A proposta deste texto é comunicar minha particular leitura do conteúdo dos 49 resumos dos trabalhos apresentados durante o Entretantos II (17/9 e 29/10)
MARIA AUXILIADORA DE ALMEIDA CUNHA ARANTES[1]
O Entretantos II deixa um legado entrelaçado de palavras que transitam entre a psicanálise e a política. As ruas abertas pelas palavras tensionadas entre os dois campos criaram cumplicidade.
Sobre a relação psicanálise e política vale lembrar: em 2012 o Departamento propôs a realização do evento O Racismo e o negro no Brasil - questões para a psicanálise; em 2014 foram feitas ações referentes à ditadura de 1964, a publicação da revista Percurso 52 - Figuras políticas do Mal: limites do humano, a realização do evento Ditadura civil-militar no Brasil, o que a psicanálise tem a dizer e a edição 32 do Boletim Online que reverberou os trabalhos deste evento. Hoje encerramos a segunda etapa do Psicanálise e Política proposto para o evento Entretantos II dentro da comemoração dos 30 anos do nosso Departamento. A proposta principal, anunciada no convite ao Entretantos é que o espaço de formação permanente de psicanalistas inseridos na cultura e no campo social seja fortalecido.
As próprias palavras escolhidas para dar nome aos encontros a que me refiro expressam uma aproximação cautelosa. Do evento sobre o racismo e o negro - inaugural dentro do Sedes - onde pensamos sobre questões a serem processadas, passando pelo evento sobre a ditadura civil-militar, convocando a psicanálise a dizer, chegamos a um encontro inquieto onde os campos psicanálise e política ficaram frente a frente, sem verbos que propusessem ação. Face a face, simplesmente: Psicanálise e Política.
Não houve territórios designados, nem contornos pré-estabelecidos. Ambos, psicanálise e política, foram oferecidos com a mesma grandeza. Que a aproximação se fizesse. Que os textos se organizassem. Que os grupos se reunissem. Muitos, integrados por parceiros de trabalho dentro do Departamento que se ocupam da transmissão, da intervenção clínica, da pesquisa, da escrita, do estudo e da leitura. Também grupos em formação, atentos ao que convoca a psicanálise para acolher a angústia e processar seus transbordamentos. Houve os que se apresentaram à capela: comunicaram inquietações congeladas, reverberando vozes em sofrimento, pensando lugares interrogados pela cultura em trânsito.
Sendo a psicanálise não redutível à sexualidade e nem às ordenações de gênero, como escutar as novas subjetividades? Frente ao a priori feminino em direção à mãe mítica e à fragilização do masculino ocorre um fomento crescente das políticas de intolerância. Masculino e feminino juntos e misturados e o Édipo ainda na estrada, tentando escapar ao seu destino. Onde os poetas gregos poderiam supor tamanha reconfiguração? Nem eles e nem nós. Famílias em busca de novas parcerias: monoparentais, anaparentais, descentradas de seus fixos lugares. Famílias reconstituídas e a explosão do poliamor. Mãe e ao mesmo tempo mulher, assunto em discussão e inquieto. Embates para a maternidade desassistida e vulnerável. O prefixo trans se impôs em relação à diversidade de gênero, sexual; transgressões, transformações subjetivas, sociais e políticas. Palavras sugerem o caminho feito: transgênero, transexual, transformação, transubjetiva, transgressão, transmigração, transitoriedade, trânsito.
Trocas intergeracionais buscaram o reconhecimento para construções que acolhessem diferenças. Inquietações clínicas sustentam o diálogo entre psicanalistas supondo que a escuta não é neutra e que as questões do mercado e da técnica incidem sobre o fazer clínico, sobre o enquadre e o contrato. Ambos, analista e paciente, imersos nas condições históricas dadas. Tornar-se analista e ser independente, em direção a uma práxis singular. A subversão discursiva na clínica cotidiana é capaz de fazer furo em um saber hegemônico no âmbito social e põe em marcha a subversão política. O resgate da clínica social está em discussão: referência ao que foi proposto por Freud em 1919: atender as populações mais pobres.
O lugar da clínica permanece inconteste. A configuração do espaço, nem tanto. Espaços protegidos, recobertos com tapeçarias e à meia luz foram preteridos? Desmontados? Não, não foram. O que aconteceu é que analistas talvez tenham ampliado e/ou refinado sua escuta, acolhendo mais e melhor inquietações que passam também pela cultura e que trazem novos discursos da dor. Dispositivos clínicos e grupais construíram parcerias novas fora dos tradicionais lugares institucionais, que se tornaram enrijecidos sob políticas públicas de mau governo. A recepção de pacientes graves nestes equipamentos, onde se quer falar das subjetividades e do privado, torna-se complexa e muitas vezes, impossível. Uma proposta incomum: que as medicações possam ser escutadas, na parceria entre a química das palavras e a química da medicação.
As relações entre psicanálise, política e trabalho convocam a pensar sobre a naturalização do sofrimento físico e psíquico advindo do trabalho, evitando sua cristalização que certamente favorece a banalização do mal e da injustiça social.
Fora de instituições tradicionais, grupos de música sinfônica, de arte, de teatro oferecem possibilidades de novas referências simbólicas para os jovens e para falar sobre loucura e guerrilha. Oficinas de arte e psicanálise possibilitam a confrontação com a dor do outro.
Acompanhando grupos de saída de pacientes psicóticos, organizando modalidades de escuta de quem está em sofrimento, cria-se nova chave para a psicanálise e para os que a abraçam como práxis, um ofício, uma quase missão.
