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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    47 Setembro 2018  
 
 
LITERATURA

DO CONTO AO PONTO: O ANALISANDO E SUA ESCRITA CRIATIVA
NO PERCURSO DE UMA ANÁLISE


ALICE WILMERS BEI[i]

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura


Paulo Leminski



Certa vez, em uma primeira entrevista de análise, uma jovem adulta, atriz, chega ao meu consultório e assim parte a falar de si:

Por onde eu começo...? Eu ensaiei várias histórias minhas para te contar, mas claro que agora nenhuma me parece boa o suficiente. Mas vou começar pela que acho a melhor, e depois vamos indo para os contos nebulosos do meu romance familiar....

Com o desejo legítimo de ser amada e idealizada pela sua futura analista, impactando-a com “boas histórias”, essa moça encenou para si mesma um encontro em que, de alguma forma, suas fantasias onipotentes infantis pudessem, como nos romances, ganhar uma nova expressão e uma realização concreta.

Alfredo Bosi (2015), ao apresentar definições para os diversos tipos de romances brasileiros, retoma uma compreensão do romancista como aquele que, na sociedade burguesa ocidental dos últimos dois séculos, encarna a tensão entre o escritor e a sociedade. Isso porque, nessa sociedade, o romancista cria a figura do herói em tensão com as estruturas sociais vigentes, já que estas são degradadas, incapazes de possibilitar a realização dos valores que elas mesmas propõem.

O herói é aquele que, na literatura, resolve, de diversas maneiras, a dialética conflitante entre o sujeito e o meio. Do herói ao anti-herói, os romances, nos seus diferentes tipos de escrita, são formas de captar o ambiente e propor-lhe ações, através dos personagens.

Para Bosi, o romance criou:

(...) formas acessíveis ao novo público leitor composto principalmente de jovens e de mulheres, e ansioso de encontrar na literatura a projeção dos próprios conflitos emocionais. O romance foi, a partir do Romantismo, um excelente índice dos interesses da sociedade culta e semiculta do Ocidente. A sua relevância no século XIX se compararia, hoje, à do cinema e da televisão (2015: 102).

Em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911), Freud desenvolve sua teoria das neuroses a partir do conflito psíquico entre os princípios do prazer e da realidade. Na ausência da satisfação esperada, foi introduzido um novo princípio do funcionamento mental: o princípio da realidade, que suscitava experiências não mais tão agradáveis, originando-se, com isso, as repressões e as fantasias. Nas palavras do autor:

Com a introdução do princípio de realidade, uma das espécies de atividade do pensamento foi separada; ela foi liberada no teste de realidade e permaneceu subordinada somente ao princípio do prazer. Esta atividade é o fantasiar, que começa já nas brincadeiras infantis, e, posteriormente, conservada como devaneio, abandona a dependência de objetos reais (1911: 240).

Condição de existência, e também geradoras de neuroses, as fantasias, como expressão da divisão e desencontro entre os princípios do prazer e da realidade, clamam por alguma existência. A analisanda trazida à cena no início deste texto desejava ser amada por mim, cativando-me com suas mais belas histórias, o que lhe representaria uma certa concretização de suas fantasias onipotentes.

No artigo “O desenvolvimento do sentido da realidade e seus estágios”, Ferenczi (1913) retoma o texto de Freud acima citado para desenvolver a premissa da onipotência (infantil) no ser humano, geradora das fantasias inconscientes, que se expressam desde estados mais regressivos até os estados simbólicos mais desenvolvidos.

Ferenczi (1913) considera que a criança preserva aspectos de seu sentimento de onipotência originária, como se nota em seus pensamentos mágicos, vivendo na feliz ilusão da onipotência de que efetivamente se beneficiaram outrora (p.57). Para ele, (...) em matéria de amor é possível conservar a vida inteira a ilusão de onipotência (p.58).

Voltemos à literatura! Não seria um romance um lugar de realização das fantasias onipotentes infantis? Não se tratam os textos literários de construções criativas para a comunicação e elaboração entre fantasia e realidade concreta compartilhada?

Em “Escritores criativos e devaneios”, Freud (1907/8) instiga-nos sobre o dom dos escritores:

Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade (...) em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes.

(...)

Se ao menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes um atividade afim à criação literária! Uma investigação dessa atividade nos daria a esperança de obter as primeiras explicações do trabalho criador do escritor. E, na verdade, essa perspectiva é possível. Afinal, os próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita frequência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta (1907/8: 135).

