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NOTÍCIAS DO CAMPO PSICANALÍTICO
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES CLÍNICAS A PARTIR DA NOÇÃO DE ELABORAÇÃO IMAGINATIVA
MARCIA R. BOZON DE CAMPOS [1] A expressão elaboração imaginativa foi utilizada por Winnicott para se referir a uma atividade rudimentar do bebê, relacionada à elaboração das suas sensações corporais nos primórdios, cuja importância é determinante na compreensão da origem da vida psíquica e de todo o processo de desenvolvimento emocional. Em sua concepção, no início da vida a psique equivale à elaboração imaginativa de elementos, sentimentos e funções somáticas, constituindo-se como uma atividade de dar sentido aos acontecimentos provenientes da própria vitalidade física num estado em que psique e soma estão indiferenciados. Embora tenha sido introduzida para pensar sobre os primórdios do psiquismo, ao longo de toda a sua obra, Winnicott fará referências à elaboração imaginativa como um recurso para dar sentido ao que é vivido, tecendo relações com a fantasia, com o sonho e com toda a atividade criativa que depender da capacidade de transitar entre o presente, o passado e o futuro, além de fornecer subsídio para a memória e para a antecipação das diversas experiências. Será a partir da elaboração imaginativa que terá início a construção de um mundo interno, acompanhada pelo sentimento de responsabilidade pelo que ocorre dentro desse mundo, assim como a possibilidade de discernir entre a fantasia localizada dentro e fora de si mesmo, permitindo o constante intercâmbio e enriquecimento entre ambas. A ideia da elaboração imaginativa como um aspecto da natureza humana expande sua compreensão como um recurso inerente ao processo de desenvolvimento humano que, como bem concebeu Winnicott, só se finda com a morte. Essa perspectiva também permite a reflexão sobre a elaboração imaginativa como um recurso clínico na condução do processo psicanalítico, fundamental nos casos de pacientes regredidos ou dissociados, considerando que o questionamento a respeito da adaptabilidade do setting e do lugar do analista foi uma preocupação central de Winnicott, tanto no que se refere à sua experiência clínica quanto ao que se refere ao corpo de sua obra. Adam Phillips (Phillips, 2006, p. 35) aponta que Winnicott apresenta à psicanálise um modelo colaborativo de tratamento baseado numa experiência de mutualidade, no qual o analista oferece ao paciente um setting que possibilita o trabalho de auto interpretação. Nas palavras de Winnicott “um sinal de saúde mental é a capacidade que um indivíduo tem para penetrar, através da imaginação e ainda assim de modo preciso, nos pensamentos, nos sentimentos e nas esperanças de outra pessoa, e também de permitir que outra pessoa faça o mesmo com ele” (Winnicott, 1986b, p. 111). Philips destaca que essa ideia de saúde se aproxima da definição do filósofo Stuart Mill [2] a respeito da imaginação como habilidade de entrar em contato com outro ser humano; no caso do analista, esta habilidade estaria a serviço de evitar o excesso de interpretação que seria, na visão de Winnicott, um movimento intrusivo, que incorreria no risco de submeter o paciente a uma tradução autoritária de seus sentimentos e pensamentos por parte do analista. A função do analista, principalmente nos casos de pacientes regredidos, seria, em primeiro lugar, oferecer sustentação para que o paciente possa vivenciar momentos de não integração sem correr o risco de uma desintegração. Philips destaca que “o psicanalista se torna, com base no modelo de desenvolvimento de Winnicott, a conexão entre as partes dissociadas do self” (Phillips, 1988, p. 124), da mesma forma que a mãe, nos primórdios, se coloca à disposição das fantasias onipotentes do bebê, que “só pode tolerar ser nutrido por um objeto que ele aparentemente possui e controla” (Phillips, 1988, p. 126). Esse processo imaginativo, de invocar a mãe da qual necessita, inaugura o processo de desenvolvimento da criança, pois, ao ser atendida em sua necessidade, a criança experiencia, primitivamente, algo a respeito da realidade interna em relação à realidade externa, relação que acompanhará o desenvolvimento do indivíduo ao longo de toda a vida. Ao destacar a importância da fantasia para o desenvolvimento emocional, Green aponta que, no seu entender “a elaboração imaginativa está muito ligada à ausência” (Green, 2000, p. 65), pois, como já afirmara anteriormente, na sua concepção, a psique se constitui num relacionamento entre dois corpos, um deles ausente. A interpretação