A estes espaços outros se somaram: espaços na cidade, sem paredes, na rua, onde os psicanalistas vão, não mais esperam que venham. Saem em grupos, vão às praças e ocupações. Vão ao território onde se encontram os que lá estão há muito tempo e os que chegam agora. Ali estão em condição de sofrimento, sem lugar, invisíveis, errantes. Migrantes chegam expulsos de suas terras e junto a eles há psicanalistas se aproximando. Caso ainda não o façam, pensam fazer: informam-se para ampliar este campo sem fronteiras.
Procura-se entender porque o Brasil é dito cordial quando todos sabemos mas negamos, encobrimos ou recobrimos nossas origens habitadas de africanos sequestrados em seus países e escravizados até 1888 comprovadamente. Os povos indígenas apresados e exterminados em etnocídio são referidos como assunto esvaziado. Fotos recentemente estampadas na Folha de São Paulo apresentam estes fatos. São uma prova. E as nações indígenas que aqui já estavam quando chegou o colonizador português? Sobre os africanos escravizados, bem como em relação aos indígenas exterminados, pouco se ouve sobre um pedido de desculpas dos que governam o país.
Estas histórias são assunto para psicanálise? Neste encontro são sim. Fizeram-se história para a psicanálise. Trabalhos foram debatidos ao lado de outros que pensaram sobre o ódio que habita mais recentemente o país e que fez morada nos corações e nas mentes. A desmontagem do Estado brasileiro, ou as tentativas de torná-lo mínimo, desvelam uma cara do Brasil que não é cordial. A ilusão, a desilusão, o colapso sob o cinismo tornam-se conceitos e referências para pensar o país.
Aquilo que não encontrou enlace no psiquismo e nem no social permanece na figura do trauma. Testemunhos rompem o silenciamento sobre as reverberações da violência de Estado durante a ditadura civil-militar e seus desdobramentos ainda hoje. Os filmes O oco da fala e O grito silenciado ampliaram falas dos afetados e a história das ossadas ainda não identificadas, na busca dos desaparecidos. A fenda por onde escoa a dignidade do país continua aberta desde que se decidiu que os crimes de lesa-humanidade praticados durante a ditadura civil-militar não devem ser julgados. Permanece exposta, a fratura. A impunidade fomenta novas violações agora contra os vulneráveis pretos e pobres da periferia das cidades grandes. Povos indígenas remanescentes, tutelados pelo Estado por força de lei, continuam, paradoxalmente, abandonados. Pode-se dizer que desde o descobrimento, histórias recobridoras buscam manter a percepção recusada que foi transmitida intergeracionalmente. Um desafio à ética da psicanálise se impõe. O que fazer? Onde e quanto política e psicanálise se afetam: o político está situado unicamente no exterior ou no centro da estruturação e organização psíquica do sujeito? Política e processo civilizatório andam juntos, diz Viñar - penso que estamos de acordo.
Autores se referem às contribuições de Reich e à decorrência pessoal e para o campo psicanalítico de seus posicionamentos, expressos principalmente no seu livro Psicologia de massas do fascismo.
Sobre os movimentos de resistência no país, um chamamento aos psicanalistas para escutar novos lugares instituídos, principalmente pelos jovens. Sim, há esperança em trânsito.
Grupos que se responsabilizam pela escrita que circula nas publicações do Departamento, Revista Percurso e Boletim Online, trabalharam sobre a política da escrita, interlocução com autores e transmissão de suas vozes. As comunicações transitam sobre um terreno que exige delicadeza, sempre.
Sim, a Articulação do campo psicanalítico deve sustentar a diversidade e a boa construção de espaços de interlocução entre as diferentes escolas teóricas. Ganhamos todos.
Termino fazendo uma explicação
Este conjunto de ideias não é majoritariamente de minha autoria. Eu os reuni, na função que me foi proposta de encerrar este Entretantos II. Os organizadores do evento me disponibilizaram um arquivo com todos os resumos dos textos que seriam apresentados ao público. Assisti a Abertura e Encerramento, com a apresentação dos filmes ao final da primeira etapa. Total: quarenta e sete resumos e dois textos apresentados na abertura do evento.
Não sabendo por onde começar, conversei com cada um dos organizadores que me sugeriram não trazer um escrito e deixar a palavra em circulação. Hoje é dia do plenário. Não consegui permanecer no combinado. Me autorizei a correr um risco. Procurei, nas palavras escolhidas pelos autores para construir os resumos, a matriz desta apresentação. Certamente haverá um livro, uma publicação on line, uma coletânea que dê conta desta produção. Esta tem sido uma praxe em nosso Departamento. Por isso fico aliviada sabendo que ocorrerá o acesso à integralidade dos textos.
Os resumos não trouxeram palavras-chave.
Li e reli, resumi os resumos, buscando as palavras que fossem chaves.
Fiz uma lista de palavras e uma lista dos conteúdos dos resumos.
Construí três listas:
A primeira, relação dos autores e referências teóricas apresentadas nos resumos.
A segunda, relação das palavras que eram repetidas mais vezes em resumos e que me chamaram a atenção: foram as palavras com o prefixo trans.
A terceira lista que me pareceu quase sem limites: 700 palavras colhidas dos resumos. Esta lista foi crescendo a cada leitura e aumentava a cada manhã.
O que decidi, e assumo o risco, foi escrever o que li para vocês esperando que tenham se reconhecido, apesar da construção que enlaçou textos de diferentes autorias com significados possivelmente diversos. Repeti a leitura muitas e muitas vezes para conseguir elaborar.
Diagnóstico: pretensão? Insensatez? Não, um privilégio.
Privilégio de acessar, de uma só vez, textos que consolidam o Departamento como referência de psicanálise, da psicanálise e na psicanálise.
Finalizo abrindo uma tela com as palavras de prefixo trans misturadas e coloridas.

Nuvem de palavras de Sergio Kon
Departamento de Psicanálise do ISS
29 de outubro de 2016
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[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.