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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    55 Setembro 2020  
 
 
CINEMA

MANCHESTER À BEIRA-MAR: CONSIDERAÇÕES SOBRE O LUTO[1]



Ana Lúcia Panachão[2]


A perda de um ser querido -por rompimento ou morte- provoca inicialmente uma desestabilização na economia psíquica do sujeito, exigindo um rearranjo dos investimentos libidinais que o enlaçavam ao seu objeto amoroso. Essa perda não se restringe apenas ao objeto que se foi; perdido o objeto, perde-se também o lugar que o sujeito ocupava para esse outro significativo.

O luto é o trabalho simbólico que se inicia para dar destino a uma perda real e que consiste em desligar-se aos poucos das representações do ser amado que não está mais presente, após intensificar a ligação com a memória de tudo que se refere a este. Demanda tempo e tem a função de proteger o psiquismo da desorganização causada pela perda. Não é um processo linear pois o sujeito resiste a desligar-se do objeto perdido. O afeto de tristeza permeia esse processo que se faz aos poucos e absorve o sujeito até que sua libido esteja novamente livre para investir outros objetos. Essa é a tese apresentada por Freud em Luto e Melancolia (1915 (1917)), sobre a qual se impõe a interrogação: terminado o trabalho de luto, seria possível ao sujeito restituir o lugar que ocupava antes da perda do objeto?

Nesse texto Freud parte do afeto do luto, que é um processo não patológico para descrever o que se passa na melancolia tomada como disposição patológica frente à perda de um objeto. Comparando os dois processos observa que apresentam os mesmos traços de desânimo profundo e doloroso, inibição de toda atividade, perda da capacidade de amar e suspensão do interesse pelo mundo. Na melancolia -diferentemente do luto- o sujeito apresenta um rebaixamento do sentimento de autoestima expresso por auto- recriminações.

Os rituais fúnebres fazem parte do trabalho simbólico de luto e realizam a separação entre o mundo dos vivos e dos mortos. Ao velar o morto, compartilhar lembranças dele com outros, falar sobre ele, chorá-lo, despedir-se, contorna-se o buraco deixado na existência pela perda e evita-se que aquele ressurja como fantasma.

O filme Manchester à beira-mar apresenta-nos dois processos diferentes de luto, que transcorrem paralelamente desvelando as vicissitudes que permitem num caso a elaboração da perda e, no outro, o impossível de realizá-la. Kenneth Lonergan, diretor do filme, habilidosamente convoca o espectador a acompanhar esse doloroso trabalho.

Lee, o protagonista do filme, leva uma vida apática e autômata a fazer pequenos reparos elétricos e a desentupir latrinas. A interpretação sensível do ator (Casey Affleck) nos dá a dimensão da indiferença de seu personagem pelo entorno: desligado do mundo e sem libido, provoca situações de violência contra si.

O trabalho de retirada da neve que impede a circulação cotidiana, mecanicamente repetido por ele, é interrompido pelo chamado que anuncia o risco de morte em que seu querido irmão se encontra. Lee dirige-se então a Manchester à beira-mar e, ao chegar, recebe a notícia de que Joe falecera há uma hora. O clima é de doloroso constrangimento.

A história ganha densidade quando Lee recebe a notícia de que Joe legou-lhe a função de tutor de seu sobrinho Patrick. Entre perplexo e visivelmente atormentado pergunta-se por que o irmão teria lhe imposto essa difícil tarefa.

Enquanto o advogado lhe explica os termos do testamento, ele se debate em lembranças que o remetem à outra cena, à situação de invasão traumática diante da perda de seus filhos num incêndio pelo qual se sente responsável. Luto impossível de ser realizado. Luto suspenso, sem palavras, que permanece como ferida aberta a sugar-lhe a vida.

Arrasado pela dor violenta retira-se de Manchester à beira-mar e vai viver isolado numa pequena cidade, encerrado num quarto-cela onde paga sua penitência.

O tema da perda e do luto ou sua impossibilidade envolve o espectador numa história sensível e bem construída sobre imagens contrastantes que dão suporte à narrativa:

A claridade dos dias de mar e céu azuis nos quais o irmão, ele e seu sobrinho partilhavam as alegrias de uma relação amorosa e íntima pescando no barco da família e a brancura fria da neve.

A recordação de um tempo em que desfrutava do convívio com os filhos e da relação amorosa com a mulher numa casa aconchegante e colorida e o presente vazio de sua vida destroçada e sem sentido.

O clima gélido da noite e o calor das chamas que destruíram seu futuro.

