CAMILA FLABOREA [1]
Provavelmente, de todos os nossos sentimentos, o único que de fato não é nosso é a
esperança. A esperança pertence à vida, é a própria vida se defendendo.
J. Cortázar
Durou pouco este encontro. Dois dias, mais precisamente. Terminou no dia 10 de fevereiro, no meio da manhã.
Vou colocar assim: ficava imaginando quando ela chegaria, quando iríamos novamente compartilhar daquela intimidade tranquila, corriqueira, que alegra os dias despretensiosamente.
Aos poucos, as fotos foram chegando. Uma pessoa, depois outra e mais outra e, por fim, tantos queridos vacinados com a primeira dose! A convocação aos psicólogos com mais de sessenta anos foi atendida em massa. Estarão de volta ao fronte, ao corpo a corpo com os pacientes, em segurança. Orientador, professor, amigo, colega. Todos vacinados - e ela me tomava o coração... a esperança chegava novamente depois de um tenebroso inverno.
A esperança é material escasso para quem se informa a respeito do rumo das políticas públicas no Brasil bolsonarista. Imaginem vocês que maravilha foi esse reencontro.
Mas não demorou quase nada a vir de chofre a realidade e me tirar do meu idílio.
O artigo publicado na Folha de São Paulo pelo jornalista Marcelo Coelho me causou um tremendo mal-estar. Confesso que de início titubeei: minha alegria, minha esperança era então ilegítima? Estava compactuando com uma ação sórdida de privilegiados que decidiram furar a fila?
Li e reli a reportagem e não conseguia articular meus pensamentos, era só aquele mal-estar no estômago quando o vídeo de Maria Silvia Borghese veio me resgatar. Tive o privilégio de ter sido sua aluna em minha formação e sua clareza continua impecável.
Ela chamou a atenção para a real discussão a ser feita: a discussão da política pública do PNI que deve definir a prioridade da prioridade em tempos de escassez de vacina. Se eu pudesse, dizia ela, teria pego minha dose e oferecido a alguém outro, um coveiro, pessoa em situação de rua, em privação de liberdade, a um professor… muitos que eu conheço teriam feito isso. Tinha vontade de responder a ela: Eu sei, Maria Silvia, eu sei!!
E foi aí que compreendi o que se passava, por dentro e por fora de mim.
Será que chegamos ao ponto de entender que as políticas públicas precisarão ser integralmente substituídas por ações individuais? Devem todos os psicólogos, convocados a se vacinar, pegar suas doses e sair em marcha oferecendo a quem é ainda mais vulnerável?
Vamos demonizar uma classe de profissionais, a da Saúde Mental - lidando com sequelas graves da pandemia – por que não conseguimos discutir de modo eficaz e civilizado a organização de um plano de vacinação e suas prioridades?
Os tempos estão tão confusos que me vi à beira de desconfiar que minha esperança era negacionismo, era indevida, que prejudicava alguém. Resistir a essa avalanche tem sido um duro exercício diário. A tal era da pós-verdade, com sua guerra de narrativas, não é para iniciantes no mundo. É preciso fincar os pés e pensar, todos os dias, a todo momento.
Percebi que minha desesperança estava comigo mais uma vez. Em contraste com a alegria pela segurança de alguns, a tristeza dos tempos que vivemos. Os inimigos são eleitos levianamente, e mudam a cada dia. São tempos de furar fila, de doses que não são aplicadas em idosos (forjando a vacinação), são tempos de farinha pouca. Nesse caso, meu pirão primeiro. E quem for chamado para recebê-lo que não eu, será meu inimigo, o demônio do dia.
A alegria da esperança foi ceifada - antes mesmo do carnaval chegar - pela realidade sombria de tempos rudes na esfera coletiva e subjetiva.
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante da equipe editorial deste Boletim.