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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    37 Abril 2016  
 
 
O MUNDO, HOJE

EM DEFESA DO SONO


THIAGO P. MAJOLO [1]

O sono está em contato com o possível,
que também chamamos o inverossímil.
O mundo noturno é um mundo.
A noite é um universo.
Victor Hugo, Os trabalhadores do mar


Cerca de quinze anos após ter criado a teoria dos sonhos e fincado a pedra mais essencial do que viria a ser a metapsicologia psicanalítica, Freud voltava a se haver com a vida noturna dos homens para tentar responder ao que sua clínica trazia.

Voltamos aos arredores de 1915 e ao debate fervoroso que fez nascer o conceito de narcisismo, transformador da psicanálise. Nesse contexto de efervescência clínica e política, Freud puxava da gaveta seus escritos e voltava à Interpretação dos sonhos, de 1900, para fazer um adendo ao seu edifício teórico. Mas não se tratava de um “puxadinho”; o artigo Suplemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos (1917[1915]) iria abrir portas para aprofundar o estudo das psicoses e da melancolia ao indagar, pela ótica dos sonhos, a perda de realidade nos sujeitos, introduzindo novos aportes para conceitos como o de alucinação, entre outros.

Este é o cenário, e esta é a contribuição que normalmente mais se destaca desse artigo-suplemento centenário. Mas há outro tema, que abre o escrito, e que parece ser cada vez mais importante para pensar como enxergamos e sustentamos o conceito psicanalítico de sujeito, concebido pela ética da conflitiva entre instâncias psíquicas, movido pela sexualidade infantil, calcado no Inconsciente e, acima de tudo, para o que trataremos aqui, um sujeito que dorme e sonha.

Ao começar seu artigo-suplemento, Freud se impõe uma questão fundamental: por que dormimos? Como sabemos não se tratar meramente de uma reflexão sobre a natureza biológica do ato de dormir, podemos traduzir desta forma sua pergunta: qual a função psíquica do sono? Notamos que Freud está em movimento de expansão teórica, deixando de se ater simplesmente ao conteúdo onírico para pensar naquilo que, no orgânico, é o seu suporte. Uma vez que os sonhos constituem o modelo de todo o funcionamento psíquico, seria impossível reduzirmos seus conteúdos a uma única instância psíquica, e de tal forma também não poderíamos identificar um continente do sonhar a não ser que esse continente fosse todo o aparelho psíquico. O que está em jogo, portanto, são todos os continentes, toda a vida psíquica tal qual a conhecemos.

Se, primeiramente, os sonhos inquietaram e mobilizaram Freud, levando-o a criar um modelo do aparelho psíquico, agora o sono passava a interrogar uma teoria em expansão, que adentrava mais profundamente os territórios do Eu. A psicanálise se voltava para redefinir os contornos da vida psíquica, e a preocupação com o novo desenho da tópica e as possibilidades de trabalho clínico com os continentes psíquicos começava a aparecer. Para levar à frente essas indagações, Freud acabaria por se preocupar com os materiais do orgânico, como o trauma físico, a morte e o sono. Fazia-se também uma pergunta enigmática: por que o Eu, sempre atento ao mundo exterior, tocando-o com seus tentáculos do sistema perceptivo, desejaria “pôr de lado a maioria de suas aquisições psíquicas” [2] para dormir? E o que aconteceria com aqueles que perdem o desejo ou a capacidade de dormir?