Ora, se a fantasia onipotente infantil deixa-nos eternamente seus vestígios, certamente temos vivas nossas potências criadoras de ficções romancizadas. No íntimo, somos poetas, lembra Freud.

Mas a poesia nem sempre é bem vinda em sua forma mais bruta; as fantasias são e precisam ser passíveis de transformação para que o ser humano viva em sociedade. Os romances que escrevemos não são os mesmos que vivemos.

Se na ciência o pesquisador deve renunciar à ilusão das fantasias de onipotência infantil, nos contos elas continuam “absolutas”, diz-nos Ferenczi:

(...) nos contos vive-se eternamente, está-se em mil lugares ao mesmo tempo, prevê-se o futuro e conhece-se o passado (...) o manto mágico do conto permite todas as transformações e coloca-nos rapidamente ao alcance. Como é difícil na realidade alcançar um amor que preencha todos os nossos desejos! Mas o herói do conto é irresistível ou então seduz com um gesto mágico (1913: 61).

Feliz esta nossa condição poética; mais do que serem transformadas para que seja possível a vida em sociedade, as fantasias colorem e possibilitam a capacidade criativa humana; desde às artes a qualquer outro campo de comunicação, são sua possibilidade de expressão.

No conto, entendido como romance mais sucinto, a magia dos personagens e histórias pode reinar de forma plena, como vimos há pouco. E tanto o escritor quanto os leitores podem dele aproveitar-se para devanear. O devaneio, assim como as fantasias, é uma forma de realização de desejos, produto da atividade imaginativa capaz de se transformar e se adaptar às situações vividas pelo sujeito; é um substituo do brincar infantil (Freud, 1907/8).

Agora, se em um processo analítico convocam-se as fantasias mais primitivas do analisando, para que novos rearranjos entre os princípios do prazer e da realidade sejam possíveis, por que não pensar que se trata de uma experiência quase ficcional, no sentido da possibilidade de escrita de novos contos e da experimentação de sonhos e fantasias?

Uma análise é também a tentativa de elaboração das fantasias onipotentes infantis, em outros termos, tentativa de elaboração do complexo de castração. Neste sentido, seria o analisando um escritor produtor ou um escritor “desfeitor” de contos? O analisando embarca em sua análise com seus diversos mitos e heróis, para minimamente desconstruí-los, ressignificá-los, saindo deste processo certamente com algum trabalho de luto de seus romances.

Para Freud (1907/8), em qualquer tipo de romance há aspectos da fantasia onipotente infantil. Ferenczi, ao retomar este texto, afirma:

Freud qualifica de ficção uma organização que seria escrava do princípio de prazer e desprezaria a realidade do mundo externo, e é no entanto - diz ele – praticamente o que acontece com o bebê, desde que se levem em conta os cuidados maternos (1913: 48).

Neste sentido, uma análise não pode ser uma escrita ficcional. Mas... quem conta um conto, aumenta um ponto!

Do conto ao ponto, a que ponto pretende-se chegar em uma análise? O ponto de uma solução entre mundo interno e externo? Não somos ingênuos o suficiente para acreditarmos nesta falácia; tal solução é, e assim deve ser, uma equação sem resolução. Mas o ponto aqui proposto consiste na criação de tantos outros contos que compõe e recompõem um sujeito, e que lhe possibilitam ressignificar aspectos de seus romances familiares, na construção de novos caminhos.

Contos que não se encerram e não permitem voos solos das mais puras fantasias, ao contrário dos contos literários, mas sim contos cujos pontos encontram na realidade compartilhada terrenos para implantação, realização e transformação de pedacinhos de fantasias onipotentes, contemplando, como na literatura, inúmeras encenações, interpretações e simbolismos próprios à nossa condição humana de fantasiar. Tal como um trabalho de escrita criativa, certamente atravessado por dor, mas que permite a construção e experimentação de histórias de ternura e amargura, que não tem cura, como bem lembra Leminski, mas que não por isso deixam de ser prazerosas.

Referências Bibliográficas

BOSI, Alfredo. 2015. São Paulo: Cultrix.

FERENCZI, Sandor. 1913. O Desenvolvimento do Sentido da Realidade e seus Estágios. In: FERENCZI, Sandor. 2011. Obras Completas. Vol. III. São Paulo: Martins Fontes.

FREUD, S. 1907/8. Escritores Criativos e Devaneios. IN: FREUD, S. 1996. Rio de Janeiro: Imago.

FREUD, S. 1911. Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental. IN: FREUD, S. 1996. Rio de Janeiro: Imago.



[i] Psicanalista, mestre em Psicologia Social pela PUCSP, aluna do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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