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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    58 Abril 2021  
 
 
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CASHCOEUR MALLARMAICO: UMBIGO DO SONHO DE CAICÓ ARCAICO[1]


MARIO I. MAZEU [2]



Ah! Caicó arcaico, em meu peito catolaico, tudo é descrenc ̧ a e fé
Ah! Caicó arcaico, meu cashcoeur mallamaico, tudo rejeita e quer
é com é sem, milhão e vintém, todo mundo e ninguém, pé de xique-xique pé de flor
relabucho velório, videogame oratório, high-cult simplório, amor sem fim desamor
sexo no-ie ̂ , oxente oh! Shit, cego Aderaldo olhando pra mim, moonwalkman [3]



Quanta beleza pode emanar de um poema? E o que dizer então daquilo de belo que uma poesia oculta? Amá-la pelo que nela se apaga. Quando ouço os versos geniais que Chico César canta em A prosa impúrpura do Caicó, o faço sorrindo. Esse paraibano de Catolé do Rocha brinca com as palavras numa bricolage espirituosa de neologismos e paradoxos, ricos e inusitados estrangeirismos. Sua arte ajuda a edificar nossa humanidade. Porém, a angústia vem a galope; a saber, da exclusão, por parte da maioria esmagadora, de quase tudo o que é esteticamente belo, o que só aprofunda a ruína do ser humano contemporâneo atirado no mais profundo vazio existencial. O consolo veio da lembrança daquilo que Bataille nomeou de “parte maldita”: o erotismo, a poesia, a exuberância que não serve para nada. É o jogo, o excesso, algo para além do utilitário que fabrica o humano. Enfim, a arte é esse dispêndio improdutivo.

Nos contrastes entre Caicó e Cairo, Chico brinca com a realidade da qual canta, essa que ele rejeita e quer. Sua prosa impúrpura é brincadeira de esconde-esconde: descrença e fé, milhão e vintém, todo mundo e ninguém, amor sem fim e desamor, high-cult e simplório. Oxente oh! shit, entre o happy end da comédia de Woody Allen [4] e a “vida real” numa cidade do sertão do Rio Grande do Norte, encontramos o caráter antropofágico do ato criativo, que deglute e tece novos sentidos, novos sabores. Um exemplo desse jantar de culturas está no encontro de Michael Jackson e Cego Aderaldo. O moonwalk, a famosa coreografia do cantor e dançarino norte-americano, quando pronunciada com o delicioso sotaque nordestino, abre margem para outras escutas, outros sentidos, como: “No walk man”: não ande, cara, avisa o cego olhando para mim. E fica ainda mais interessante quando esse cego é o famoso poeta repentista cearense que se destacou por seu raciocínio rápido improvisando rimas.

Ah! Caicó arcaico, são tantos os elementos lúdicos que brilham nessa composição. Os neologismos – sexo no-iê – e as condensações de elementos opostos – catolaico – nos arrancam sorrisos pois lembram o brincar infantil. “Talvez possamos dizer que toda criança, ao brincar, se comporta como um criador literário, pois constrói para si um próprio mundo” [5], escreve Freud num pequeno grande artigo de 1908. É na fantasia que conectamos passado e presente pelo fio do nosso desejo e podemos nos distanciar da realidade, acessando nosso mundo interno, e... sonhar. Winnicott, um autor fundamental para a compreensão da função da criatividade na produção artística, enuncia que, “para controlar o que está fora, há que se fazer coisas, não simplesmente pensar ou desejar, e fazer coisas toma tempo. Brincar é fazer” [6].

É célebre a afirmação do pai da psicanálise de que os poetas já chegaram com suas obras ao lugar a que ele chegou muito tempo depois, a partir de seu método de livre associação. Desde o momento em que, afetado pelo discurso histérico, Freud inicia sua pesquisa pelos caminhos do psiquismo humano, a literatura é referência constante. Edmundo Gómez Mango, autor de Freud com os escritores, assinala que Freud “fez do poeta um dos interlocutores primordiais de sua obra reconhecendo na poesia um acesso privilegiado à verdade psíquica” [7] . É no diálogo com Sófocles, Goethe, Shakespeare, Dostoiévski, Flaubert, Schiller, Cervantes, Schnitzler, entre tantos, que Freud confirma sua invenção mais cara – o inconsciente. Poetas e romancistas possuem a “coragem para fazer seu próprio inconsciente falar” [8], afirma Freud em texto de 1910.

Na poesia de Chico César, as imagens sonoras vão compondo uma paisagem onírica onde Caicó e Nova Jersey do filme se (con)fundem assim como no sonho. O poeta solda as palavras uma a uma numa miríade de significados tal e qual no trabalho do sonho, a ourivesaria da/na linguagem. Não é à toa que Mallarmé, poeta máximo do Simbolismo francês dá as caras na prosa de Chico.

Em sincronia à descoberta do inconsciente, Mallarmé inaugura uma nova escrita em que o poeta não busca ser compreendido e tampouco essa compreensão tem qualquer influência sobre a causa e a necessidade do poema. Nas suas próprias palavras, a escrita, “quem a realiza, integralmente, se retira da cena” [9]. Eis o sujeito do inconsciente. Algo se escreve para o sujeito da fala. Como se o sujeito estivesse assentado sobre algo, como o cavaleiro está sobre o cavalo.

O psicanalista Joseph Attié, autor de Mallarmé, o livro – Estudo psicanalítico, indica na produção de sua escrita uma depuração do imaginário, inscrevendo seu estilo poético nas bordas do real. Se a obra de Mallarmé é tida como hermética, é porque ela visa à expressão do impossível de dizer, no limite da linguagem, aquilo que não cessa de dizer a impossibilidade de dizer.

