PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    54 Junho 2020  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

CONFINAMENTOS E CONFINAMENTOS


EDUARDO LOSICER[1]



Provocado pelas circunstâncias atuais de confinamento que vivemos, e lembrando de uma pesquisa clínica que tratava deste tema nas plataformas de petróleo, já faz alguns anos, achei que podia ser interessante colocar no papel algumas das ideias que me acodem quando a comparação se me impõe. A relação entre a pesquisa clínico-analítica e as observações atuais se mostra assimétrica, certamente, mas achamos que seria oportuno apontar certos pontos de semelhança invertida que surgem da comparação imediata.

Na intervenção realizada nas plataformas de alto mar, o termo confinamento era mais um diagnóstico final a que chegamos a partir dos problemas psicopatológicos encontrados nos embarcados, pelos quais fomos chamados para diagnosticar. Na situação atual, a experiência viva de confinamento é um ponto de partida para analisar subjetividades, psicopatologias e modos de vida produzidos nesta situação emergencial. No extremo, em ambos os casos as pessoas estão mergulhadas no mesmo local de vida e trabalho, semelhante ao que acontece nas chamadas instituições totais – prisões, hospícios, quarteis, etc. -, sendo que os trabalhadores isolados em ilhas de ferro de alta periculosidade mar adentro estão longe de suas casas mas, na quarentena, não é o refugio do lar que ameniza o mal-estar que se produz no seu seio. As psicopatologias observadas são variadas em ambos os casos, certamente, mas podemos considerá-las patologias de fronteira, na medida em que surgem no limite do suportável. Seja nos confinados durante duas das quatro semanas do mês nos embarcados, seja nos confinados por um tempo incerto em casa, as temporalidades saltam dos relógios e dos dias nos dois campos de análise.

Mas não é sobre esta instigante variedade sintomática encontrada que queremos chamar a atenção, e sim sobre os possíveis pontos de inflexão que invertem causas e efeitos em ambas as situações.

Descobrimos que o sofrimento dos embarcados, longe do que poderia se supor, era menos devido ao fato de estarem perigosamente ilhados no alto mar e mais ao exaustivo sistema de produção a que estavam submetidos. A excepcionalidade das condições de trabalho dos embarcados e das condições de vida dos quarentenados perdia sua aparente importância na explicação causal dos efeitos patogênicos observados em ambos os casos.

A maioria absoluta dos embarcados entrevistados nas plataformas se queixava do mal-estar usando a palavra “pressão”. Não se tratava, apenas, da pressão gerada por jornadas exaustivas de doze horas contínuas de trabalho, nem da pressão pelo perigo de incêndio e explosão, sempre presente – fatores pelos quais ganhavam até 30% de adicionais por trabalho insalubre, que os motivava para ‘suportar’ o evidente adoecimento a que estavam inexoravelmente submetidos. Não era ‘pressão do chefe’, como acontece de forma institucional nos lugares de trabalho, mas da grande pressão constitutiva do sistema, cuja estrita observância eleva os embarcados ao patamar de serem os melhores do mundo na extração de óleo e gás em águas profundas. Foi assim que começamos a idear a tese que era este o confinamento que os produzia como sujeitos doentes, mais do que o fato auto evidente de realizarem um trabalho insalubre, presos no lugar. Concluímos que o confinamento dos embarcados é um sistema de produção de rendimento absoluto e de eficiência máxima – e não apenas de metas atingíveis -, sendo assim um paradigma vivo do espírito da época moldado na absolutização da relação produção/consumo e da aceleração performativa de todos os processos que levem a este absoluto dominante. Esta eficiência, compulsória e compulsiva, é a que leva ao embarcado/confinado a “viciar” neste mundo separado “que ninguém conhece”. Consomem clandestinamente esta droga como única possibilidade de alcançar a hiperatividade que implica a eficiência total devida ao sistema de produção. De fato, eles afirmavam peremptoriamente que “ninguém sabe” da vida deles. Relatavam tragicamente este destino de viver algo que nunca se chega a conhecer... a não ser pela experiência. Este era o ponto em que o entrevistado mostrava uma ponta de angústia – que nós presumíamos encontrar em todo lugar -, isto é, quando contava, em confiança, que tinha desistido, por exemplo, de contar para a esposa como tinham sido as duas semanas embarcado no seu tão desejado trabalho. Ela desistia de captar aquilo que ele tentava vivamente transmitir. Era este o confinamento simbólico – porque não tem o reconhecimento do outro – mais do que o confinamento físico na plataforma, aquilo que o adoecia, ao mesmo tempo que proporcionava o gozo de ser, objetivamente, “o melhor”. A um só tempo, pelo que escutamos de algumas centenas deles, eram relativamente conscientes que assim se produziam subjetividades e modos de vida completamente fora da normalidade conhecida, inclusive, diríamos nós, da chamada sociedade disciplinar. Não era por pura obediência à disciplina inerente ao sistema de trabalho – ou submissão voluntária à exploração, como acontece na sociedade dividida em classes - que o embarcado sofria de sua condição, que o levava indefectivelmente ao limite da doença e da desistência final, abandonando o sistema – junto com a renuncia aos benefícios materiais e egoicos que isto representa. Não foi por outro motivo que fomos chamados a intervir: o alarmante aumento dos pedidos de desembarque – alegando motivos de saúde – recebidos pelas gerências, acendeu o toque de emergência de um problema que, mesmo sendo conhecido, estava ficando fora de controle.

Foi desta maneira que construímos o entendimento do petroleiro como acabado exemplo do sujeito de desempenho, paradigmático do que se deu por chamar, com toda razão, de sociedade de desempenho, que impõe uma cultura de produtividade a todo custo. No nosso caso, este custo era frequentemente alto: milhares de trabalhadores padecendo de sintomatologia não classificada nos manuais de saúde mental conhecidos e, no extremo, o excesso de desempenho imposto, tendendo à falência psíquica total.

