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    58 Abril 2021  
 
 
LEITURA

UMA POLÍTICA EMANCIPATÓRIA EM JACQUES LACAN


Em novo livro, Vladimir Safatle expõe como a experiência intelectual e
clínica de Lacan desarma dispositivos de domínio e transforma realidades.



RAFAEL PINTO MORAIS [1] ]



Vladimir Safatle é um dos pensadores mais competentes e combativos da atualidade. Diligente em sua produção acadêmica e implacável nos artigos que publica em diversos veículos de comunicação, o professor do Departamento de Filosofia da USP tornou-se referência para quem deseja uma compreensão verdadeiramente crítica dos problemas que nos assolam. Em seu mais recente livro, Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Belo Horizonte: Autêntica, 2020), Safatle mantém-se fiel a seu percurso intelectual e entrega ao leitor reflexões necessárias em tempos tão confusos.

Em oposição à tradição humanista, que, no início da modernidade, tomou para si a tarefa de discutir quais seriam as melhores maneiras de organização institucional das cidades, Nicolau Maquiavel ensina que o universo da vida comunitária é uma esfera autônoma, regida por leis próprias e distintas. Desse modo, todo saber que tenha a pretensão de abarcar a política deve levar em conta apenas a “verdade efetiva” das coisas, e não a imaginação ou princípios provenientes de outros campos.

Em Maneiras de transformar mundos, Safatle mantém a crença na autonomia do político instituída por Maquiavel. Logo nas primeiras páginas, surge o alerta de que é sempre um erro empreender a psicologização do campo político, pois reduzir sua dinâmica a categorias estranhas necessariamente leva a leituras parciais que pouco elucidam as lutas sociais. Contudo, isso não significa que a psicanálise deva se ausentar ou ter um papel secundário em tais discussões. Para o autor, uma experiência intelectual e clínica como a de Jacques Lacan incide sobre a política justamente porque problematiza questões maiores vinculadas ao drama das relações, como liberdade, alienação, alteridade e identidade.

Para Safatle, o legado de Lacan tem valor inestimável. O psicanalista soube compreender todas as implicações disciplinares da categoria de indivíduo enquanto agente de si, desconfiou das pretensões revolucionárias de um sujeito histórico responsável pela atualização de certo sentido previamente dado, expôs a ineficácia dos arroubos contestatórios que pouco fizeram às estruturas de dominação na década de 1960, e, acima de tudo, conseguiu enunciar outra experiência para além das relações de sujeição com sua gramática própria. O pensamento lacaniano, portanto, pode nos auxiliar, dentro e fora da clínica, a desarmar dispositivos de poder que nos fazem sofrer e a empreender esforços rumo a formas de vida emancipadas, até hoje sem precedência.

Fazer a leitura da obra de Lacan buscando suas incidências políticas e as ressonâncias que apelam a outros modos de relação não é tarefa fácil. De modo geral, Safatle é muito bem sucedido porque conhece a teoria e acerta nos recortes que melhor podem lhe auxiliar. Identificação, gozo, transferência e ato são os quatro eixos que elenca para conduzir o leitor pelas implicações políticas da psicanálise lacaniana ao longo de seu processo de formação. Em seus apontamentos, Safatle ainda assume a defesa de Lacan contra seus mais conhecidos críticos: Deleuze e Guattari, com sua oposição de clara matriz espinosana ao conceito de desejo como negatividade; Judith Butler, com suas proposições que estabelecem equivalência entre negatividade e paralisia; e Nancy Fraser, com sua denúncia da psicanálise como forma de preservação da estrutura heteronormativa e binária que constrange os corpos em posições determinadas.

No primeiro capítulo de seu livro, Safatle se debruça sobre alguns textos que Lacan publica nas décadas de 1930 e 1940, os quais expõem preocupações clínicas que não se furtam a fornecer certo diagnóstico de época e alguns alertas de indubitável cunho social. Para o jovem Lacan, o declínio da imago paterna dá a conhecer os verdadeiros elementos constitutivos do Eu: agressividade, narcisismo, estrutura paranoica e desconhecimento. O fascismo, por sua vez, seria o resultado dos processos de identificação que garantem laços sociais e da ascensão do próprio Eu ao lugar simbólico do poder no momento em que as sociedades modernas testemunham o colapso da ordem patriarcal. Segundo Safatle, a partir das experiências com grupos de trabalho conduzidas pela psiquiatria inglesa durante a guerra, Lacan ainda vislumbra outras possibilidades de organização social: um sistema de relações igualitárias e cooperativas que poderia ser garantido justamente pela manutenção do vazio no lugar do poder. Vale lembrar aqui o quanto a filosofia política francesa da época recebe influência direta de Lacan, principalmente na figura de Claude Lefort, cuja teoria da democracia é uma tentativa de afastar os perigos do Um e das ações empreendidas em seu nome, as quais recusam qualquer alteridade exterior.

