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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    48 Novembro 2018  
 
 
ARTE

A MENINA E O TEMPO


TIDE SETUBAL [i]



Era uma vez uma menina que queria fazer mais coisas por minuto do que cabia em uma hora. Parque, balanço, clube, gangorra, cinema, pipoca, teatro, bala, bola, bolo, piquenique, amigos, família, brincadeiras. É assim que começa a peça infantil que está no teatro Alpha até fim de novembro, A menina e o tempo, da Trupe Pé de Histórias, grupo que canta, conversa, faz perguntas, conta histórias, dança, faz pensar. O figurino é lindo e delicado, as músicas tem uma afinação incrível, há poesia por toda parte.

O tempo é um tema infinito. “O que vem depois do depois?”, a menina pergunta para seu pai que parece um relógio de apressamento e está a toda hora dizendo que a brincadeira fica para depois. Em tempos em que o depois é engolido pela pressa, pelos excessos e sobretudo pelas telas, a menina duvida: afinal, o tempo voa ou evapora? O celular da menina se alterna com o celular do pai, ou isto ou aquilo, já nos disse Cecília Meirelles. Nunca os dois juntos. O encontro está desencontrado.

Apressada como o pai, a menina está sempre correndo - a cara do coelho de Alice - querendo engolir tudo, inclusive o tempo. Então, inesperadamente ela encontra uma tartaruga, sem pressa. A tartaruga está indo para casa, para o mar. Ela conversa, canta, silencia, reflete, escuta, ri... devagarzinho. O ritmo das ondas faz lembrar o ritmo do relógio, que conta o tempo. O que é o tempo? - faz perguntar.

A tartaruga traz um presente: a presença. Talvez o presente mais difícil de se achar no presente momento, não é mesmo?

O mundo hoje é intenso; uma infinidade de objetos para se comprar, empilhar, colecionar. Programas e experiências aos montes para todos os gostos e tribos. Temos também o consumo consciente para quem não quer nada comprar, bora trocar.

Nessa correria desatinada, vivemos tentando nos encontrar. Meditar, mindfulness, yoga e claro, análise, oxalá! Talvez uma outra forma de nos achar seja desenhando palavras, brincando de traduzir sentimentos em histórias. Nesse balaio, uma vez, quando minha filha tinha quatro anos, ela me perguntou sobre o tempo: “mãe, eu tô cansada de esperar meu aniversário de cinco anos chegar, traz ele logo para mim?” Essa conversa virou título de peça de teatro, virou palavra, virou essa história infantil que escrevi e minha filha ilustrou:

A MENINA E O TEMPO



Alice era uma menina sabida e interessada no mundo. Fazia perguntas sobre todas as coisas, adorava investigações. As pessoas diziam que ela era teimosa, mas talvez fosse mesmo é determinada. Não desistia nunca de buscar aquilo que queria descobrir.

Certo dia, Alice acordou com uma ideia genial: acelerar o tempo para seu aniversário chegar logo.

“Mãe, eu quero que o meu aniversário chegue rápido. O que eu faço para colocar pressa dentro dele?”

“Filha, não podemos apressar o tempo.”

“Sério?! Eu queria que meu aniversário chegasse logo porque eu estou precisando ganhar um presente especial. Importantíssimo!”

“Presente importantíssimo? Ah, sei...”

“Mas, então, mãe, como posso fazer?!”

A mãe ficou em silêncio. Era difícil falar sobre o tempo.

“Sabe o que acontece, filha? É que a gente não manda no tempo... Tem muitas coisas que a gente escolhe: o que vamos comer, do que vamos brincar, qual roupa vamos vestir. Mas nem adulto, nem criança, nem gente muito sabida, ninguém controla a velocidade do tempo. Ele tem um ritmo só dele, como um ritmo de uma música ou dos ponteiros de um relógio. Não podemos acelerá-lo.”

Inconformada, Alice foi atrás de uma solução e começou a pesquisar na internet. Digitou: “Como acelerar o tempo?” Vieram um monte de respostas esquisitas: “Dez truques para sentir que o tempo passa rápido”, “Dormir é a melhor maneira de ver o tempo passar”, “Dê tempo ao tempo.”

Mas nada disso ajudava. Foi então que, na última linha, Alice leu: “aplicativos mágicos para resolver qualquer problema”

“Oba!!! Achei!” - ela vibrou.

Anotou o endereço do lugar dos aplicativos mágicos e ficou pensando em quem poderia levá-la até lá. “A vovó, claro! Se eu pedir com jeitinho, ela vai acabar me ajudando.”

