RUBIA DELORENZO[I]
Grande apreensão diante do aeroporto de Frankfurt.
Grande respeito pela língua alemã.
Hub. Braços tentaculares apontam para todas as direções do planeta.
Mar de tubarões. Ar de mísseis.
Luzes, neon, marcadores de percurso.
Velocidade no movimento agressivo das máquinas. Das marcas. Das mercadorias.
Concentração e febre.
Outrora fui Pedro. Agora sou pai.
Fui impelido para frente. Estou, neste instante, sozinho no meio do mundo, espantado como Pedro, ofuscado pelo brilho do inox. Aflito como pai, na exiguidade do tempo, na imensidão do espaço.
Pequeno como Pedro amedrontado.
Perdido, misturado à multidão.
Me esforço, atento.
Hub. Grande boca voraz.
Rostos, rostos, rostos.
Rostos humanos passam tão rápido quanto as aeronaves. A rapidez os desmancha. Vemos uma massa sem traços, sem pesar, indiferente.
Cabeças curvadas. Cabeças erguidas.
Painéis eletrônicos. Tac tac tac. As lâminas giram, alternam voos, indicam destinos. Singapura, Bangladesh, Zürich...
Viajantes – metade homem, metade máquina –, seus corpos ora arqueados, ora alçados para o alto, estão aptos a voar.
Parados, mas moventes. Indo e vindo, comprimidos pela pressa, sou Pedro e sou pai, envolvidos neste mesmo impulso contínuo.
Diante de meus olhos vi as telas de Morandi.
Somos como esses objetos que ele gostava de pintar. Objetos humildes, de uso ordinário, a tigela, a jarra d’água, as flores no vaso... Objetos dispostos quase no ar... a linha de apoio, por pouco desaparecida. Objetos que espreitam tristes. Tensos percebem o movimento ininterrupto da malha de aço, alheia aos anseios humanos.
É assim que estamos no meio do aeroporto: louças delicadas em meio a fascinantes metais áridos. Corpos apenas insinuados, apoio frágil no limite do desmaio. Já, já, tragados pelo rolo compressor das rolantes. Nervosos, aos tropeços, somos a criança que foi Pedro, e o pai que mal respira.
Estranha a experiência a de voar.
De nada enxergar através das nuvens.
Estar no acaso.
Tudo parece imóvel ao redor.
Ignora-se o deslocamento veloz.
As horas também passam, mas o tempo parece detido.
As pernas pedem movimento. Formigam.
As costas doem. Beliscam.
Melhor distrair-se.
Melhor não pensar no suicídio dos pilotos, na excitação da cocaína, no sequestro terrorista.
Sem falar na queda de aviões. Dizem que quando cai um, ao todo são cinco que caem. Lenda?
Estatística?
Melhor pensar no futuro de uma noite ou de um dia. Em quem nos espera, na ansiedade para ganhar o saguão. No tempo de distribuir a paçoca, o polvilho doce, a tapioca, a caixa esperada de sonho de valsa. Nos abraços que colam, no calor dos corpos saudosos, nas boas novas ditas na nossa língua.
Queremos ouvir os batimentos, sentir os fluxos, queremos estreitar um corpo sanguíneo, ansioso, real.
Quando fui Pedro, esperei febril pelos regressos.
Amava os aeroportos.
Hoje, miúdo como Pedro, nos ossos estreitos como os de criança, sinto o poder deste peso pesado opressor, que está na língua, na engenharia metálica.
Voragem industrial.
2017
[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.