Nayra Ganhito[1]
Uma lembrança, é algo que se tem,
ou algo que se perdeu?
Woody Allen
A exposição que descerrou à população de São Paulo o antigo Hospital Matarazzo após 20 anos de clausura - e agora prestes a sumir do mapa - rendeu algumas polêmicas e muito sucesso de público. Interditado em 1993 pela Vigilância Sanitária, o Hospital Umberto Primo, que por quase um século assistira curas, mortes e nascimentos na cidade, caiu no esquecimento, alheio às mudanças que aos poucos aconteciam à sua volta. Em plena região da Paulista, seus 27 mil metros de pavilhões, pátios e densa vegetação verde-escura tornaram-se invisíveis. Agora, seu corpo depauperado pelo abandono foi tocado por quase 100 artistas contemporâneos, metade deles brasileiros[2], e seus portões se abriram para uma última visita pública antes da “renovação” do espaço, em um acontecimento especialmente breve: 35 dias e mais três de lambuja, que mal deram conta das filas que acorreram à ruazinha Rio Claro. Muitas obras especialmente concebidas para a ocasião terão um destino tão efêmero quanto as paredes que cairão em breve.
Estranhamente intitulada
Made by...Feito por brasileiros e organizada sobretudo por estrangeiros, um outro paradoxo marca sua própria razão de ser: expõe e valoriza este pedaço de nossa história no momento mesmo em que anuncia a sua extinção. O projeto para o conjunto arquitetônico - cujo grau de destruição ainda é objeto de especulações - é um mega-empreendimento que promete combinar um hotel de luxo com vários espaços dedicados à cultura, a chamada Cidade Matarazzo[3]. Deste ponto de vista, toda a concepção da exposição resultaria numa grande hipocrisia. Idem quanto ao patrocínio de empresas privadas que praticamente assinam as obras ao lado dos artistas.
No entanto, foi por outra porta que entrei neste edifício de 1904, aberta pelos relatos de dois analisandos em sessão. De certa forma, fui ali procurar o olhar deles, intrigada com os efeitos que, tão singulares, confluíam em um ponto essencial: o forte caráter de
experiência vivida durante a visita, sensível em suas falas e minha impressão,
a posteriori, de que o encanto vivido então marcou uma certa inflexão em suas vidas, referida à possibilidade de encantamento de outros objetos. Pois, chegando à sessão diretamente da mostra, a moça amarga e ressentida do amor exibia uma luz que nunca dantes; o rapaz que após seus anos
“bivolt” entre o nada e “o gás da mania” habita agora uma duração mais perto da neurose, declara: “Você precisa ir”. Do velho hospital, fala dos longos corredores e da projeção que mostra centenas de vasos de plantas sendo jogados das janelas do prédio para romper-se contra o cimento do pátio interno[4]. E lá ficaram, como podemos ver, tentando emplacar alguma semente naquele chão árido. Ambos jovens de 40 anos, vidas improváveis à procura de um solo possível onde enxertar-se.
Minha visita se deu num sábado ensolarado. Logo ao transpor os muros, ainda nos jardins de árvores centenárias, derrapamos em uma espécie de curva do tempo. A viva instalação de Arne Quinze, à entrada, nos convida a entrar no misterioso hospital desativado, enquanto notamos sutis intervenções no espaço externo, como os braceletes de miçangas gigantes pendurados nos braços das árvores. Ou as palmeiras feitas em borracha de pneus (patrocínio Pirelli), tão orgânicas que demoramos a perceber seu caráter de simulacro[5]. A sólida presença dos edifícios, no entanto, domina o espaço-tempo e fartos miasmas emanam de suas paredes, atingindo nosso sensório. Pressentimos que o lugar é habitado, e não apenas por quem o visita, celulares à mão. Talvez fosse esse impacto do real o que convocou tantos à necessidade de registrar, fotografar, compartilhar a experiência – numa sessão de análise ou nos meios de hoje, nas redes sociais. Este grande boca-a-boca fez o sucesso da iniciativa.
Em uma das primeiras salas do prédio, vemos no espaço vazio dois triciclos antigos e uma placa: “Para uso exclusivo de crianças e neste corredor.” Mais tarde, uma outra paciente, após breve silêncio ao deitar-se no divã, dispara: “Você foi na exposição do Matarazzo? Notou aqueles triciclos iguaizinhos ao do filme
O Iluminado?” – e cai na gargalhada[6].
