André Magalhães Teixeira[1]
Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos.
Winston Churchill
Durante os dois últimos debates presidenciais (Rede Record, 28/09/2014 e Rede Globo de Televisão, 02/10/2014) assisti às manifestações explícitas, quase pornográficas, dos pensamentos do candidato Levy Fidelix (PRTB). Ouvi e vi aquilo como quem passa por um acidente automobilístico na estrada: vê confusão, sangue e deformação da matéria; e, horrorizado, reduz a velocidade da direção contemplando lentamente com o olhar fixo na cena. Psicanalista, pensei: “São assim as coisas da pulsão. Somos capturados pelo horror”. Não seria simplesmente mais fácil fechar os olhos e não ver o acidente?
Logo no início do
Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa nos diz que o diabo existe e não existe. Há uma sabedoria no significante. Vimos o nosso Levi ser leviano no debate e, ao fazê-lo, revela seu desejo do Leviatã (Hobbes). Devemos admitir que o homem, o sr. Fidelix (homófono
Fidelis, do latim, fiel), aparenta ser fiel a suas convicções. Quando propõe que os diferentes dele deveriam ser tratados – mas longe de si -, aproxima-se perigosamente do conceito de “invertidos”, corrente no século XIX para uma psicopatologia da homossexualidade. Parece cumprir uma sina inescapável do seu nome: Levi, lido invertido é ivel, homófono de
evil (do inglês, adjetivo: diabólico, mal, maldade, perversidade, corrupto). Mas ainda bem que não existe mesmo esta coisa de sina...
Não é possível manter os olhos cerrados, pois não podemos tolerar os intolerantes sem colocar em risco de destruição nós próprios e a própria tolerância (Popper). Este episódio não pode ser tratado como simplesmente algo caricato, grotesco ou apenas de mau gosto. Lembremos que se trata de um postulante ao mais alto cargo do Executivo do país e que, como ficou evidente até para os ouvidos menos treinados, o conteúdo manifesto na fala não é ideia ou tese sujeita a críticas e debates. O candidato apresentou os pressupostos de seu pensamento, sua visão de mundo. Portanto, como pré-supostos, não são sensíveis à reforma no embate saudável ou ao arejamento decorrente do – igualmente saudável – encontro com opiniões divergentes.
Assim, com a devida licença, venho opor-me a tais pensamentos por tê-los como daninhos, nocivos, absurdos e perigosos. Obviamente sei que aquelas ideias encontraram acolhida em outras mentes e, sinceramente, este não é o problema. Como psicanalista, ouço de um tudo. Para o sujeito há espaço para as mais perversas fantasias. Seu foro é o divã. A questão é que a manifestação de tais ideias (discurso de ódio), por quem foi (candidato à Presidência da República), no veículo em que foi (cadeia nacional de televisão) e onde foi (debate, um espaço consagrado ao jogo democrático de discussões de teses), poderia estimular, em quem comunga de tais ideias, a suspensão do recalque. Como nos lembra Goldenberg, o coletivo é o epicentro das ações políticas e a psicanálise ocupa-se justamente da complexa relação do coletivo com o particular. Falar ao outro gera consequências, portanto falar é um ato político e ético.
Inventamos o Estado Democrático de Direito para proteger as liberdades individuais de todos contra agressões dos outros e do próprio Estado. A democracia é sustentada pelo Contrato Social (Rousseau), cuja consequência óbvia é a limitação na liberdade individual como garantia da própria liberdade individual. A Carta Magna protege o direito à liberdade de expressão, conquistado no Brasil a duras penas. Esta mesma Carta reza que quem abusa deste direito deve responder por suas palavras. Já fomos todos advertidos que a Civilização é alicerçada na renúncia pulsional (Freud). O limite no gozo é que torna possível o laço social (Lacan). Quem quer falar o que pensa, sem censura ou recalque, está ao lado do despotismo ou da loucura. Aqui não me ocuparei desta, mas, para o bem do próprio Estado Democrático de Direito, Levi deverá ser chamado às consequências de sua fala, pois não existe liberdade absoluta. Se há transigência na responsabilização, estamos mais perto da perversão, tanto do Estado quanto da subjetividade. O Pacto Edípico é mantenedor do pacto social, e o afrouxamento deste contrato provoca distorções, por vezes nefastas, no particular e no coletivo (Calligaris).
