PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    56 Outubro 2020  
 
 
ESCRITOS

FICÇÃO PARA UMA CENA EM VERMELHO


SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO [1]



Minhas primeiras recordações estão imersas no vermelho. Saio por uma porta nos braços de uma menina, o chão à minha frente é vermelho e à minha esquerda desce uma escada igualmente vermelha. À nossa frente, à mesma altura, abre-se uma porta e aparece um homem sorridente que, alegre, vem em minha direção. Ele se aproxima bem, pára e me diz: “Mostre a língua!”. Mostro a língua e ele leva a mão ao bolso, tira um canivete, abre-o e põe a lâmina bem perto de minha língua. Ele diz: “Agora lhe cortaremos a língua”. Não ouso recolher a língua; ele se aproxima cada vez mais, até quase tocá-la com a lâmina. No último momento ele recolhe a faca e diz: “Hoje ainda não, amanhã”. Ele dobra o canivete e o guarda no bolso.
Elias Canetti, A língua absolvida



Um menino tem, de uma cena, os indícios, a inscrição de traços de uma lembrança difusa, imersa no vermelho. Vermelho cor de escada e pátio, vermelho vibrante das excitações pulsionais experimentadas junto àquele casal antecipado: uma menina-ama de quatorze anos, um moço sorridente que mora ao lado. Um vermelho feito a cor do sangue que jorraria na realização da ameaça de corte feita à língua exposta?

Seus dois anos de vida fazem supor uma ameaça igualmente antecipada. A antecipação de uma ameaça possibilitaria dizer de seu potencial traumatizante: um psiquismo em constituição não estaria preparado para ela. O efeito traumático silenciaria um menino que, por necessidade e por amor, já havia feito certas renúncias pulsionais harmonizantes - o mundo já não lhe era primordialmente ocasião de incorporação, era também lugar de expressão significante. Sua capacidade linguageira estaria suficientemente articulada.

A experiência também poderia dizer-se estruturante: é fato que a criança teme, mas ela não ousa recolher a língua; aguarda, aliás, as sucessivas ocasiões de mostrá-la. O que a criança guarda é a história. Será preciso contar com o tempo: “Hoje ainda não, amanhã”.

Elias levará toda a latência para afinal dirigir-se à amada mãe. Falará a ela aos 12 anos, sob nova pulsação, quem sabe ocupado em começar a ressignificar toda a sorte de ameaças anteriormente sentidas. Podemos imaginá-las: “tira o dedo da boca”, “pára de fazer xixi na cama”, “faço uma mágica que te rouba o nariz”, “vaca amarela...”, “fica quieto, menino, vou cortar sua língua”. Assassinato e incesto nem amanhã, pode esquecer...

Não mais um menino seduzido pelo vermelho – que incorpora, domina, impõe. Agora um homem alteritário – que fala, lê, escreve. O homem trapaceia com a língua, que desvia, humanizada. Forja outros mundos - não à faca e sim à pena. Faz-se ensaísta, romancista. 60 anos depois de falar daquela cena, Canetti publica a história de uma juventude. O título da primeira parte da trilogia autobiográfica do Nobel de literatura é: A língua absolvida. Não se fez mais segredo de suas histórias.





[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/