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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    49 Abril 2019  
 
 
LITERATURA

O POETA E AS LIÇÕES DE ANTIPOESIA


DÉBORAH DE PAULA SOUZA [i]



Minha posição é esta:
O poeta não cumpre sua palavra
Se não muda os nomes das coisas .


Nicanor Parra, professor de matemática e inventor da antipoesia, é considerado um dos principais poetas chilenos do século 20. Laureado com os prêmios mais importantes da língua espanhola e reverenciado por outros escritores, morreu em 2018, aos 103 anos. O livro Só para maiores de cem anos (Editora 34) é a primeira antologia do autor publicada no Brasil. Ninguém sabe por que demorou tanto.


A nova antologia (anti)poética é bilíngue, apresenta 75 poemas, selecionados dentre os livros publicados entre 1954 e 1985, com destaque para a fase da antipoesia, incluindo o Manifesto, poema de 1963: “Para os mais velhos/ A poesia foi um objeto de luxo/Mas para nós/É um artigo de primeira necessidade/ Não podemos viver sem poesia.” Parra esculhamba pompas e ninfas da lírica tradicional, bem como a poesia engajada, em voga nos anos 60/70. Os críticos afirmam que ele estava em luta com escritores míticos, como Gabriela Mistral e Pablo Neruda. Provocava furos na linguagem grandiosa, queria a poesia porosa, por onde a língua do dia-a-dia pudesse vazar, imprimindo em seus escritos uma dicção coloquial, marcada por toques de humor, autoironia e insubordinação permanente. Paradoxo: o antipoeta foi laureado solenemente com o Prêmio Reina Sofía de Poesia Iberoamericana,em 2001, e o Miguel de Cervantes, em 2011; sem contar as diversas indicações para o Nobel de Literatura.

A antologia inclui a movimentada biografia do autor. Na área de ciência, ele se gradua em matemática e física no Chile, faz pós-graduação em mecânica avançada nos Estados Unidos e cosmologia na Inglaterra. Na literatura, além de poeta foi também tradutor e ensaísta, sua influência alcançou os poetas beats norte-americanos. Em 1960, os Anti-Poems foram publicados pela City Lights Books, com tradução de Jorge Elliot. A difusão de sua obra fez com que Parra viajasse para diversos países da Europa e também para Moscou e Pequim. No Brasil, a tradução foi realizada por Cide Piquet e Joana Barossi - ela relata no posfácio as duas vezes em que foi ao encontro de Parra, na primeira não teve coragem de bater na sua porta, na segunda ele já tinha cem anos e recebeu-a em sua casa, na baía de Las Cruces. Na ocasião, informou que não lia as traduções de seus poemas, pois não considerava mais que fossem seus, e que a tradução deveria ser “una expropriación revolucionária”. Encerrou o assunto piscando o olho para ela.

O título do livro, Só para maiores de cem anos (nome de um poema) brinca com a ideia de leitores tão centenários quanto o autor. Nicanor Parra nasceu em 1914 em San Fabián de Alico, área rural chilena, filho de um professor primário e de uma costureira de origem camponesa. Tornou-se catedrático de física e matemática na Universidade do Chile, em Santiago, na velhice foi morar num vilarejo a cem quilômetros da capital, numa casa de pedra com varanda aberta para o mar e o vento gelado do Pacífico. “Rosto quadrado, nariz de boxeador mulato sobre uma boca de ídolo asteca”, eis uma autodescrição do poeta, morto no ano passado, aos 103 anos. Na nossa cultura, baseada na construção de sentido e alicerces de memória, na espera de que os velhos sejam sábios, a sabedoria de Parra consiste em provocar abalos na rede de transmissão. Certamente ele não vai chatear ninguém insinuando que na sua época era melhor, dá a entender que não há trégua em tempo algum e que, mesmo que a ciência afirme que o tempo não existe, a velhice é um fato. Diante desse homem imaginário, misto improvável de sedutor, professor e avô anarquista, a tendência é demandar ensinamentos a respeito da humanidade, infância, família, complicações da política e do amor, etc. Ele não se furta ao trabalho, mas recusa qualquer tom heroico, discorre sobre dentes cariados, o mecanismo da inflação chilena, a miséria do professor do ginásio. O resultado é que os profetas tornam-se mais potentes quando revelam o aspecto tragicômico das profecias. A geração de brasileiros e de outros latinoamericanos que viveram sob a ditadura civil-militar conhece sua irmã caçula, Violeta Parra, que antes de se matar compôs Gracias a la vida, uma das canções mais queridas do continente. Para ela o poeta dedica Defesa de Violeta Parra, chamando-a de Viola, Árvore, Ave, Agricultura. Assim, sem desprezar os grandes temas, como o sofrimento humano e as considerações sobre a morte, Parra embaralha especulações filosóficas com tiradas mundanas, como uma visita ao psiquiatra freudiano; a constatação de que a mulher, real ou ideal, vai tirar o homem do sério; ou seu conselho final dirigido a Jesus: “Não ressuscite por nenhum motivo/não tem por que você passar nervoso”.

