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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    47 Setembro 2018  
 
 
ESCRITOS

OLHOS


RUBIA DELORENZO[i]



Disse o doutor: “Vamos tirar o líquido espesso do vítreo. Depois introduzimos o soro. Depois ainda o mercúrio, para que tudo se cicatrize. E, por fim, injetamos o óleo que vai manter a membrana colada. Esse óleo selará a película, fina como o celofane”.

Esta noite sonhei com banheiras brancas que transbordavam de água corrente. Vi antigas ruínas. Seus bolsões de pastilhas pálidas, ao lado da argamassa vazia, sugeriam istmos, estreitos, baías... Sonhei com as termas itálicas e suas banheiras de água tépida, de água quente, de água fria. Vieram depois, as tormentosas águas roseanas, aquelas que provocam correnteza feroz, selvagens águas de arrancamento. E, ainda nessa mesma noite, senti a umidade das águas do Mekong, lamacentas, fundas, contrariadas, mas que alcançam e banham as plantações de arroz. Tanto as calmas como as coléricas, forçavam para escorrer através da fresta semi-aberta dos meus olhos.

Na primeira semana soube que, por meses, não poderia nadar. Mas, curioso... Navegante, quase náufraga em perigosas águas de entranhas, em mim, seguiu-se grande tristeza.

Sonhei com coisas secas: com desertos sem oásis, chão de terra gretada, com galhos mortos. Também vi, em sonhos, redes de veias tão finas que não podiam servir à passagem de qualquer líquido, mesmo na forma volátil do vapor. Sonhei com paisagens lunares, espaços sem gravidade, um mundo sem oceanos.

Neste primeiro tempo, meus olhos vagavam desencontrados. A visão dupla das coisas trazia para dentro de mim, um mundo de desvario, anti-acadêmico. Padronagens sem nexo, arestas trêmulas, objetos sobrepostos, dilatados pelas sombras que os esticavam a partir das bordas... Imagens torcidas, angulares, cubistas... o mundo? Retrato de Nusch Éluard.

Com os olhos tão fora do equilíbrio, experimentei ouvir histórias. Aprendi como nunca a escutar, na voz do intérprete, os sons, os murmúrios, os silêncios da aventura humana. Estavam ali revelados a densidade da vergonha e do medo, o peso do remorso, o constrangimento da confissão. Ouvia-se também a grande inquietação do amor. E o tom sábio e irreverente de quem conheceu o feitiço da vaidade e da dor.

Um belo conto de Clarice, “Restos de Carnaval”, veio acompanhar minha longa espera e dar contornos a uma enigmática apreensão. A história fala da cobiça da menina, seu fascínio por carnavais e máscaras, seu sonho antigo de ser outra, vivido com muita alegria ao vestir o traje recortado no crepom. A superfície enrugada, crespa do papel, dava volume ao figurino e a cor, rosada, emprestava um rubor às faces da menina, traindo sua enorme agitação. Tudo se passa no tempo de um intervalo ansioso, onde muito acontece: êxtase, melancolia, “o coração escuro” e por fim, a salvação de um olhar que a reconhece.

Reencontrei­-me, então, com esses materiais de armarinho, esses papéis finos tão versáteis, o celofane, o crepom, tão próprios à feitura dos cenários das festas de aniversário como à das fantasias de criança. O celofane, o reencontrei, como se sabe, por sua fina espessura, na metáfora do doutor. Despreguei-me logo dos olhos. Grudei na palavra celofane, na imagem translúcida do papel. Como ele enfeita com seu brilho, como enobrece o presente! Pena que se rasgue tão facilmente. O crepom, também como se sabe, chegou até mim, pela novela narrada em meio aos restos de carnaval.

Então, sonhei...

Sonhei que voltava ao trabalho depois de prolongada ausência. Tempo de um intervalo ansioso, ocioso, onde muito acontece.

Em meu devaneio noturno vi uma figura branca de mármore. Vi sua perfeição na pedra lisa. Mas vi também, no relevo, seus olhos vazados de estátua.

Depois, na cena onírica, lá estavam meus analisandos. Dos bastidores, eu os observava. Iam ganhando aos poucos uma estranha configuração. Seus traços desconstruídos por contornos sem simetria, seus olhos elípticos e tão desalinhados desenhavam-se como os meus próprios olhos me pareciam. De agora em diante, eu os veria assim, conheceria a deformação produzida por suas máscaras. Mas intimamente, eu temia. Minha alma colada à da menina do conto, sofria. O tempo fechado ameaçava. E se murchassem os paramentos de rainha? Como ela, pensei: com o belo volume estufado do crepom, então desfeito pela impiedade da chuva, veriam meu corpo reduzido, a descoberto, só de combinação?

Acordei.

Retomo o trabalho nesta tarde.

Vamos ver.

Maio - 2018



[i] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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