A partir da década de 1960, a teoria lacaniana se torna mais complexa com as discussões acerca do registro Real e a introdução dos conceitos de gozo e objeto a. Lacan não sai ileso do contato com O erotismo , de Georges Bataille. No capítulo dois de Maneiras de transformar mundos, Safatle procura mostrar como o psicanalista estabeleceu aproximações entre uma dada ordem social produtora de neurose com seu gozo fálico e o sistema capitalista com sua peculiar economia libidinal. Lacan, influenciado pela crítica marxista de Louis Althusser, acredita que o capitalismo promove a adesão a si por meio de uma intrincada forma de espoliação do gozo humano. Dentro das teias do capital, aquilo que há de mais disruptivo transforma-se em algo dócil, amestrado, em uma espécie de incitação que deseja apenas o dado e nunca se realiza plenamente fora de contornos estabelecidos. Subjaz a toda essa teorização a crença segundo a qual um regime de dominação não coopta apenas por meio de aparatos de opressão; são imprescindíveis também estratégias de sujeição que operem no campo do desejo. Segundo Safatle, Lacan ensina que qualquer ação social transformadora é indissociável da emergência de um gozo capaz de levar a experiência para além das possibilidades imanentes de reprodução da estrutura simbólica.

Quem acompanha o percurso de Safatle sabe o quanto lhe são caras as noções expostas no terceiro capítulo de seu livro. O autor vem concentrando seus esforços intelectuais na elaboração de uma crítica radical do princípio segundo o qual livre é aquele capaz de exercer autolegislação e autogoverno. Em oposição à acepção de autonomia e suas conhecidas implicações políticas, Safatle forja o conceito de heteronomia sem servidão justamente a partir das considerações lacanianas a respeito da transferência e das condições de sua dissolução para a cura do sofrimento psíquico. Em Maneiras de transformar mundos, o leitor é levado a compreender a transferência em Lacan como uma categoria também política, visto que ela diz respeito à relação que se estabelece com a autoridade e sua força de sujeição psíquica mantida pela suposição de um saber acerca do desejo. Uma vez liquidada a transferência, o sujeito não está apenas emancipado da figura imaginária do Outro e suas injunções, mas também da estrutura significante que sustentava relações constrangedoras. Uma experiência dessa natureza nunca deixa de produzir profundas transformações em formas de vida até então sedimentadas em processos de alienação.

Por fim, Safatle se debruça sobre o ato analítico e seu caráter emancipatório. Diverso do acting out e da passagem ao ato, o ato coincide com um possível término de análise, com a passagem à condição de analista que justamente a liquidação da transferência promove. Para Lacan, nesse acontecimento, a ação é impulsionada por transformações que retiram o sujeito da estrutura que o determinava, por modificações nos modos de inscrição simbólica que o significavam e lhe davam um lugar no mundo. O sujeito autoriza-se de si e pode então advir como potência normativa capaz de produzir singularizações. A emergência do ato, no entanto, pressupõe uma abertura para o campo dos objetos que nos afetam e nos movem, abertura que, por sua vez, só ocorre quando há uma radical destituição subjetiva. Parafraseando Lacan, Safatle explica que a liberdade não vem da possibilidade transcendente de tudo desejar e fazer; ela é o efeito de uma causalidade exterior que é algo em nós mais do que nós mesmos, causalidade que nos descentra de nossas posições e que está enraizada na história insubmissa de nossos desejos. O grande desafio que Safatle enxerga, nos dias de hoje, é o de pensar formas de laço social a partir das experiências enunciadas pela psicanálise lacaniana. Para o autor, uma reflexão sobre o dispositivo do passe talvez possa servir de ponto de partida.

Em 1965, Michel Foucault fez sua primeira visita à USP na condição de professor visitante do Departamento de Filosofia. Segundo relatos, Foucault teria dito que ali, entre os docentes brasileiros e suas atividades acadêmicas, ele se sentia em um departamento francês de ultramar. Vinda de um pensador tão peculiar, essa afirmação deve ser lida tanto como um elogio quanto como uma provocação. As famosas missões francesas, que fizeram parte da fundação e consolidação da USP, tinham surtido efeito: por aqui, estudava-se com rigor o cânone e desenvolvia-se um tipo de discussão minuciosa acerca de seus autores. Por outro lado, ainda não se encontrava, entre nós, um pensamento que se permitisse maiores saltos, que trouxesse frescor ou fundasse algo de próprio.

Depois de mais de cinquenta anos, seria apressado ver em Maneiras de transformar mundos mais um comentário uspiano que poderia ser reduzido ao que Foucault expôs em relação à nossa produção filosófica. Há inegável competência autoral em retirar de uma obra psicanalítica reconhecidamente hermética suas implicações políticas e expô-las em um texto fluido, repleto de excelentes indagações. Safatle sabe também da urgência de seus esforços e oferece ao leitor um olhar sobre Lacan capaz de denunciar o fascismo que ressurge às claras no Brasil. Como se não bastasse, o autor nos instiga a pensar em formas mais potentes de luta política que em nada se pareçam com aquela obediente rebeldia que hoje ocupa os mais diversos espaços, a mesma que, insciente, propaga a lógica neoliberal que pretensamente procura combater...



[1] Rafael Pinto Morais é aluno do 2º ano do curso Conflito e Sintoma, oferecido pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do coletivo Escuta Sedes. É formado em Filosofia pela USP e em Letras pela PUC-SP, onde também obteve o título de Mestre em Ciências Sociais.



 
 
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