Polifonia e atualidade

Sem autoridade de crítica literária, nas vezes em que me propus escrever para este Boletim a respeito de escritores é porque conhecia um pouco a obra deles. Não foi o caso de Nicanor Parra, de quem já tinha ouvido falar, mas de quem nada conhecia. Antes dos poemas, sofri o impacto do título e do seu retrato na capa do livro. Ao longo da escrita deste artigo, me senti um pouco mal de roubar alguns versos dele para justificar minha tese improvisada - a de que aprendemos muito com os poetas, mais do que suportamos, inclusive é por culpa deles que temos mais de cem anos.

Como ninguém precisa aceitar essa tese particular sem fundo literário ou científico, resolvi citar alguns artigos interessantes que encontrei durante minha breve pesquisa, que me estimularam a reler vários poemas e me ajudaram a situar Parra para além da minha paisagem afetiva. Na revista de livros Quatro Cinco Um, o crítico Heitor Ferraz Mello afirma que o autor conseguiu aglutinar várias vozes nos seus antipoemas, fazendo “uma espécie de síntese social tensionada”, de onde saem arranhados todos os “ismos” que abalaram o século 20: capitalismo, catolicismo, marxismo, nazismo. Para Ferraz Mello, vozes dissonantes e políticas como a de Parra são especialmente oportunas agora para desarmar a bomba do autoritarismo que nos ameaça novamente.

O poder de fogo do antipoeta, porém, não está voltado apenas para opositores externos, o que ele implode é também a noção de sujeito e do Eu líricos, diz o tradutor João Gabriel Mostazo Lopes, que desenvolve pesquisa de doutorado sobre a antipoesia, no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Na ocasião da morte de Parra, Lopes publicou um artigo no site da revista Cult. Na visão dele, o poeta incorporou em sua obra a linguagem popular e também a experiência da psicanálise, porém de modo distinto das vanguardas, como o surrealismo. Os estudiosos assinalam que a ideia corrente é que antipoesia faz troça de intelectuais, porém Parra é um intelectual de sólida formação. A diferença é que sabe rir de si mesmo e vê furos em tudo o que se proclama como solidez, tem percepção aguda do absurdo.

“Para que se faça troça de alguém”, diz Lopes, “é preciso que esse alguém leve a si mesmo a sério. Os sujeitos dos poemas de Parra definitivamente não se levam a sério (...). Esta é uma grande novidade com relação ao sujeito lírico tradicional, usualmente crente da autoridade da sua sensibilidade. Mais do que um ataque aos ‘outros’, que meros atentados a personalidades literárias e culturais, os antipoemas são um ataque do sujeito contra si mesmo”, conclui.

Deixo a palavra final com o poeta.

O peregrino

Atenção, senhoras e senhores, um minuto de atenção:
Virem um instante a cabeça para este lado da república,
Esqueçam por uma noite seus assuntos pessoais,
O prazer e a dor podem esperar do lado de fora:
Escuta-se uma voz deste lado da república.
Atenção, senhoras e senhores! um minuto de atenção!

Uma alma que esteve engarrafada durante anos
Numa espécie de abismo sexual e intelectual
Nutrindo-se escassamente pelo nariz
Deseja se fazer escutar por vocês.
Desejo que me informem sobre alguns assuntos,
Necessito de um pouco de luz, o jardim se cobre de moscas,
Me encontro num desastroso estado mental,
Pondero à minha maneira:
Enquanto digo essas coisas vejo uma bicicleta apoiada num muro,
Vejo uma ponte
E um carro que desaparece entre os edifícios

Vocês se penteiam, claro, vocês andam a pé pelos jardins,
Por baixo da pele vocês têm outra pele,
Vocês possuem um sétimo sentido
Que lhes permite entrar e sair automaticamente.
Mas eu sou um menino que chama sua mãe por trás das rochas,
Sou um peregrino que faz as pedras pularem à altura de seu nariz,
Uma árvore que pede aos gritos que a cubram de folhas.



[i] Jornalista e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, co-coordenadora do Projeto Cuide-se na Clínica do Sedes e integrante do grupo de trabalho Sexta Clínica. Integrante do CAJU – Coletivo Psicanálise Adolescência e Juventude. Colaboradora deste Boletim.




 
 
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