, compreende-se que ela está, assim como as outras também, para além do organismo, porque somos seres de linguagem.

Essas contribuições dilatam os nossos horizontes, permitindo um diálogo com a teoria psicanalítica onde novas chaves de leitura da obra freudiana são criadas, reconhecendo movimentos teóricos de torção, contração e expansão da teoria, que instituem discursos por vezes contraditórios, como nos advertiu Mara Caffé na última edição da Percurso. Em termos foucaultianos, elas regulam, normalizam e instauram saberes, produzindo novas “verdades”. Na companhia de pensadores como Michel Foucault e Judith Butler e na interlocução da psicanálise com outros campos, novas aberturas são e continuam sendo criadas, sobretudo, a partir da necessidade de dar conta das novas subjetividades que surgem e que estão sempre em movimento. Como nos diz Lacan, é importante que o analista alcance a subjetividade de sua época.

Como poderíamos entender o movimento de luta encabeçado por mulheres? Não estaríamos diante de um paradoxo que, por um lado, reafirma o movimento de mulheres contra a opressão e a violência, como um movimento político identitário, ao mesmo tempo que o questiona e lhe subtrai sua identidade, como um núcleo duro de sustentação?

A identidade se apoia, dentre outras coisas, no corpo, e vice-versa. Ela se constitui através das experiências corpóreas, da mesma forma que imprime suas marcas e deixa seus rastros sobre a pele que abriga o corpo sexuado. O corpo, na psicanálise, é uma experiência de linguagem que instaura um corpo erógeno naquilo que antes era apenas organismo. É a partir de uma série de encontros (e desencontros) com o Outro, que se cria o corpo sexual . Como nos diz Laplanche, o “Sexual é o resíduo inconsciente do recalque-simbolização do gênero pelo sexo” (LAPLANCHE, 2015, p. 286).

Muito próxima a esta visão, Judith Butler defende que o corpo está submetido à linguagem, uma vez que a linguagem, nas palavras de Joana Plaza Pinto, “sendo performativa, opera, faz, e, sendo assim, o corpo é feito e efeito, sustentado e ameaçado pela linguagem”. (PINTO, 2014). O gênero é um processo deste corpo de linguagem, um “devir”, e não um estado ontológico do ser que simplesmente define ou estabelece uma essência. A teoria complexa de Butler trabalha a ideia de identidade como um construto performativo. O gênero é um ato, ou uma série de atos que estão sempre em movimento; segundo a filósofa queer e estudiosa crítica da psicanálise, “não existe um ator (um performer) preexistente que pratica esses atos, não existe nenhum fazedor por trás do feito” (SALIH, 2013, p. 65).

No entanto, Butler ressalta que a política só é possível no campo da representação, e o mundo fora da lógica fálica é impensável, estamos inevitavelmente atravessados por ela. Portanto, o caráter performativo das identidades são antes precipitados de reiterações aos quais supomos verdades (BUTLER 1990 apud AMBRA, 2016, p. 112) das quais não podemos prescindir inteiramente.

Durante as últimas eleições, foino eleitorado feminino que o atual Presidente da República, candidato de extrema direita, racista, misógino e homofóbico, encontrou significativa rejeição. As mulheres, que representavam 52% dos eleitores, impuseram uma espécie de trava no crescimento das intenções de voto durante a campanha eleitoral e encamparam uma série de manifestações contra o presidenciável. Através do contato e organização iniciais feitas pela internet no grupo Mulheres contra Bolsonaro, mulheres diversas se articularam e passaram a liderar um movimento autônomo e suprapartidário, representado pela hashtag #Ele Não, que levou milhões a atos públicos, em várias cidades, dentro e fora do país. Fato surpreendente diante de tanto silenciamento e cumplicidade frente às barbaridades proferidas durante a campanha eleitoral.

Mulheres contra Bolsonaro não se tratou de uma Marcha das Vaginas, nem se propôs a definir o que é a Mulher, ou as mulheres.

Os sujeitos que se envolveram com o movimento não foram apenas “mulheres”, mas mulheres de diferentes classes, raças, religiões, idades, etc., com identidades plurais, múltiplas; identidades que não são fixas ou permanentes, que se transformam, que podem, até mesmo, ser entendidas como contraditórias. Seu sentido de pertencimento, naquele momento, foi performativo. Um brilhante e colorido caleidoscópio protagonizado por mulheres, que estendeu a todxs um convite a um desenho plural, culminando com uma provocação jocosa neste momento crepuscular de nossa História. Ao lado de Mulheres, outros signatários de grupos identitários e performáticos partilharam do movimento de resistência: Homens unidos contra Bolsonaro; Mulheres e Homens contra Bolsonaro; LGBTs e sTBGL contra Bolsonaro; Negros e Negras contra Bolsonaro; Cristãos e Cristãs contra Bolsonaro; Judeus e Judias contra Bolsonaro; Ateu e Agnósticos contra Bolsonaro; Famílias unidas por causa de Bolsonaro contra Bolsonaro; Gatos contra Bolsonaro; Ornitorrincos contra Bolsonaro; Unicórnios contra Bolsonaro; Alienígenas contra Bolsonaro; Consumidores de cannabis contra Bolsonaro; Blocos do carnaval de rua contra Bolsonaro; Gente que não sabe flertar contra Bolsonaro; Probióticos contra Bolsonaro; Psicanalistas contra Bolsonaro.

Dom de quem é espirituoso, a brincadeira se alastrou, fazendo laço no tecido social ameaçado. Um gracejo divertido e necessário. Humor, que diante do trágico contagia o próximo e se reafirma enquanto desejo, diante do adverso. Humor que se materializa no riso de nossos corpos políticos e performáticos, multiplicando afetos como melhor resistência e luta ao horror, que antes julgado superado, agora se descortina despudoradamente.


20 de março de 2019

Bibliografia

AMBRA, Pedro. A psicanálise é cisnormativa? Palavra política, ética da fala e a questão do patológico. In: Periódicus, n. 5, v. I, maio-out. 2016, p. 101-120.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

CAFFÉ, Mara. Norma e subversão na Psicanálise: reflexões sobre o Édipo. In: Percurso 60. Ano XXX, junho 2018. Disponível em: http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=1298&ori=edicao

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber, tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 4ª ed – Rio de Janeiro – São Paulo, Paz e Terra, 2017.

LAPLANCHE, Jean. Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006 .Porto Alegre: Dublinense, 2015.

SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria Queer. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2013.

Internet:

Brasil tem menos parlamentares mulheres do que 151 países
https://oglobo.globo.com/sociedade/brasil-tem-menos-parlamentares-mulheres-do-que-151-paises-22462336

O percurso da performatividade. Artigo de Joana Plaza Pinto, 12 de junho de 2014. Originalmente publicado na Revista Cult.
https://colunastortas.com.br/o-percurso-da-performatividade/



[i] Psicanalista. Mestre em Psicologia social pela PUC/SP. Aluna do 4 oano do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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