“Vó, preciso muito ir neste endereço aqui, é uma questão de vida ou morte! Mas eu não posso contar os meus motivos, você tem que confiar em mim. Será algo divertido!”

A avó não entendeu nada. Mas de tanto Alice insistir, acabou encontrando um tempinho para levar a neta onde ela queria ir. “Alice e suas invenções mirabolantes”, pensou.

Ao chegarem no tal endereço misterioso, as duas encontraram uma feiticeira tecnológica. Ela era nova e tinha olhos pretos bem brilhantes. Usava roupas rosa pink, uma capa lilás fosforescente e óculos redondos na ponta do nariz. Lembrava um tipo de bruxa mas não era uma bruxa má pois seu olhar intenso parecia bem sincero. Era talvez uma bruxa boa. Mas será que existe bruxa boa? Bem, aquela feiticeira tecnológica parecia ser uma delas. Ela devia ser muito esperta. Afinal, fazia aplicativos que resolviam as vontades mais difíceis!

Alice estava agitada e não queria perder tempo. Assim que entrou foi logo explicando seu problema em tom baixinho para a avó não escutar:

“Quero que chegue logo o meu aniversário.”

“Hum.... Você precisa de um aplicativo para viajar no tempo? Ir para o futuro ou para o passado, bagunçando qualquer relógio?! Que ideia fantástica! Acho que posso desenvolver um... deixa-me ver. Como é essa programação tecnológica mesmo?! Acho que era mais ou menos assim e digitou: sinsalabim! Relógio para frente, relógio para atrás, a meninas digita um dia e plim!

E com essas palavras mágicas de feiticeira tecnológica ela fez surgir um aplicativo de viajar no tempo.

“Perfeito!” – disse Alice sussurrando – “Era exatamente o que eu precisava.”

A avó, desde que entrou, estava distraída olhando os mil objetos impensáveis que decoravam a sala da feiticeira. Não existiam em outro lugar apetrechos com as mesmas cores, nem com as mesmas formas, muito menos com os mesmos cheiros. Fios azuis, vermelhos e verdes, relógio brilhante com os ponteiros em forma de chapéu de bruxa, líquidos coloridos, livros de magia tecnológica, bússola, saquinhos com uma espécie de areia arco-íris. A avó se perguntava “Para que serve tudo isto?!” E perdida nos seus pensamentos, ela acabou nem escutando a conversa de Alice com a feiticeira.

“Alice, que lugar é esse?!”

“Vó, vamos?”

“Mas já?! Porque mesmo você quis vir até aqui?”

“Em casa eu te conto tudo direitinho.”

Ao chegar em casa, Alice logo baixou o aplicativo e digitou: dia do meu próximo aniversário!

Nesse mesmo instante, foi como se Alice estivesse entrado numa máquina de acelerar o tempo. Ela viu os dias passarem bem rápido na sua frente. Estava correndo, correndo, correndo. Chegou a ficar ofegante, sem ar mesmo de tão cansada e atordoada!

De repente chegou no dia do seu próximo aniversário. Aquilo tudo era incrível! Parecia um sonho! Além de ganhar o presente que tanto queria, teve uma festa deliciosa correndo pelo jardim de casa, jogando pique-bandeira, queimada, rio vermelho, sem falar no momento tão especial de ver todos seus amigos e família cantando parabéns em volta de uma mesa com bolo, doces e mil enfeites.

“Que demais! Eu consegui!”

Mas depois de passar alguns dias, aquele presente especial não era mais uma novidade, já tinha perdido a graça. Alice até que brincou com ele mas logo ficou desinteressante. Ela não queria mais. Ficou ansiosa para viver de novo aquele dia de aniversário em que se sentia a pessoa mais especial do mundo, era isso o que mais queria! Animada com sua descoberta, Alice foi logo digitando no seu aplicativo de viajar no tempo: dia do meu próximo aniversário!

De novo, ela teve a mesma sensação maluca de entrar numa máquina de acelerar o tempo. Viu os dias passarem bem rápidos na sua frente. Estava correndo, correndo, correndo. Chegou a ficar ofegante, sem ar mesmo de tão cansada e atordoada. E, de repente, percebeu que estava novamente no meio de sua outra festa de aniversário.

“Viva! Consegui de novo!” Ela brincou sem parar, até ficar super cansada. Nesse ano sua festa foi com as suas melhores amigas. Só meninas e muita diversão! Brincaram, dançaram, cantaram, gargalharam. Sua mesa com o bolo e os doces tinha um montão de flores rosas e lilás dentro de uns lindos vasinhos brancos. E ainda ganhou presentes!