que Green faz da noção de elaboração imaginativa está, ao meu ver, relacionada com a ideia desenvolvida por Winnicott no artigo “Comunicação e falta de comunicação levando em consideração o estudo de certos opostos” (Winnicott, 1965j) de que é na ausência de satisfação que o objeto pode ser percebido como separado do self da criança ainda em constituição. Dito de outro modo, é principalmente através das experiências de frustração [3] que a criança fará a passagem do objeto subjetivo para o objetivo. Pontalis ressalta a importância que Winnicott confere à ausência como um vazio necessário, afirmando que a tópica freudiana não é capaz de dar conta dessa dimensão da ausência inerente à natureza humana “Poder-se-ia dizer que é da não existência que a existência pode começar” (Winnicott, 1974, p. 76). Nessa, a elaboração imaginativa transforma o não vivido em uma experiência vivida, em algo que pode ser reconhecido, transformando a ausência em presença, não apenas do objeto mas do próprio self que se constitui a partir dessas experiências de estar vivo. Nesse sentido, encontramos no adendo ao artigo sobre “Objetos transicionais e fenômenos transicionais (Winnicott, 1971a) uma referência de Winnicott ao “lado negativo dos relacionamentos”, que corresponderia ao gradativo fracasso que deve ser experienciado pela criança na ausência dos pais. O autor confere à ausência a potencialidade de "manter as pessoas vivas na realidade psíquica interna” (Winnicott, 1971a, p. 39), afirmando que a capacidade de simbolizar tem seu desenvolvimento, em grande parte, na possibilidade de representar o objeto na sua ausência, “a coisa real é a coisa que não se encontra ali” (Winnicott, 1971g, p. 41). A partir dessas premissas, podemos considerar que as sensações corporais decorrentes da ausência do objeto serão elaboradas imaginativamente, numa relação que se estabelece pelo negativo, mas que se torna fundamental para a constituição do self, inaugurando o vasto campo existente entre a objetividade e a subjetividade, entre “a realidade externa ou compartilhada e o sonho verdadeiro”(Winnicott, 1971g, p. 44). Ampliando ainda mais esse campo referente à ausência no desenvolvimento emocional, Pontalis questiona se a criatividade primária concebida por Winnicott como fundamental, anterior à sublimação das pulsões, não seria “a nostalgia de um imediato que elimina a distância necessariamente introduzida pela representação” (Pontalis, 2005, p. 208). A partir desse questionamento, podemos inferir a hipótese de que o trabalho de elaboração imaginativa se apresenta como uma ligação entre esse “imediato" encarnado na experiência do corpo e a futura capacidade de representar, que permitirá o ingresso no universo simbólico. Estas questões contribuem para pensar a clínica psicanalítica, ampliando as perspectivas em relação à escuta do analista e ao manejo de pacientes que nos confrontam com os limites da técnica clássica. Segundo Pontalis, “toda a investigação teórica de Winnicott esteve marcada pelo encontro com o que, na psicanálise, nos confronta com os limites do analisável, casos limites, situados entre neurose e psicose, que desafiam as capacidades e o ser do analista” (Pontalis, 2005, p. 206). Nesse sentido a elaboração imaginativa se apresenta como um modo de escuta, encarnada, isenta da racionalidade excessiva que poderia incorrer na intrusão da interpretação ou no conluio do analista com o falso self do paciente. Nos dois casos a análise não estaria cumprindo sua função, permanecendo no “vão e laborioso preenchimento, interpretativo por um lado, ou associativo por outro, de um espaço desértico” (Pontalis, 2005, p. 207). Nessa perspectiva, ao pensar a interpretação e a comunicação no setting analítico (Bonaminio, 2010), Bonaminio afirma que a elaboração imaginativa consiste numa atividade do self do analista que o permite investir no paciente. Considerando que Winnicott estabelece uma diferenciação entre pacientes que viveram experiências satisfatórias no início do desenvolvimento emocional, que poderão ser reeditadas transferencialmente, e outros que encontrarão na análise a oportunidade de ter experiências satisfatórias pela primeira vez, esta atividade do self do analista antecederia a contratransferência. Esta atividade ocorre através da identificação primária, num modo espelhado através do qual o self do paciente se apresenta ao analista a partir do contato que se estabelece entre os corpos durante o encontro analítico, consistindo numa experiência sensorial. Roussillon contribui para a compreensão desta