Distribuídas pelos vários cômodos, entre os quais distinguimos os quartos reservados à internação - os restos de banheiros contíguos a essas peças evidenciam ainda mais a permanência humana -, obras dos vários artistas conversam com as paredes.
Não há restauração, tudo se encontra em estado bruto de mutação temporal, de degradação que às vezes remete à putrefação: as paredes descascadas, a ferrugem em portas, janelas e corrimões, o cheiro de mofo e umidade, a papelada dos arquivos mortos usadas nas obras, a flora que quase invade as amplas janelas de uma arquitetura da saúde, da doença e da morte que também já desapareceu. Tantos corpos e almas ali estiveram, provando destes limites. Muita tuberculose, penso eu. Mas a dimensão destes prédios de apenas dois pavimentos, que precederam os arranha-céus e depois as medonhas torres de hoje em dia, era ainda humana - há algo de sedutor na ideia de uma estadia ali em épocas passadas. Impossível não pensar na
Montanha Mágica de Thomas Mann.
Muitas obras são intervenções no próprio corpo deste espaço em si mesmo tão eloquente - finado, finito, mas aberto a metamorfoses. Organicidade no gesto do artista, que desenhou e mexeu e raspou concretamente paredes, tetos, portas, janelas e chãos, como tomado por um chamado irresistível. A mão contemporânea aqui não busca evidenciar um contraste entre as épocas, mas atualizar
aqui e agora o espírito das coisas que povoaram o lugar e daqueles que se foram. O velho e deteriorado ganha energia e vitalidade através da arte, abrindo nosso olhar para significados ocultos das edificações.
Finos traços em preto sobre a parede branca descascada desenham uma formação frondosa, árvore fantástica que alcança e invade o teto. No outro extremo do quarto começa a desfazer-se, as folhas em queda livre viram minúsculos corpos que escorrem e deságuam numa poça de tinta negra: o sangue, o vômito, os fluidos corrompidos do corpo doente na obra de Charley Case.
No corredor, o ponteiro de um enorme relógio, sugerido apenas pelas letras maiúsculas em metal que marcam as horas, gira lentamente, e quando finalmente achamos o que escrevem em seu círculo perfeito, lemos:
S-I-L-E-N-C-I-O[7].
Os amplos, longuíssimos corredores que outrora ligavam as alas hospitalares são um espetáculo à parte que percorremos a gosto, tateando nosso caminho no espaço labiríntico. Aqui e ali nos deparamos com passagens obstruídas por material de arquivo - necessariamente morto no hospital já sem vida: histórias clínicas, vidas passadas em papel empilhado, amontoado, socado, já auxiliado por arcaicos computadores. São as obras do artista Wang Du, que obteve texturas, formas e cores insuspeitas dessa espécie de lixo hospitalar.
O visitante explora e se perde pelos muitos recantos até as entranhas do edifício: elevador de porta pantográfica, escada imponente em mármore, corredores que terminam em salas escuras, pouco ar e pouca luz, janelas semicerradas. Em conversas com amigos, percebemos que em nossos díspares trajetos coisas nos escaparam, outras descobrimos.
Em meio a outro corredor, um vídeo mostra a artista sino-brasileira An Xiaotong traçando a pincel, no mesmo chão de cerâmica vermelha em que pisamos, sua caligrafia oriental. Escrita que, feita de água reservada em um balde, tão logo se revela, evapora e seca, desaparece. A jovem imigrante fala com naturalidade também oriental sobre a impermanência, a escritura evanescente de nossa passagem no planeta.
Massas, volumes e matérias sugerem o corpo humano, sua carne: em um quarto nu, amontoada sobre um leito hospitalar, enfaixada em grandes pacotes[8]. Ao contrário, figuras humanas incorpóreas surgem do jogo de luzes e sombras, os fantasmas e assombrações dos que fizeram a história do lugar. Muitos artistas tentaram capturar essas presenças vindas do além que se insinuam aos nossos sentidos. Mas o fantasma pode ser nosso contemporâneo - a figura projetada de um jovem se atira repetida e inutilmente contra o muro que fecha o longo corredor. Prisioneiro, parece lutar, desesperado, para voltar ao presente[9].