O sofrimento frente à descoberta da doença rara que abreviaria a vida de Joe -morte anunciada- e a dor sem nome diante da tragédia inesperada provocada pelo incêndio.

A ironia desconcertante diante do corpo congelado do irmão e os corpos carbonizados de seus filhos.

A ternura da despedida com um beijo e a impossibilidade de fazê-lo.

A densidade do drama se faz nos intervalos sem palavras, nas tensões de dores não admitidas, na angústia transbordante nos gestos contidos, na intensidade dos olhares e nos silêncios prolongados.

Na ausência das palavras, a trilha sonora sustenta as ligações entre o passado e o presente.

O processo de luto que se inicia com a morte de Joe desvela aos poucos o luto interminável em que Lee se enclausurou desde o acidente.

Com a morte do irmão, Lee se vê convocado a tomar decisões sobre o destino de seu sobrinho e sobre a cerimônia fúnebre.

Ele e Patrick são surpreendidos pela impossibilidade do sepultamento imediato devido ao rigor do inverno que tornou o solo duro e impenetrável. Os ritos fúnebres que demarcam a fronteira entre vida e morte e concretizam a perda real, ficam suspensos.

O filme transcorre nesse intervalo de tempo em que o morto, permanecendo insepulto, se presentifica mediando as relações entre os vivos com suas demandas e seu legado. Através dessa metáfora Lee entra em contato com o que durante anos não conseguiu sepultar.

Dessa forma Joe o faz reviver e remexer no que o transformou nesse morto-vivo para quem nada mais interessa. Enquanto aguardam meses, Lee e o sobrinho vão vivendo o cotidiano de uma relação tumultuada pela dor do luto. Patrick fala pouco de sua perda e consegue seguir sua vida em companhia dos amigos e namoradas, mas fica perturbado com a ideia do corpo de seu pai congelado e insepulto. Esse pensamento o assombra e faz irromper uma angústia intensa diante do freezer onde não consegue guardar os congelados, momento de humor sutil, que acaba numa eclosão de pânico. Lee, atônito, permanece perto do sobrinho.

Os mal-entendidos entre tio e sobrinho, seus enfrentamentos, a incerteza acerca do lugar que cada um deve ocupar, o constrangimento e a indecisão quanto à função de tutor, a dúvida de Patrick sobre seu futuro os aproxima. A convivência e o laço de ternura que os ligava desde sempre permitem novos arranjos entre os dois. A dureza do início se descongela com o passar do tempo. A vivacidade de Patrick, seus interesses, a ligação com os amigos, o desejo pelas garotas, a clareza de que quer permanecer com o barco de seu pai intriga Lee e o obriga a mover-se. Ele consegue escutar o que Patrick reivindica, o que deseja para sua vida, para suas relações... Compra um motor novo para o barco e ajuda o sobrinho com a garota.

Na cena comovente em que Lee encontra a ex-mulher, Randi, agora casada e com um filho pequeno, vemos aflorar a dor até então congelada no tempo que os arrancou de suas vidas e que os separou brutalmente. Nesse momento, as palavras entre eles se precipitam e agonizam na intenção mesma de se dizerem.

Na hiância aberta pela perda nada pôde ser simbolizado por Lee, nada que pudesse suturar esse buraco que engole a um só tempo seus filhos, seu lugar de pai, sua mulher e seu lugar de marido amoroso. Nesse encontro, o excesso daquilo que não teve destino e permaneceu suspenso apresenta-se na expressão de dor, nas hesitações, nas palavras interrompidas pela angústia do indizível, no insuportável diante do que Randi tenta em vão restaurar desculpando-se pelas palavras (mal)ditas lançadas sobre ele no calor da tragédia.

Aturdido e dilacerado, Lee se afasta dela e vai ao encontro de uma briga violenta da qual sai muito machucado. Descarga de uma dor sem mediação através da qual provoca a violência que o coloca como merecedor da punição e dá contorno ao seu sofrimento: deixa-se ferir no corpo para conter o que não consegue estancar na alma.

Ao ser cuidado pela mulher de George, finalmente deixa de resistir ao sofrimento e chora no colo dela; raro momento de fragilidade, de entrega, na qual abre-se uma pequena fresta a indicar uma saída do isolamento.

Segue-se um movimento psíquico que restaura a possibilidade de sonhar e restabelecer ligações entre representações que estavam desconectadas, permitindo alguma simbolização sobre o até então impensável.