hipótese afirmando que “as experiências subjetivas arcaicas estão intimamente articuladas aos estados do corpo e às sensações vindas dele” (Roussillon, 2012, p. 21), o que auxilia ao entendimento da importância da escuta ampliada do analista no atendimento de pacientes cujo sofrimento, na falta de palavras para se expressar, encontra no corpo alguma forma de inscrição. Isso significa que a atenção do analista se amplia em direção ao campo da sensorialidade, tanto no que se refere ao corpo do paciente, seus movimentos, variações de tom de voz, mudanças de tônus durante a sessão, como à percepção de seu próprio corpo sendo afetado pelo contato que se estabelece entre a dupla. Roussillon supõe o estabelecimento de uma respiração associativa composta pelo tempo analítico, no qual elementos representativos possam ser desligados para serem introduzidos em uma nova combinação, assim como um tempo de síntese, no qual ocorre uma construção que permite que elementos esparsos sejam reunidos compondo um novo contexto representativo. O autor propõe uma "conversa analítica" (Roussillon, 2010) inspirada no jogo do rabisco, na qual a interpretação do analista, regendo a passagem entre esses dois tempos, irá compor um jogo que propicia a abertura de sentidos. Este trabalho se baseia nas associações verbais e não verbais, de modo que nos permite propor a hipótese de que a elaboração imaginativa, tanto do analista como do paciente, consistiria um recurso no estabelecimento dessa comunicação ampliada para além das palavras. Essa perspectiva se torna relevante para a clínica psicanalítica contemporânea, constantemente desafiada pela incapacidade de tantos pacientes, sejam eles somatizadores, adictos, depressivos ou borderlines, de encontrarem palavras para comunicar seu sofrimento, aprisionados no deserto da precariedade de representações que impede a livre associação e as equações simbólicas. Nessas condições, o caminho que leva das sensações ao pensamento ainda está por ser construído com o auxílio do analista, construção facilitada pela possibilidade deste incluir a dimensão sensorial na sua escuta, ampliando-a para além das palavras. Bibliografia Green, André. (2000). André Green e a fundação Squiggle. São Paulo: Roca, 2003. Phillips, Adam. (1988). Winnicott. São Paulo: Idéias & Letras, 2007. Phillips, Adam. (2006). Winnicott. São Paulo: Ideias & letras. Pontalis, Jean-Bertrand. (2005). Entre o sonho e a dor. São Paulo: Ideias e Letras. Roussillon, René. (2010). Transferência paradoxal e modificações técnicas. Jornal de Psicanálise, 43 (78), 13-18. Winnicott, Donald Woods. (1954a). A Mente e sua Relação com o Psicossoma in: Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas (pp. 332-346). Rio de Janeiro: Imago Ed., 2000. Winnicott, Donald Woods. (1965j). Comunicação e Falta de Comunicação Levando ao Estudo de Certos Opostos in: O Ambiente e os Processos de Maturação (pp. 163-174). Porto Alegre: Artmed, 1983. Winnicott, Donald Woods. (1971a). O Brincar e a Realidade (B. Longhi, Trans.). São Paulo: UBU, 2019. Winnicott, Donald Woods. (1971g). A criatividade e suas origens in: O Brincar e a Realidade (pp. 108-140). Rio de Janeiro: UBU, 2019. Winnicott, Donald Woods. (1974). O Medo do Colapso in: Explorações Psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 70-76). Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. Winnicott, Donald Woods. (1986b). Tudo Começa em Casa. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Conselho editorial da revista Percurso. [2] John Stuart Mill, filósofo do século XIX, é uma das principais referências quando se trata de discutir o papel da indução. Em Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva de 1843, ele nega que as inferências geradas a partir da indução sejam criações, estando relacionadas aos eventos. Embora admita que a mente desempenha um papel importante na construção das ideias elimina qualquer caráter subjetivo em sua construção, sendo que quaisquer observadores que se deparassem com os mesmos fatos deveriam inferir as mesmas conclusões. Para maiores esclarecimentos ver J.S. Mill, Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva, Col. Pensadores (Abril Cultural, São Paulo, 1979). [3] É importante distinguir frustração de privação, a primeira é uma experiência de falta que pode ser sustentada pela criança sem que ela vivencie um movimento de desintegração. Já a privação desencadeia agonias impensáveis, que jamais poderão ser elaboradas imaginativamente dado o seu caráter traumático.
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