EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE
Diz a lenda que, ao amanhecer de 25 de abril de 1974, uma florista levava cravos para decorar um hotel quando foi surpreendida por um soldado solidário à revolução portuguesa, que colocou um de seus cravos na ponta da espingarda, e em seguida todos os outros fizeram o mesmo.
Todo um mar nos separava então da festa que punha fim ao Estado Novo salazarista. Os versos de Chico Buarque souberam assim dizê-lo:
Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
Vetada pela censura brasileira, a gravação de
Tanto Mar foi naquele tempo editada apenas em Portugal. Em 1978 Chico Buarque comporia uma segunda versão daquela canção, pela qual lamentava o golpe militar português que, em novembro de 1975, pôs fim ao processo revolucionário em curso:
Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim
Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar
Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim
Nesta primavera de 2014, seis dias depois da reeleição da presidente Dilma Rousseff, redes sociais reuniram estimadas 2.500 pessoas em frente ao MASP, num ato onde o empresário Paulo Martins se dirigiu ao seleto público dizendo: "Boa tarde,
reaças". Desde os começos de 2013, esse tipo de possibilidade foi assim retratada pela cartunista Laerte: "nova Arena, Orgulho Hetero... A direita se organiza e isso é sinal de que sua hegemonia não é mais uma questão 'pacífica'".
Em torno da renitente presença da separação social, as "orelhas" atentas de Renato Janine Ribeiro (ao mais recente livro do filósofo Jacques Rancière,
O ódio à democracia, editado pela Boitempo) articularam as seguintes palavras, de lúcida simplicidade:
"Nos últimos anos, o Brasil se tornou um exemplo de inclusão social, com dezenas de milhões de pessoas saindo da pobreza e da miséria para terem uma vida melhor. Em que pese a inclusão ter ocorrido sobretudo pelo consumo - mais que pela educação -, ela mudou o país. Hoje, ninguém disputa o Poder Executivo atacando os programas de inclusão social. Eles se tornaram um consenso junto à grande maioria dos eleitores. Entretanto, um número expressivo de membros da classe média os desqualifica, alegando diversos pretextos. Para eles, o Brasil era bom quando pertencia a poucos. Assim, quando os
polloi - a multidão - ocupam os espaços antes reservados às pessoas de ‘boa aparência’, uma gritaria se alastra em sinal de protesto.
O que é isso, senão o enorme mal-estar dos privilegiados quando se expande a democracia? Democracia é hoje um significante poderoso, palavra bem-vista e que agrega um número crescente de possibilidades, indo da eleição pelo povo até a igualdade entre os parceiros no amor. Mas essa expansão da democracia incomoda. Daí, um ódio que domina nossa política, tal como não se via desde as vésperas do golpe de 1964, condenando medidas que favorecem os mais pobres como populistas e demagógicas".
Por isso, para nós, aos 50 anos do golpe civil-militar no Brasil - sem murchar a festa que dele nos distancia -, entre-ver
o mar que atravessamos nos anima diante do tanto de mar que ainda temos a atravessar.
Para saber mais:Tanto Mar, 1a e 2a versão + entrevista com Chico Buarque:
https://www.youtube.com/watch?v=Pj5VuYSmd4k&feature=em-share_video_user O mar que atravessamos, exposição de Fernando Vilela. Clique aqui para conhecer a documentação fotográfica completa:
http://www.fernandovilela.com.br/vilela/exposicoes/14virgilio_fotos.html