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ARTE
DE RÉ, NA CONTRAMÃO DA INDIFERENÇA
CRISTINA BARCZINSKI [1] Eu confundo um pouco o que é arte com por que sou artista. É quase uma ferramenta, um modo de você ter acesso a alguma coisa - uma coisa que parece mais verdadeira que outra. E é você fazer com que aquilo a que você tem acesso, tenha corpo, não seja uma coisa que passa, que vai embora. Nuno Ramos
Nestes tempos bizarros de tão sombrios, a presença de um artista como Nuno Ramos funciona como um organizador poderoso. Já no começo do ano, ele publicou um desabafo[2] sobre o momento aterrorizante em que estamos vivendo, no qual uma crise sanitária evidencia a desigualdade, e é praticamente saudada por um presidente justamente por seu efeito mortífero, sobretudo sobre as classes populares. Vocês estão com medo de quê? pergunta Messias. O retrocesso nas políticas públicas construídas ao longo de anos de nossa frágil democracia, o abandono da saúde e da educação são golpes que não cessam de indignar aqueles que têm um mínimo de apego àquilo que se entende por cidadania.
A ideia de fazer de uma obra de arte a marca de um tempo, dando-lhe um cunho político, é bastante presente na produção de Nuno Ramos. Entre vários comentários de críticos de arte sobre ele, uma palavra insiste – inquietação. Inquietação tão imensa, que a busca de meios para expressá-la transborda as formas tradicionais. A pintura, a escultura, a escrita, o vídeo, a instalação, entre outros, são recursos de que o artista lança mão. Em 1992, por exemplo, montou em Porto Alegre uma instalação com lápides com o nome dos 111 presidiários mortos por ordem da polícia do governador Fleury, na invasão da casa de detenção do Carandiru, instalação à qual o artista adicionou recortes de jornal e um texto de sua autoria. Vale dizer que ele propôs para a Bienal de 2012, que os nomes destes presidiários fossem lidos por 24 horas e após o julgamento dos agentes penitenciários e policiais, já em 2016, este ato foi transformado num vídeo transmitido pela internet e assistido por um milhão de pessoas, marcando a presença destes mortos[3].
Desta vez, num ano trágico em que se sobrepõem uma pandemia e um presidente incapaz de cuidar da população, a proposta inicial veio do Teatro da Vertigem que, com um longo histórico de intervenções urbanas de caráter artístico e político[4], foi convidado a se apresentar na 11ª Bienal de Berlim. A princípio esta performance se daria em Berlim, no bairro de Weggen, onde o grupo teatral se apresentaria numa igreja pentecostal local. Com o impedimento de viajar devido à pandemia, foi necessário refazer o projeto, desta vez com a colaboração de Nuno Ramos.
Esta parceria implicada organizou um ato contra o reacionarismo e a incompetência do governo Bolsonaro e contra sua total indiferença em relação às mortes causadas pela Covid-19. Já que os rituais fúnebres, fundamentais para a elaboração do luto, para a despedida de nossos queridos, estão interditados, a proposta foi a inverter a “marcha triunfal da violência e da obtusidade” a que estamos submetidos e criar uma inversão, um golpe de karatê, segundo Nuno Ramos. Um grupo de 120 carros desceria um trecho da avenida Paulista de marcha a ré, seguiria pela rua da Consolação, estacionando diante do cemitério da Consolação, em cujo portal seria exibida uma reprodução de um dos nove desenhos da Série trágica: minha mãe morrendo (1947), de Flávio de Carvalho [5], em que o artista registrou os últimos momentos de sua mãe. Em seguida um trompetista, no alto do mesmo portal, tocaria o hino nacional de trás para frente.
