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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    43 Setembro 2017  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

SOBRE O ENCONTRO PSICANALISTAS NA RUA: AMPLIFICANDO A VOZ E ESCUTANDO O RUMOR DAS MARGENS


JULIANA FARAH[1] e MÁRCIO DE ASSIS[2]


A disputa pelo espaço público retomou importância nos últimos anos com as agitações no campo político. Assim, no melhor estilo das ágoras, espaço aberto onde qualquer cidadão grego poderia tomar a palavra para discutir sobre política e questões sociais, foi convocada para o dia 03 de junho de 2017, na Praça da República, uma conversa-ato organizada por psicanalistas, com o intuito de fazer circular a palavra e possibilitar a construção coletiva de ações diante das medidas que têm sido tomadas pelas atuais gestões da Prefeitura e do Estado de São Paulo com relação à região paulistana apelidada de Cracolândia. Duas semanas depois de uma operação desastrosa protagonizada pela polícia na região central da cidade de São Paulo, permeada por bombas, tiros e prisões – não só de possíveis traficantes, mas também de usuários –, quatro psicanalistas se uniram, mobilizaram-se e criaram um coletivo, o Psicanalistas na rua.

Composto por Aline Molina, Ana Laura Prates Pacheco, Enzo Cléto Pizzimenti e Odonel Serrano, os Psicanalistas na rua: amplificando a voz e escutando o rumor das margens criaram um evento convocatório que logo se espalhou pelo meio virtual, com o apoio de figuras importantes do campo psicanalítico, instituições de formação em psicanálise e institutos de saúde, alcançando outras cidades, como Curitiba e Rio de Janeiro, e em poucos dias teve a adesão de mais de mil pessoas (o evento também foi transmitido on line). O encontro presencial foi realizado na Praça da República e durou mais de três horas, contando com a presença de psicanalistas, músicos, artistas, assistentes sociais, médicos, psicólogos, líderes de movimentos sociais, jornalistas, fotógrafos e transeuntes que circulavam pela feira de artesanatos da praça. A figura de Eduardo Suplicy, ex-Secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Cidade de São Paulo e atualmente vereador deste município, não passou desapercebida.

Com o microfone funcionando, graças a um carrinho-gerador providenciado pelo Instituto A Casa, a palavra circulou entre muitos: bastava ter algo a dizer para ter sua voz escutada. Aline Molina, uma das organizadoras do Psicanalistas na rua, iniciou o ato enfatizando a importância da circulação da palavra em espaços públicos de forma aberta, e da responsabilidade de nós psicanalistas em contribuir para a inclusão dessas variadas vozes nas discussões e debates. Suplicy, logo no início, disse ter achado interessante que psicanalistas, psicólogos e outras pessoas estivessem no centro para discutir a problemática do crack, ressaltou considerar abusiva a operação feita pela Prefeitura e que compareceu ao ato especialmente para escutar e aprender. Ana Laura Prates Pacheco tratou de delimitar um campo importante ao ressaltar que não estavam ali falando em nome da psicanálise e nem dos psicanalistas, mas sim em nome próprio. E dos nomes próprios por onde a palavra circulou, destacamos a fala de alguns que por lá passaram.

A dimensão consumista da relação com as drogas, que aponta para o fato de que os dependentes químicos representam o ideal da sociedade de consumo capitalista, uma vez que não medem esforços para adquirir e consumir seu objeto-mercadoria, foi trazida por Raul Pacheco Filho. Ele ressaltou ainda a questão da presença do consumo de drogas na sociedade humana de forma ampliada, não apenas das ilícitas, mas também de álcool, tabaco, psicotrópicos, entre outras, trazendo para o debate a truculenta posição dos atuais governantes estadual e municipal de querer fazer desaparecer de nossas vistas as “cracolândias”, derivadas do mal-estar de existir.

Saindo um pouco daquilo que nosso imaginário comporta sobre saúde pública, Maria Rita Kehl apontou a existência de três problemas que tocam diretamente este tema e são muito pouco cuidados: a miséria, o tráfico e a Polícia Militar. Segundo ela, os governos federais Lula e Dilma fizeram muito mais pela erradicação da miséria no Brasil do que os programas estaduais ou municipais de combate ao uso de drogas. Estes três pontos estariam relacionados intrinsicamente, sendo que o número de mortos em decorrência da guerra ao tráfico é muito maior que o de mortos em decorrência de overdoses, e incide mais sobre a população pobre. Colocar a PM, militarizada como na ditadura, no debate sobre saúde pública e responsabilizá-la como agente direto de mortandade, estimulou aplausos do público ali presente, e fez lembrar que existem ditaduras permanentes no Brasil.

Pouco a pouco o espaço aberto em praça pública e as pessoas que circulavam por ali começaram a se articular com o evento. A roda de conversa que inicialmente era formada por aqueles que atenderam a convocatória foi ganhando em diversidade. Transeuntes começaram a se aproximar e emitir suas opiniões, mesmo que de forma lateral. Um senhor que passava por ali nos abordou para dizer que era a favor da internação compulsória, falando: “Não quer ser tratado? Vai arrastado”. Manifestações artísticas também fizeram parte da fria e ensolarada tarde na praça. O artista de rua Alex Cunha e o cantor Supla se apresentaram, além do grupo musical Compulsão Sonora (do Instituto A Casa, composto por funcionários e pacientes).

Presente no evento, Pablo Castanho destacou em sua fala o ambiente criado naquela tarde, onde cada um podia estar lá do jeito que estivesse, revelando a sustentação de um espaço onde a diferença podia aparecer. Lembrou ainda que as equipes que trabalham com a população da Cracolândia possuem uma complexa tarefa: a de escutar os pacientes, colocando-se como massa amorfa e sustentando a ambiguidade, o que é muito difícil nos dias de hoje e no atual cenário político. A questão mais urgente é justamente sustentar essa comunicação de indefinição, poder estar em contato com isso, sem cair na ideia de querer resolver a Cracolândia.

Pudemos escutar também um grupo de psiquiatras falar a respeito da internação involuntária. Renata Zambonelli alertou para a falta de informação que as pessoas de fora da área da saúde possuem sobre o tema. Embora a internação sem o consentimento do paciente, como forma de proteção e cuidado, possa ser necessária em casos específicos, agudos, como o de um surto psicótico, por exemplo, Renata frisou não ser este o panorama atual, proposto pela gestão Dória e endossado por vários médicos. Ela ressaltou a importância de haver um vínculo, uma relação terapêutica já constituída, para avaliação e indicação de internação nos casos crônicos, havendo, assim, um espaço para que se possa confrontar a pessoa com a própria repetição, considerar a subjetividade de cada um e a singularidade do sintoma. O que presenciamos no atual momento com a proposta de internação compulsória em massa está muito distante disso e, ao contrário, acaba por promover o adoecimento inclusive daqueles que estão na posição de cuidadores, uma vez que inflaciona o poder destes de discurso sobre o outro, impondo de forma arbitrária e violenta aquilo que se entende por tratamento.

O evento chegava ao seu fim, e pouco a pouco as pessoas se dispersavam da praça. Era possível ainda ver deitado no meio da roda um morador das ruas da região, que pôde se acomodar entre todos e dormir por quase todo o ato. Estar na rua é encontrar este desconhecido e se deixar tocar.

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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Grupo de Trabalho e Pesquisa em Dinâmicas Grupais e Institucionais e mestranda pelo Instituto de Psicologia da USP.
[2] Psicanalista, aluno do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do Núcleo de Psicanálise do Departamento de Psicoterapia do Ipq-HCFMUSP.




 
 
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