Certa vez, Degas, o pintor impressionista, pediu à Mallarmé algumas boas ideias para escrever um soneto. “Não é com ideias que se faz sonetos, Degas, mas com palavras”, respondeu o poeta. Assim como em Caicó Arcaico. Chico César valoriza a letra como objeto. Sabe que a escrita não vale tanto pelo que diz, mas pelo que ressoa. E o resultado é uma enunciação que aponta ao fracasso da linguagem.

A prosa impúrpura do Caicó é um exercício de torção da linguagem que implica revirar do avesso as palavras até o esvaziamento quase total do sentido. E essa é a arte posta em causa por Mallarmé: “esse é o jogo louco da escrita [10] ”. Ao desconstruir o sentido original do cachecoeur, a blusa feminina que envolve e agasalha romanticamente o coração, Chico faz emergir um resto, um cashcoeur com S de dinheiro vivo em inglês, de globalização, de mercado de capitais, que Caicó rejeita e quer. Um quase sem significado. Uma fissura denunciando a insuficiência da palavra, que supera, ultrapassa o limite da representação. Cashcoeur mallarmaico está à beira do abismo da significação. E, paradoxalmente, abre trajetos para significações diversas, quase infinitas. É uma palavra-valise, como define Delleuze, plena de incompletude, que escapa do campo semântico, lançada para fora.

Esse lugar em que a palavra oscila entre o total esvaziamento e a violenta profusão significante também existe nos sonhos. O nome que Freud deu a esse lugar inacessível foi “umbigo do sonho”: um ponto no sonho que resiste à interpretação, insondável. Encontramos a referência no capítulo “O esquecimento dos sonhos” na sua obra de 1900, onde diz que o umbigo do sonho “é o lugar no qual ele se assenta no não conhecido” [11].

Aí está o ponto mais próximo do Unerkannte freudiano, do não-reconhecido, onde se interrompe toda a possibilidade de sentido. Cashcoeur mallarmaico é o “umbigo” do sonho de Caicó arcaico. Essa fusão de palavras, de cerrado emaranhado de pensamentos e violenta condensação semântica aponta para o impossível de todo discurso. Quer dizer o que não se pode dizer de nenhuma maneira. Que é inacessível e faz marca.

Freud o nomeia de cicatriz. Lugar que, para o campo da palavra, o acesso é impossível. Em Estrasburgo em 1975, frente à pergunta de Marcel Ritter sobre o Unerkannte, Lacan chama a atenção para a audácia de Freud de “dizer que se tem em algum lugar, a marca no sonho mesmo. A marca daquilo que foi excluído do recalque primordial, ponto de onde sai o fio, mas também é um ponto fechado, a que não se acede, que deixa marcas no corpo” [12]. Se o umbigo do sonho é um índice do limite da escritura, ele é, ao mesmo tempo, sua condição: o ponto de onde o sonho brota “tal qual um cogumelo de seu micélio”, explica Freud.

O umbigo, a cicatriz do cordão no qual o sujeito se encontra suspenso ao Outro materno, é um orifício que se enodou [13]. A pulsão está sempre ligada aos orifícios do corpo. Nós somos seres esburacados, apoiados sobre aquilo que será sempre inacessível, que se perdeu no corte do nascimento. Trazemos o resto desse enodamento no corpo, a matriz simbólica capaz de fazer laço e inaugurar a entrada na linguagem. A prosa impúrpura do Caicó vai de encontro com o real que não cessa, o pulsional.

Referências:

ATTIÉ, J. (2013). In Mallarmé, o livro - Estudo psicanalítico, Forense Universitária.

FREUD, S. (2019). O esquecimento dos sonhos. In Obras Completas Volume 4,
Companhia das Letras. Texto originalmente publicado em 1900.

FREUD, S. (2015). O escritor e a fantasia. In Obras Completas Volume 8,
Companhia das Letras. Texto originalmente publicado em 1908.

FREUD, S. (2013). Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem.
In Obras Completas Volume 9, Companhia das Letras. Texto originalmente
publicado em 1910.

LACAN, J.; Ritter, M. (1975) Resposta de Lacan a uma pergunta de Marcel Ritter.
26 de janeiro de 1975, Estrasburgo.

MONDOR, H. (1914). In Vie de Mallarmé, Gallimard.

PONTALIS, J. -B. & GÓMEZ MANGO, E. (2014). Nota sobre o Dichter.
In Freud com os Escritores, Três Estrelas.

WINNICOTT, D. (1975). O Brincar (Uma exposição teórica).
In O Brincar & a Realidade, Coleção Psicologia Psicanalítica, Imago.
Publicado originalmente em 1971.



[1] Originalmente apresentado como monografia para o 1º ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, em 2020.
[2] Psicanalista, aluno do 2o ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.
[3] A prosa impúrpura do Caicó; Chico César, em Aos Vivos, 1995.
[4] No filme A rosa púrpura do Cairo.
[5] FREUD, S. (1908) O Escritor e a Fantasia, p. 327
[6] Winnicott, Donald. O brincar e a realidade, 1975, p. 62-63.
[7] Gómez Mango, E. (2012). “Nota sobre o Dichter”. Em Pontalis, J.-B. & Gómez Mango, Freud com os escritores
[8] Freud, 1910/2013, Um tipo especial de escolha de objeto feita pelo homem, p. 335.
[9] Mondor, H, Vie de Mallarmé, p. 481.
[10] Mondor, H, em Vie de Mallarmé, p. 481.
[11] Freud, S, A Interpretação dos Sonhos (1900/2019), p. 575.
[12] Lacan, J.; Ritter, M. (1975) Resposta de Lacan a uma pergunta de Marcel Ritter.
[13] Ibíd



 
 
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