Ao chegar no local combinado, atrás do MASP, local marcado pela arte e pela política, esperamos uns quarenta minutos até que a avenida fosse dividida em duas mãos e a carreta pudesse entrar. Numa cidade em que se busca incessantemente vias de acesso mais rápido, éramos um grupo que voluntariamente se enfileirava, esperando em silêncio. Aquele engarrafamento solidário já estava na contramão de nossa constante impaciência urbana. A esta altura fomos instruídos a ativar em nossos celulares um fundo sonoro - o som angustiante de um respirador e um monitor cardíaco em uma UTI. E foi com este som, amplificado em alguns carros, que entramos na avenida, numa procissão. Era quase como se pudéssemos ouvir nossos próprios corações acelerados pela gravidade do momento. Depois de mais algum tempo parados, em fila dupla, finalmente fomos liberados para andar de marcha a ré. O evento não fora divulgado, justamente para evitar aglomerações, então eram os pedestres e os ciclistas que passavam espantados, tentando entender a cena que tensionava o espaço, naquilo que Nuno Ramos intitulou um gesto público de luto.
Vários organizadores, vestidos com macacões e máscaras brancos, buscavam orientar os motoristas, caminhando por entre os carros. Um deles o próprio Nuno Ramos, um improvisado e gentil guarda de trânsito, cuidando para que a procissão não acabasse se transformando num engavetamento. Era preciso seguir lentamente ao som das máquinas da vida por um tubo.
Finalmente entramos de ré na Consolação, mais um desafio. Um ou outro pedestre se informava sobre a performance e gritava um reconfortante “Fora Bolsonaro!”. Ultrapassaram o cortejo dois carros funerários que faziam parte do grupo, estacionando em frente ao cemitério. Finalmente paramos diante do pórtico de entrada principal. Vários motoristas saíram de seus carros, de máscaras, quietos e visivelmente aliviados. O portal foi iluminado e subitamente desceu um rolo de tecido ali pendurado com a reprodução do desenho de Flávio de Carvalho. Todos ali presentes sabíamos deste roteiro, mas quando realmente aconteceu, foi um susto. Se a inevitabilidade da morte e nossa impotência diante dela está presente nesta série de nove desenhos a carvão – e por isto despertou tanta indignação na época -, o fato de estar lá e registrar este momento representou a despedida do filho Flávio de Carvalho de sua mãe, D. Ophélia Crissiúma de Carvalho, e a possibilidade de iniciar um trabalho de luto. Como afirma Freud, em Luto e melancolia (1915), este trabalho se dá quando “as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido”.
A quase total desritualização da morte que nos é imposta, tanto por razões higiênicas quanto pelo aumento exponencial das mortes, sobre o qual o poder público tem responsabilidade, atropela este processo de um modo tremendamente violento. A isto se junta a indiferença, o obsceno “E daí?”.
Finalmente, o trompetista no alto do portal começa a entoar a melodia de nosso hino nacional, frequentemente presente em manifestações de caráter fascista. Porém, tocado ao revés, gerava um estranhamento, como se cada um de nós buscasse reconhecer algum tema, sem sucesso - um hino desconstruído, assim como um caminho civilizatório que se supunha garantido. O estranhamento a que muitos se referem, quando, diante de mais uma notícia absurda protagonizada por um novo e sinistro personagem, se perguntam: “Mas afinal, onde estavam estas pessoas?”
No entanto, a cena toda, acompanhada num respeitoso silêncio pelos participantes do Teatro da Vertigem, por Nuno Ramos e todos nós, filmada por Eryk Rocha, representou a força elaborativa de um ritual, uma homenagem aos mortos e suas famílias, um velório que expressa publicamente dor e indignação através da arte. Um ato de resistência.
Sim, estamos vivos e a maioria de nós ainda não renunciou a um sonho feliz de país. [1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do Curso Clínica psicanalítica: conflito e sintoma e integrante dos grupos de trabalho Sexta clínica, A cor do mal estar e Medicações psiquiátricas em análise, e da equipe editorial deste Boletim. [5]Aliás, Flávio de Carvalho, um dos artistas homenageados pela 11ª Bienal de Berlim, inspirou a própria marcha, pois em Experiência n.2, em 1931, juntou-se a uma procissão religiosa de Corpus Christi no centro de São Paulo, andando desafiadoramente no seu contrafluxo. Sobre a série de desenhos, recomendo o ótimo ensaio de Veronica Stigger, “Retratos dentro da morte: a Série trágica de Flávio de Carvalho”, disponível no link http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/critica-cultural/0402/040201.pdf.
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