Lee sonha com uma de suas filhas que o interpela: “Pai, não vê que estamos queimando?” O sonho o faz acordar num sobressalto, a tempo de evitar outro incêndio provocado pelo esquecimento de uma panela no fogo.

A cena do sonho, em que Lee é convocado pelo apelo da filha, é uma referência ao sonho descrito por Freud e que lhe foi relatado por uma de suas pacientes após tê-lo ouvido numa conferência sobre sonhos: um pai que estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo por dias e noites até a morte do menino, deixa um velhinho velando-o e retira-se para descansar no quarto ao lado, acordando sobressaltado com o chamado do filho: “Pai, não vês que estou queimando?” Provavelmente estimulado pelo clarão, o pai percebe que o velho adormecera e uma das velas caíra sobre o caixão e estava incendiando a mortalha que envolvia o corpo do seu filho.

Como no sonho relatado, o sonho de Lee pode ser interpretado como realização do desejo de, novamente, por alguns instantes ter os filhos vivos. Sobretudo, realiza o desejo de que pudesse ter visto o início das chamas, a tempo de evitar a morte deles. Em seu relato à polícia, diz que no trajeto que o afastou de sua casa ocorreu-lhe um pensamento a respeito de ter ou não colocado a tela na lareira, gesto simples que conteria as brasas espalhadas sobre o tapete, mas não voltou para verificar. Acusação que ele se faz e se representa no sonho pelas palavras da filha.

Finalmente, após concluírem as exéquias, Patrick e o tio caminham juntos conversando e jogando um para o outro uma bolinha; nesse momento mais descontraído -e carregado de simbolismo-, Patrick pede ao tio que lhe pague um sorvete.

Para Lee, permanece um resto inelutável que não comporta substituição alguma. Ao admitir a impossibilidade de superar o luto pela perda dos filhos compreende que está impedido de realizar o desejo de seu irmão e decide juntamente com Patrick que ele ficará aos cuidados de George e sua esposa, até completar a maioridade. Assim, Lee consegue deslocar-se um pouco do lugar mortífero em que se encontrava. Esse movimento se expressa no filme pela mudança para um apartamento de dois quartos que o possibilitará receber a visita do sobrinho.

A esperança de Freud de que o laço com um objeto pode desfazer-se depois do intenso trabalho de luto e retornar como libido livre para enlaçar novos objetos, embora alentadora, não pode ser alcançada totalmente. É impossível de sustentar. Os objetos não são intercambiáveis.

Judith Butler, por sua vez, faz uma importante consideração a esse respeito: “Elaborar um luto não implica esquecer alguém ou que algo mais venha a ocupar o seu lugar, como se devêssemos aspirar a uma substituição completa. Talvez um luto se elabora quando se aceita que vamos mudar à causa da perda sofrida, talvez para sempre”.

O próprio Freud irá rever essa ideia de substituição do objeto ao longo de sua obra e pela qual foi criticado por alguns autores que a consideravam produto do espírito do romantismo da época.

Ao sofrer a perda de sua filha Sophie, afirma em sua correspondência que perante a morte de um filho há algo impossível de ser substituído. Anos depois, ao enfrentar outro luto pela morte de seu neto, filho de Sophie, declara aos amigos que essa perda é muito difícil de suportar e que não se lembra de haver experimentado jamais uma dor tão grande. Afirma trabalhar por pura necessidade e descreve que, fundamentalmente, tudo perdeu o significado. Escreve aos amigos que a morte do neto levou consigo uma parte de sua alegria de viver e que foram os dias de maior pesar em sua vida e que, quando finalmente se tranquilizou, já conseguia falar do menino sem lágrimas, embora continuasse afirmando que “o auxílio da razão não serve”. O trabalho de luto deixa sempre um resto não simbolizável.

Apesar dessa perda profunda, Freud seguiu construindo a Psicanálise até o final de sua vida, em 1939.

O rearranjo da libido conquistado após o trabalho de luto ter sido concluído -se é que esse trabalho termina- não restitui ao sujeito o mesmo lugar de antes da perda.

O processo de luto desencadeado pela morte de seu irmão permitiu a Lee se deslocar do amortecimento, que o defendia de entrar em contato com seu sofrimento e reconhecer que a perda de sua mulher e a realidade da morte de seus filhos o tornou, para sempre, outro.





[1] Originalmente apresentado na II Jornada Crítica literária e Psicanálise, FFLCH-USP, outubro de 2018.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae: docente do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea desde 2002 e articuladora da área de Transmissão, Pesquisa e Intervenções Externas do Conselho de Direção deste Departamento, gestão 2019-2020.




 
 
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