Refazendo o caminho regressivo da libido no período em que dormimos, caminho que já levara Freud às descobertas primeiras acerca dos sonhos, o autor se depara com o problema narcísico em sua raiz, e conclui que é um anseio do narcisismo primário tornar a uma estado de não excitação, de sono mortífero, apartado tanto do exterior quanto do interior. É óbvio que isso não se consegue, e aqueles restos de energia ainda atentos às demandas do dia vão se embrenhar por todo o aparelho psíquico para fisgar o sujeito e acordá-lo, mas não o seu corpo, e sim seu psiquismo. Assim, grosso modo, é que os sonhos deixam o corpo dormir enquanto mantêm o aparelho psíquico trabalhando. Por um lado, mantemo-nos sujeitos ativos e desejosos durante o trabalho do sonho e, por outro, esse mesmo trabalho, ainda que intenso, protege-nos da motilidade, da ação, deixando-nos descansar. Cumpre-se uma solução que atende a duas demandas divergentes. Ou seja, a depender da ótica pela qual enxergamos, a função psíquica do sono pode ser tanto a de dar suporte ao descanso do corpo quanto ao trabalho que restaura o psiquismo [3].

A partir dessa belíssima releitura da própria obra, Freud abre caminho para que pensemos novas funções para o sono. Uma delas, já apontada nesse artigo-suplemento, é a da “natureza diagnóstica”. Ao perceber que durante o sono a atenção do sujeito está majoritariamente voltada para dentro, sua capacidade de perceber pequenas alterações orgânicas seria muito maior. Tais excitações internas podem se manifestar figurativamente no sonhar, abrindo uma possibilidade um tanto enigmática e de difícil acesso, mas plausível, de diagnóstico para possíveis doenças orgânicas. Toda essa discussão é muito delicada, uma vez que a matéria-prima subjetiva sofre todas as operações de deslocamento, condensação e figurabilidade até se transformar em imagens oníricas, não sendo, portanto, de fácil apreensão essa tal “natureza diagnóstica”. Uma imagem onírica não corresponde necessariamente – e de fato quase nunca –, a uma imagem densa, maciça; ela é articulada, criada a partir de um complexo embrenhado de traços e fragmentos que seguem as três leis ditas acima. De todo modo, a beleza dessa hipótese e suas evidências clínicas ao longo desses mais de cem anos aportam mais uma contribuição possível dos sonhos para vida dos sujeitos. Vale novamente lembrar que tal capacidade só pode ser amparada pelo sono.

Mas o sono é também uma exigência orgânica, essa esfera que dialoga com o psíquico em uma troca mútua. Tomamos o sono como suporte do sonhar, portanto, de todo um modelo de vida psíquica. Essa vida, repleta de continentes psíquicos, só vive e floresce quando preservado o organismo. O corpo precisa dormir. Atenta às demandas e aos fenômenos do corpo que podem ou não estar articulados com o psiquismo, a escuta psicanalítica, ao longo do seu trajeto, passou também a “olhar”, a enxergar aquilo que se manifesta no corpo, o que se dá a mostrar. O sujeito psíquico também se manifesta nesse palco que é o corpo. Escutamos o corpo olhando-o; e olhamos, em análise, de forma sinestésica e atemporal, tal qual fazemos em relação às imagens dos sonhos, que nos trazem sensações. Maria Helena Fernandes, ao estudar o corpo na psicanálise, pergunta-se “Mas será que a escuta implica apenas o que pode ser ouvido?” [4], e mais, quase como numa resposta a si mesma, sentencia que o corpo é o palco onde se encena a relação do psiquismo com o somático. Uma escuta que agrega também o campo do olhar .

O corpo foi então ganhando um estatuto na história da psicanálise e, atualmente, ao lermos os títulos dos colóquios, dos livros, dos cursos que são oferecidos, tendemos a pensar que as manifestações somáticas, juntamente com as subjetividades transbordantes, rompedoras de fronteiras, são os fenômenos que mais têm interrogado os limites da teoria e posto em reconstrução a própria noção de sujeito psicanalítico.