Como já foi apontado, a produtividade a todo custo se generalizou de tal maneira que veio a dar nome a toda uma época: sociedade do desempenho, e é neste ponto que queremos apoiar a articulação com que ensaiamos a comparação entre as duas formas de confinamento, nas plataformas e na quarentena atual imposta pela Covid-19.

Independentemente de tudo que possa vir a acontecer nestes tempos incertos, partimos da premissa que a letal expansão do novo corona vírus veio a revelar as profundas fraturas do sistema da hiperprodutividade dominante na nossa época.

O isolamento social, que está se mostrando como a principal arma contra a alta contagiosidade do vírus, acaba impondo uma forma de confinamento doméstico de sentido inverso àquele das plataformas; neste caso, trata-se de clausura longe do lugar de trabalho, paralisando de vez o sistema de hiperprodutividade vigorante até esse instante. A incomensurável máquina de desempenho, que tudo sustenta no mundo, cai subitamente como um gigantesco robô desarticulado, sem poder mais encobrir a desigualdade socioeconômica que lhe servia de combustível e reproduzia sem parar. O custo humano do crescimento a qualquer preço desmascara de uma vez seu rosto perverso. Mercado e consumo são bruscamente detidos na marcha que parecia inexorável. É justamente a necessidade do confinamento em casa - para não morrer pelo vírus - que denuncia a nudez do rei. O sujeito que realiza a produção e o sujeito que realiza o consumo ficam repentinamente separados do sistema da hiperprodução e hiperconsumo que ilude todos. Somente uma ameaça de morte “real” em massa teria o poder de separá-los. Quem provoca essa ameaça histórica e planetária é um vírus, um fiapo de RNA que nem se supõe um ser vivo (nada intercambia com o meio; apenas se autorreplica). O poder da consciência da humanidade quando deve enfrentar a ameaça da mudança climática, por comparação, é bem menor: a morte do planeta anunciada para um futuro mediato não é tão poderosa quanto a ameaça de morte aqui e agora, provocada pelo vírus. Por sinal, este é o enunciado do fantasma que provoca a famosa síndrome do pânico nos indivíduos: morte iminente. Mas a ameaça do vírus é incomparavelmente maior: a onipotência da imortalidade – pela qual todos já passamos – sofre um golpe maciço e não apenas individual. Será esta uma histórica ferida narcísica no ser humano, capaz de provocar um descentramento na humanidade toda? Terá o vírus a força suficiente para provocar o quarto descentramento? Seja como for, o fim da onipotência acaba sendo uma boa notícia para todos aqueles que confiam na racionalidade e na ciência: é a condição para pensar.

O sistema off shore de extração e produção de petróleo encarna, escondido por trás da cortina do ilhamento, o modelo mais apurado de desempenho no limite. A quarentena atual, paralisando os sistemas de produção e consumo, revela os efeitos deletérios deste pleno funcionamento e, por seu lado, produz patologias e modos de vida nunca antes vividos. É por isso, por se tratar de experiências humanas incomparáveis, que fomos levados a diagnosticar o mais alto grau de singularidade em ambas. Aprendemos que não era suficiente contar com diagnósticos já conhecidos para classificar as psicopatologias de fronteira e as formas de vida produzidas nas plataformas, assim como estamos aprendendo a analisar os sintomas do confinamento em casa, sempre nos indagando para além das manifestações sintomáticas mais evidentes (pânico, trauma, depressão, agressividade, etc.). Assim como no confinamento no mar nomeamos genericamente as patologias dissociativas – cisão do eu e do outro, próprios das instituições totais, funcionalmente ‘completas’ -, na quarentena estamos inclinados a diagnosticar as patologias fragmentativas – alienação de uma realidade que já não existe e invenção de novas formas de vida. Comportamentos perfeitos e adequados ao fim nos petroleiros... comportamentos pedagogicamente dirigidos em casa (propaganda permanente sobre o que é saudável e solidário). Saber total sobre ‘o que fazer’ com as máquinas, oposto a nada saber sobre o sentimento de irrealidade doméstica (deserto do real?). Incomunicação com o mundo de fora (os ‘de terra’) e o não reconhecimento da ‘ilha da fantasia’ (assim chamada pelos embarcados)... exato oposto da hiperconexão dentro do novo mundo sem mercado dos sitiados pelo vírus (devir de um novo ‘comum’?). Fim do conservadorismo do sistema de produção perfeita... início do novo (ou retorno do mesmo?) no day after da pandemia.

Não é difícil prever que, quando retornar, o mercado voltará com fúria - produção e consumo de remédios e vacinas que não serão para todos, por exemplo, ou alta produção de desemprego e superexploraçao dos empregados remanescentes -, mas, voltar ao status quo ante já não é mais possível.

Não se trata aqui, com este texto, de somarmo-nos às especulações agitadas pela turbulência dos acontecimentos atuais - são as que ainda nos fazem pensar -, mas queremos, apenas, reportar fragmentos de um estudo clínico sobre confinamento e ensaiar algumas articulações possíveis com o atual.

Sabemos, nesta primeira semana de maio do fatídico ano de 2020, que estas linhas poderão ser rapidamente varridas pelo aceleracionismo em que todas as contradições parecem ter entrado. Para nos segurar, pensamos - à maneira dos que veem a sociedade dividida em classes - que, quando a desigualdade é extremada, choca tanto o ovo da serpente quanto o ovo da revolução.





[1] Psicanalista e analista institucional argentino-brasileiro, clínico e pesquisador independente, atua nos campos da saúde mental e dos direitos humanos.




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/