DO OUTRO LADO DA PONTE [1]
FERNANDA ALMEIDA [2]
Enquanto não houver política urbana pública e integrada, as pontes seguem sendo os registros simbólicos da exclusão entre os de cá e os de lá.
– Dona Zélia, meu pai ligou?
A nossa vizinha, D. Zélia, era uma das poucas pessoas que nos anos 1980 possuíam telefone na Rua L, no Bairro da Brasilândia. Era com ela que eu buscava notícias de meu pai e de minha mãe, trabalhadores que tinham de cruzar as Pontes da Freguesia do Ó ou do Piqueri, interligações de acesso ao bairro periférico na Zona Norte da Cidade de São Paulo. Parte de minha infância e adolescência foi marcada pela incerteza e medo trazidos pelos períodos de chuva na cidade de São Paulo.
Lembro-me de que, em períodos assim, eu ficava angustiada, sem saber se meu pai e minha mãe conseguiriam chegar, ou ainda, se poderiam sair de casa para trabalhar. Não sei dizer quantas vezes isso aconteceu, mas levo essa marca na minha relação com a cidade e tenho vívidas as descrições epopeicas de meus pais buscando cruzar a ponte e voltar para casa, seja esperando a água baixar, seja pedindo carona em boleias de caminhão. No dia de ontem, dia 10/01/2020, minhas memórias foram revividas nos relatos dos meus irmãos e cunhados que ainda moram na Vila.
A manhã da segunda-feira trouxe-me de volta a aflição da memória e, agora, uma tristeza indignada ao constatar que quem precisa cruzar o rio para vender sua força de trabalho continua, mais de trinta anos depois, não conseguindo ou tendo enormes dificuldades para fazê-lo em períodos chuvosos na capital paulista. As interdições de passagem nas pontes do Rio Tietê em dias de enchente são situações reais, mas também marcas simbólicas da desigualdade social e territorial expressas na urbanização da cidade.
Morar do outro lado do rio é ter a certeza de que você precisará cruzar muitas pontes para acessar seus direitos. São as pontes reais e as simbólicas; com o passar do tempo a obscena repetição das situações, lamentavelmente, parece torná-las intransponíveis. Morar do outro lado do rio é saber que a cidade, reconhecida como sinônimo de centro, e o bairro em que você mora são separados por um rio, recorrentemente intransponível, que se torna símbolo da distância entre dois mundos.
Não deveria ser assim. Afinal, desde o início de sua povoação, todos sabem, ou deveriam saber, que a região de São Paulo é repleta de nascentes. Segundo levantamento de 2016 são mais de 186 bacias hidrográficas catalogadas pela Prefeitura. Porém, na manhã do dia 10 de fevereiro de 2020, São Paulo amanheceu sob estado de alerta; foram muitos pontos de alagamento e áreas interditadas. Filas intermináveis nos terminais de ônibus e trens metropolitanos. Diversas pessoas paradas no trânsito; muitos que conseguiram sair para trabalhar, desesperançados, sequer conseguiam voltar para suas casas. Diferente da minha infância, as notícias hoje correm rápido graças à internet e aos smartphones. Fotos, vídeos vão dando a medida do estrago e evidenciando a persistência, uma repetição da tragédia anual. Ou seja, com mais ou menos intensidade, as chuvas de verão provocam mais que simples transtornos, elas produzem marcas reais e simbólicas, provocam perdas, sofrimento para os mais pobres e para aqueles que estão nas regiões mais afastadas. Contabiliza-se graves prejuízos materiais para todas e todos, mesmo para quem está “do lado de cá da ponte”, mas as perdas simbólicas têm valor não contabilizado, são prejuízos inestimáveis.
O Governo do Estado de São Paulo “agiu rapidamente”; antes das 9h da manhã o Secretário Estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente de São Paulo, o tucano Marcos Penido, já indicava no Programa Bom dia São Paulo da Rede Globo que as pessoas “evitassem sair de suas casas”. Pela minha cabeça pairou a dúvida: quem combina com os patrões? Lembrei-me: em tempos de trabalho intermitente e de empreendedorismo, galgados nas bicicletas dos entregadores de fastfood e da plataforma Uber, você é o seu patrão, portanto, ajuste sua contabilidade com a perda do dia de trabalho. Afinal, em tempos de sociabilidade ultra neoliberal, a única “expressão democrática” é a socialização das perdas entre os pobres.
A narrativa midiática nesses próximos dias será a mesma de sempre, a “culpa” é do volume inesperado de água, do sofá velho que ficou na esquina, da população mal educada que não dispõe o lixo adequadamente, das ocupações irregulares nas encostas, e ainda, das “causas inexplicáveis” que fazem os leitos dos rios transbordarem com o aumento do volume de água. Distraem a opinião pública listando individualmente os culpados. Já os responsáveis, esses nunca aparecem.
Doria foi eleito prefeito de São Paulo para deixar a “Cidade linda” e fantasiou-se de gari no primeiro semestre. Dois anos depois, foi eleito Governador de São Paulo, mantendo a tradição da dinastia tucana dos últimos 25 anos de mandato à frente do (des)governo do Estado. Nesse tempo todo de “gestão”, será que o PSDB não acumulou experiência sobre o grave, periódico e previsível problema social? Qual é o plano para a região metropolitana com relação à prevenção de enchentes? As políticas públicas urbanas são integradas? Aliás, elas existem? Ano após ano o problema se repete: por que não é feito um balanço após a fase crítica, apontando as mudanças necessárias? O prefeito de São Paulo é do mesmo partido, quais são suas propostas? Ontem notícias davam conta da redução de 16,2% do valor orçado para combater as enchentes na cidade no período de 2017 a 2019. Não adianta planos de emergência sem uma articulação integrada das políticas durante o período de estiagem.
Eu, que havia dormido tarde e feliz após assistir à vitória acachapante no Oscar 2020 do hiper-realista sul-coreano Parasita, acordei com a cidade mergulhada na realidade apenas aparentemente distópica do filme. São Paulo amanheceu submersa, mas tenho certeza de que os sentidos vivenciados e os prejuízos sofridos são diferenciados, assim como naquela sequência desconcertante da enchente, em Parasita, na qual a família de Ki-taek se vê frágil diante da força das águas, talvez não menos violenta que a abissal desigualdade que diferencia seu porão da luxuosa e asséptica sala de visita dos Park. A desigualdade representada pelas escadas no premiadíssimo filme de Bong Joon-Ho são as nossas pontes. Lá as escadarias, aqui as pontes. Nos dois casos, as justificativas são as mesmas: a sujeira que inunda a cidade é produzida pelos pobres e não pelo sistema perverso, desigual e ambientalmente insustentável de produzir e reproduzir as cidades que destrói a força de trabalho.
Quem são mesmo os parasitas?
[1] Artigo originalmente publicado no jornal GGN em 11 de fevereiro de 2020.
[2] Assistente social, coordenadora do curso de Pós-Graduação em Serviço Social e Saúde da Faculdade Paulista de Serviço Social – FAPSS. Coordenadora do Projeto de Extensão Desejo e contrafissura: As substâncias psicoativas em tempos de barbárie: desmontando estigmas e colhendo sonhos, na mesma Faculdade. Pesquisadora desde 2005 do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ética e Direitos Humanos (NEPEDH) da PUC-SP. Atua na Rede Pública de Saúde-SUS em Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, CAPS-AD. Aluna do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.