Não é admissível liberdade total de expressão, assim como não existe plena satisfação pulsional. Uma certa frustração na satisfação das pulsões e uma certa limitação na expressão do pensamento, com a decorrente liberação de um certo mal-estar, é estrutural, não conjectural (Freud). O destino civilizatório é político, pois nossa opção é pela
polis, e implica no desenvolvimento de modos de lida com o mal-estar inerente ao contato com os outros e com suas diferenças. Cada um, ao seu modo, fará esta jornada. O inconsciente, com suas formações, é consequência da perda de gozo (Braunstein). Esse é o preço pessoal que pagamos pela liberdade de sermos seres falantes. Ao coletivo cabe o incremento de sistemas e instituições que favoreçam a implicação do agente no seu ato. É o correlato social da direção de tratamento apontada pela psicanálise: implicar o sujeito na sua fala. Levy, ao reivindicar liberdade de expressão, massacra toda ética que suporta - na mais ampla acepção do termo: aguentar, resistir, segurar, carregar, experimentar com resignação, sofrer com paciência, tolerar, aturar, conviver pacificamente (Houaiss) - as diferenças.
O discurso manifesto extrapola a liberdade de expressão pela violência que contém em seu ventre. Um discurso que anula as diferenças tem efeito de anular as subjetividades e atiçar o Leviatã. Isso, no extremo, autoriza e legitima uma biopolítica na qual o Estado pode governar até os corpos (Foucault). Só há sujeito entre as diferenças (dos significantes), e o inconsciente é a resposta pessoal ao limite no gozo. Vejo com preocupação a ferocidade que potencialmente pode ser liberada pelo imaginário das massas quando o estrangeiro, o bárbaro, o diferente é sinal de ameaça à própria existência (Freud). A fragilidade narcísica tenta anular a diferença avivando a máxima sartriana de que o inferno são os outros.
Nestes tempos em que a imagem é tão forte, em que o imaginário se sobrepõe, gostaria de ter visto no debate o que Ítalo Calvino desejava para a palavra escrita: leveza e consistência. Não é possível a sociedade banalizar o que foi dito como apenas rude, exótico ou até engraçado. Como mencionei acima, não foi exposta uma tese, e sim um modo de ver o mundo. Caso escamoteemos enquanto sociedade a verdade contida no dito, conviveremos um pouco atônitos na paralisia neurótica com manchetes como essas: dois irmãos, que estavam abraçados, foram espancados na saída de um bar por oito pessoas; um dos irmãos foi a óbito. Em sua defesa, os agressores falaram que os haviam confundidos com
gays.
Gay pode? Um índio foi queimado vivo e foi a óbito. Em sua defesa, os agressores falaram que o haviam confundido com morador de rua. Morador de rua pode? Uma mulher abordada e espancada na rua. Em sua defesa, os agressores falaram que a haviam confundido com uma puta. Puta pode?
Ouvi os cacos do debate na clínica. Tenho vários analisandos
hetero, homo, bi, poli... Aquela fala teve efeitos até nas pessoas cuja orientação sexual não estava, por ora, em questão na análise. Sexo, linguagem e inconsciente estão sempre juntos e os ensinamentos da psicanálise, renovados diariamente na escuta clínica, nos ensinam que não há relação natural ou normal entre os sexos. Sexo, na nossa espécie, pouco tem a ver com macho ou fêmea (Diamond). O encontro possível passa necessariamente pelo reconhecimento da heterogeneidade (diferença, ver o outro como outro), e isso não é nem biológico, nem natural. É a inexistência de relação sexual (Lacan) derivada da castração que fundamenta a ordem sexual. A proibição de o sujeito gozar de si mesmo - ou seja, ser castrado - introduz a marca da falta que abre espaço para o campo do desejo e do Outro. Penso que o horror que tocou muitos é devido ao fato de a ameaça de castração ser um sinal visto primeiro no outro, depois em si (Freud). Ver, ser visto, fazer-se ver é o circuito pulsional que nos leva de um outro ao Outro, como quer Lacan.
Aquela fala chama ao inconsciente, ao primitivo da castração. Se a castração está lá, ela está aqui... se uns podem suspender o recalque, ou ter direitos sem limites, e não responder por isso, estamos todos perdidos! Lacan dedicou todo um seminário à angústia. Dele podemos tirar que o desconforto causado pelo mero sinal da suspensão da castração leva à falta da falta, ao horror de estar diante do Pai da Horda Primitiva (Freud).
Toda subjetividade e toda a Cultura são sustentadas pela articulação do Pacto Edípico (castração) com o Contrato Social (Lei). O vício de uma leva à perversão da outra, sem determinação do que vem primeiro, ao modo da banda de Moebius. A manutenção de ambos, Pacto Edípico e Contrato Social, está alicerçada no mesmo lugar: na necessidade particular e coletiva de respondermos todos por nossas palavras e atos. Sermos levianos ou transigirmos sobre este ponto nos levará à inefável repetição. Vamos sempre optar por assistir paralisados velhos e novos acidentes?
______________________________
[1]Psicanalista. Doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília; mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (2006); graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000).