Quando finalmente alcançamos a primeira saída para o ar livre, respiramos, celebramos a vida: seus antigos jardins, a tinta amarelo-velho dos edifícios sorriem no sol sutil de meio de tarde. Mas logo, depois de fumar um cigarro ou deixar-se estar ali neste intervalo subjetivo, atravessamos o pátio atraídos pelo ruído contínuo vindo de um pavilhão mais escuro e mais degradado – água caindo, muita água, nestes tempos de escassez. Pessoas debruçadas nos blocos intermitentes de vidraças baixas e estreitas espiam um interior subterrâneo e misterioso. Também nos inclinamos para alcançar, descobrir o que se esconde nestes porões. Aos pedaços, descortinam-se dois amplos ambientes revestidos de azulejos, separados mas contíguos. No primeiro, o teto chove como por goteiras impiedosas a água que inunda o chão e que cheira a cândida e desinfetante. Patrocínio Sabesp, creio eu. Estamos na lavanderia, essa grande máquina que lava, limpa, desinfeta e esteriliza e que bufa um vapor de sauna nas entranhas dos hospitais[10].
Alcançamos o segundo ambiente; apenas discretamente úmido e mais nítido sem a cortina de água. Tampouco tão escuro, reflete uma luz branca sob a qual se distinguem macas e pias do mesmo azulejo antigo azul claro que reveste as paredes. No movimento de tentar ver, passamos também a escutar os aflitos murmúrios e cantilenas agourentas da sonorização de José Miguel Wisnik. Ventiladores antigos agitam panos brancos suspensos que se transformam em espíritos errantes e inquietos. Num efeito entre o tragicômico e o sinistro, de repente nos damos conta: “é o necrotério”, se diz à boca pequena[11].
Escapando da captura desses mundos subterrâneos, vemos surgir à altura dos nossos olhos o muro devastado pelo tempo de uma escada e seu balcão. Profusas gotas de parafina escorrida, alaranjada e suja acentuam a sua decrepitude e emprestam-lhe um formidável ar gótico – restos de uma festa, obra coletiva e anônima.
Seguimos por uma apaziguante aléia no jardim, ladeada por arcos xilogravados em preto e branco, santos ou anjos católicos na
naïf e levíssima versão nordestina de Juraci Dorea. No final abre-se um enorme pátio-jardim, dominado pelo edifício separado da maternidade, imponente e luminoso como cabe ao lugar de aristocráticos nascimentos, tendo como madrinha a Condessa Filomena Matarazzo. Contrastante com os outros em sua fachada conservada e clara, do seu interior fechado à visitação vemos apenas o nobre saguão em mármore, através das vidraças. No outro pólo do pátio avistamos a capela, graciosa com seus vitrais azul turquesa, mesmo com a instalação de carros acidentados montada ao seu lado[12].
E assim, neste clima de ascensão pós-queda parece que terminamos, satisfeitos, nossa peregrinação. Pois embora o visitante experimente algo de sinistro em seu percurso, e mesmo em seus momentos mais escuros, em geral sorri, se encanta e se diverte, numa viagem temporal que não deixa de conter o lúdico. “Não dá medo e nem causa estranhamento passear ali dentro, apesar de abandonado durante tantos anos o lugar tem algo de muito bom”, viu-se na necessidade de avisar uma jovem blogueira[13].
No entanto, após tudo, voltando ao presente desse cenário improvável, algumas indagações agitam nosso espírito.
Por que razão esse espaço-tempo cuja atmosfera afinal remete à morte de várias maneiras tem o poder de re-encantar por um momento o mundo de quem o visita? Diante do luto impossível de uma outra paciente, como me acorressem insistentemente imagens da mostra recém-visitada, me permito comunicar-lhe isso que me acontece ao escutá-la. No dia seguinte, encontro a seguinte mensagem escrita no meu celular: “Saí da análise ontem e fui à exposição. A tristeza de ontem foi sendo acompanhada de uma experiência muito bonita. Obrigada pela ‘indicação’, foi precisa!”. Enquanto sujeitos afetados, penso na especial qualidade daquilo que é efêmero, cujo fascínio provém de sua natureza perecível (Freud) e cujo desfrute, que implica a aceitação das finitudes da vida, descerra seu potencial metafórico, sublimatório.