Mas depois de mais alguns dias, os presentes ficaram chatos e bobos... Alice já tinha brincado tudo o que podia com eles. E, agora, mesmo sendo novos, pareciam velhos. Não tinham mais graça. Além disso, ela também se sentia estranha, com o corpo grande e mais maduro. Estava incomodada. Sem saber o que fazer para se sentir melhor, Alice achou que precisava do dia de seu aniversário de novo. Queria comemorar, encontrar os amigos e primos. Nada era tão incrível quanto se sentir especial nesse dia. E começou a imaginar como queria sua próxima festa: convidados, brincadeiras, mesa do bolo.

Isso sim é o que eu mais quero. Quero muito! E lá foi ela digitar no aplicativo: dia do meu próximo aniversário!

E você sabe o que aconteceu? De novo, ela teve a mesma sensação maluca de entrar numa máquina de acelerar o tempo. Ela viu os dias passarem bem rápidos na sua frente. Estava correndo, correndo, correndo. Chegou a ficar ofegante, sem ar mesmo de tão cansada e atordoada. De repente, Alice estava no meio de sua festa de aniversário. De novo.

Era isso que acontecia todas as vezes. Depois de um aniversário Alice queria o aniversário seguinte. E depois do aniversário seguinte ela queria o próximo. Insaciável essa menina, ela queria sempre mais.

Depois de muitos aniversários, Alice viu algo bem estranho... Em poucos dias, ela já tinha virado uma adolescente! E nesse mesmo tempo seu irmão mais novo continuava uma criança pequena. Que sensação esquisita! Alice tanto fez que conseguiu acelerar o tempo para viver suas festas de aniversário. Mas, e agora? O que ela iria fazer com aquele corpo grande de adolescente e o monte de brinquedos de criança?! Estava tudo bagunçado!

“Mãe! Pai! socorro!!! Quero virar criança de novo!”

Alice ficou aflitíssima com o que aconteceu. Chorava um montão. Ela se sentia criança, mas agora estava desencontrada num corpo grande demais.

“Mãe e pai, vocês me ajudam? Eu quis fazer o tempo correr para ter muitas festas de aniversários e acabei virando adolescente... Mas agora estou muito arrependida! O que eu faço?! Quero ser criança de novo! Não gostei de acelerar o tempo... No começo parecia legal essa história de ganhar presentes e ter muitas festas de aniversários mas eu não conseguia parar e agora percebi que tenho um monte de brinquedos mas não estou feliz...

Seus pais ficaram assustadíssimos: Alice nem parecia a filha deles dentro daquele corpo grande. E agora, o que fazer?! Os dois decidiram chamar a avó para conversar e contar tudo o que tinha acontecido. Eles juntos saberiam o que fazer. A Avó levou o maior susto ao ver sua neta daquele tamanho, mal conseguia reconhecê-la. Estavam todos muito preocupados. Aquilo era um problemão!

Avó, mãe, pai e filha ficaram um bom tempo pensando em como resolver aquela enorme complicação. Pensaram e conversaram. Conversaram e pensaram. Tiveram mil ideias malucas até chegarem a uma solução. Se era um aplicativo de viajar no tempo, ele poderia acelerar para o futuro, mas também poderia desacelerar o tempo para o passado! Será que daria certo se Alice digitasse no aplicativo: “o dia em que fui à feiticeira” ?!

Os quatro ficaram em silêncio, parados, se olhando. Uma tensão pairava no ar. Era hora de tentar! Não demorou nem mais um minuto para Alice digitar: dia em que fui à feiticeira!

E foi assim que Alice teve de novo a mesma sensação maluca de entrar numa máquina de acelerar o tempo mas, dessa vez, ela teve uma estranha sensação de estar correndo, correndo, correndo de costas! Chegou a ficar ofegante, sem ar mesmo de tão cansada, atordoada e dessa vez até enjoada de tanto correr para trás...

Alice voltou a ter a mesma idade e o mesmo corpo que tinha no começo desta história. Ufa! Respirou aliviada! Lembrando do medo gigante que sentiu, foi logo apagando aquele aplicativo maluco! Alice deu um longo abraço na mãe, no pai e na avó - que aliás estavam felicíssimos de ter a menina Alice de volta! - e foi correndo procurar seu irmão mais novo para brincar. E brincar muito e por muito tempo, sem pressa!



[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, do grupo O Feminino e o Imaginário Cultural Contemporâneo e da equipe editorial deste Boletim.




 
 
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