Um pequeno livro chamado 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono [5], lançado em 2014, fisgou-me a atenção recentemente. De forma breve e certeira, discorre vertiginosamente sobre a lógica capitalista de mercado que nos faz permanecer conectados 24 horas por dias, 7 dias por semana. Esse pequeno, poderoso e terrível ensaio mostra a evolução dos sistemas de vigilância do mercado e do modo de funcionamento social que as transformações do modelo capitalista foram construindo ao longo dos séculos. Rompendo com a fronteira dos espaços fechados, tais como prisões e shoppings – segundo o modelo dos espaços de vigilância estudados por Foucault -, aos poucos o mercado e seu controle sobre os consumidores e os cidadãos em geral tomaram os espaços públicos e os de passagem, como ruas e avenidas, cada vez mais apinhadas por câmeras, radares, etc. Em seguida vimos, na última década, o cruzamento de fornecimento de dados virtuais e a venda de um sonho de permanente conexão, o tal 24/7. Essa lógica, que também permeou as esferas do lazer e dominou o antes chamado tempo livre, tem gerado um mundo no qual ainda estamos tentando definir os contornos da esfera da privacidade e da intimidade. Psiquicamente falando, a transformação parece grande. Um pequeno exemplo: o estatuto do segredo, uma das potências mais radicais do ser humano, imprescindível para que possamos ter a marca da nossa singularidade perante um outro, não teria o mesmo estatuto de antes. Estamos falando de outra forma de entender fronteiras e de redefinição de noções básicas que são constituintes do sujeito, como privado/público, dentro/fora, claro/escuro, dormir/acordar. Estamos redefinindo os contornos dos continentes e da vida psíquica como um todo.

Mas, então, voltamos a Freud, porque ele já nos apontava um último reduto de natureza anárquica que faz frente à lógica do mercado e que afasta cada um de nós das exigências atuais: o sono. A necessidade do sono, imprescindível à manutenção da vida, não corresponde a uma demanda 24/7. É preciso dormir para viver. Coletivamente, há sempre quem esteja acordado nas cidades, mas cada indivíduo necessita de horas de sono. Assim, dormir - e sonhar - pode ser uma espécie de capacidade individual contra processos massificadores, e contra uma realidade que procura se impor. Não à toa a palavra sonhar designa tanto os fenômenos oníricos quanto o ato de imaginar utopias e a possibilidade de criar novas realidades. Dormir - e sonhar - pode ser uma atitude de rebeldia frente aos discursos do poder. Sonhar não tende à docilidade de nenhum tipo de civilização instaurada. É singular, de espírito indomável e, amparado pelo sono, retira o sujeito do mundo por muitas horas, tornando-o improdutivo para uma lógica 24/7.

Este mesmo ensaio nos conta que, nos Estados Unidos, pesquisas com pardais de coroa branca tentam encontrar nessas aves migratórias o que as torna capazes de passar até sete dias sem dormir, a fim de testar a mesma solução em seres humanos. Mais do que estimular a vigília, como muitas drogas já fazem, o que se procura hoje é acabar com a necessidade do sono. Um incessante vagar acordado, de olhos vidrados e psiquismo fragmentado e sem possibilidade de restauração lembra-nos de pacientes que Bion tão bem observou, que pareciam jamais acordados ou que jamais dormiam, como se caminhassem sempre em um estado alucinatório.

Ao se quebrar a fronteira do sono em cada um de nós, cria-se uma sociedade impossibilitada também de sonhar, de elaborar, de restaurar seus conteúdos, seu continente, sua vida psíquica; ao se transformarem indivíduos em mortos-vivos, como os tais zumbis tão na moda, acaba-se por desarticular as funções psíquicas e apaga-se o sonhador.

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[1] Psicanalista e Mestre em História Social pela USP, membro do Grupo Acesso: estudos, intervenções e pesquisa sobre adoção da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae; membro da comissão de Debates da Revista Percurso.
[2] FREUD, S. Adición metapsicológica a la teoría de los sueños, (1917 [1915]). Obras completas. Luis Lopez-Ballesteros (traducción). Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, tomo II, 1972.
[3] Sobre o papel restaurador do sonhar, cito: AB’SABER, T. O sonhar restaurado: formas de sonhar em Bion, Winnicott e Freud. São Paulo: Editora 34, 2005.
[4] FERNANDES, Maria Helena. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011.
[5] CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014.





 
 
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