Como cidadãos, lembramos que o patrimônio que acabamos de conhecer tem um fim anunciado. Como aceitar agora que ele desapareça? Não há Plano Diretor a salvá-lo da demolição? Mais, ainda: teria o mesmo apelo caso não estivesse em vias de desaparecer? Ou até mesmo: nascemos mesmo na época correta? Uma certa nostalgia de um tempo não vivido nos leva a lamentar agora a iminente extinção. Celebrada e promovida como um ganho para a cidade, com seus vários centros culturais que dariam impulso e abrigo à criatividade, serão os arquitetos dessa “memória do futuro”[14] sensíveis à manutenção da aura, do silêncio, da memória deste lugar?
Nos damos conta de que simultaneamente perdemos e ganhamos alguma coisa – um ganho de outra ordem, que não é material. Não se esquece facilmente um passado que desconhecíamos e que se nos revela; ele agora nos pertence, tornou-se parte do nosso patrimônio simbólico.
Ao procurar o que registrei nas fotos que tirei naquele dia, percebi que meu olhar paulatinamente fixou-se nas janelas: nuas ou vestidas de antigas venezianas nas fachadas; entreabertas ou escancaradas na visão de quem está dentro, internado talvez, emoldurando um lá fora. Multiformes em seus desenhos e tamanhos. Em suas possibilidades de abertura e fechamento, de fazer luz ou sombra, de mostrar ou esconder. Nos reflexos etéreos de suas vidraças, filtrados pela poeira. Belas em suas formas deterioradas, inusitadamente alteradas, deformadas, arquitetadas pelo tempo. Em sua qualidade de transportar-nos um pouco além, ao mostrar outros cômodos, os pátios ajardinados, os pavilhões vizinhos. Passagens, travessias, deslocamentos: de um espaço a outro, de uma época a outra, de um sentido a outro, do presente que é o acúmulo de passados para um futuro desconhecido que de certo só sabemos ser finito.
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[1] Psicanalista e psiquiatra. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso de Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea e integrante da equipe editorial deste Boletim.
[2] A mostra reuniu nomes da cena contemporânea mundial, como Adel Abdessemed, Moataz Nasr, Jean-Michel Othoniel, Joana Vasconcelos, Francesca Woodman, Tony Oursler e Kenny Scharf e da arte contemporânea brasileira, como Lygia Clark, Tunga, Nuno Ramos, Henrique Oliveira, Beatriz Milhazes, Iran do Espírito Santo e Vik Muniz.
[3] A mostra foi concebida pelo grupo Allard que adquiriu o complexo em 2011 visando promover o empreendimento. Segundo a divulgação é a primeira fase do “renascimento do espaço antes de sua transformação em ícone do turismo e da cultura da cidade de São Paulo”. A Cidade Matarazzo abrigaria um Centro de Criatividade com cinemas, estúdios de produção de filmes, música e arte, galerias para exposições e áreas para artesanato, moda e culinária brasileira.
[4] Intervenção de Hector Zamora.
[5] Black Palms, de Douglas White.
[6] Come and play with Danny and Tony (2014), obra de Dora Longo Bahia referida ao filme de Stanley Kubrick. Danny é "o iluminado", criança vidente das assombrações do hotel isolado pela neve, onde vive pedalando pelos corredores enquanto seu pai vai enlouquecendo. A artista duplica seu triciclo jogando com os duplos Danny e Tony, seu amigo imaginário, e as duas meninas fantasmas que habitam os corredores.
[7] Obra de Rochelle Costi.
[8] Ótima, de Henrique Oliveira.
[9] Performance de Moataz Nasr.
[10]Chuva, instalação de Artur Lescher feita com material de irrigação e água de reuso tratada nas Estações de Tratamento de Esgoto, da SABESP.
[11]Fleury, instalação de Laura Vinci e José Miguel Wisnik.
[12] Obra de Daniel de Paula.
[13]Paula Ignácio.
[14]Para o curador Baixo Ribeiro, o desafio era tornar visível um lugar que estava invisível. “Quando pensamos em memória, lembramos de passado, mas estamos em busca da memória do futuro deste lugar. (...) o projeto não é só de arte, mas de mobilização, trazer as pessoas e formar uma nova memória”. O proprietário Allard garante a preservação das áreas tombadas (1986), mas adverte que o local não será um museu: “Queremos aproveitar a energia de Matarazzo para fazer da Cidade Matarazzo um lugar para o futuro”.