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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    57 Novembro 2020  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

O QUE PODE A PSICANÁLISE DIANTE DAS CAUSAS PERDIDAS?


Mara Caffé[1]


“Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em
muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte.”
Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo.




No texto “Para a crítica da violência, escrito em 1921, Walter Benjamin dedicou-se a refletir sobre o Direito, acentuando o caráter violento e injusto de suas práticas colocadas a serviço do Estado - que, longe de visar ao bem-estar social, apoia e legitima os interesses capitalistas das classes dominantes, produzindo, velada ou abertamente, as licenças legais para as guerras, torturas e genocídios de grandes populações. Em uma formulação sagaz, Benjamim conclui que nada é mais injusto que o Direito, assim como nada é mais injusto que a ausência do Direito. Trata-se de uma aporia, uma formulação sem saída, a definição de uma sociedade humana erguida sobre impasses insuperáveis. Em 2020, cem anos depois da publicação do texto de Benjamim, instalados no contexto maximizado do capitalismo globalizado, frente aos efeitos macabros da chamada necropolítica, podemos nos perguntar se não seria o Direito, afinal, uma causa perdida. Assim como perdidas seriam as causas daqueles que sofreram barbaramente a tortura e a violência de Estado, sequelados ou mortos desaparecidos cujos parentes não puderam enterrar seus corpos; bem como a causa perdida dos indígenas, dos “presos quase todos pretos... ou quase brancos quase pretos de tão pobres”, no dizer de Caetano e Gilberto Gil. Vítimas do direito tanto quanto da ausência do direito. Neste sentido, Edward Said (2003) nos deixou um texto sugestivo, chamado “Sobre causas perdidas”, em seu livro Reflexões sobre o exílio. O pensador desfila um sem número de personagens bíblicos, da literatura e fatos históricos ilustrativos de causas perdidas: Dom Quixote de la Mancha, deprimidos suicidas, o movimento palestino, o genocídio entre povos africanos, etc.

“Uma causa perdida está associada... a uma causa sem esperança. (...) Mas não podemos evitar o fato de que a aparência ou o sentimento de causa perdida é resultado de um julgamento (...) A narrativa desempenha um papel central nesse processo.” (pp. 274 e 275). O filósofo observa que não há causa perdida sem referência a uma vitória paralela, e a relação entre elas decorre de um certo modo como se contam as coisas. As narrativas tecem julgamentos pelos quais a causa de um povo pode ser perdida, confiscando suas conquistas, de modo que “causas perdidas podem ser causas abandonadas” (p. 298), ou roubadas. A conclusão de Said vem ao nosso encontro: desmantelar as narrativas que sustentam e fabricam uma causa perdida é tarefa coletiva e individual, a um só tempo. E arremata com uma afirmação intrigante: “A consciência da possibilidade de resistência só pode residir na vontade individual (...) e pela firme convicção da necessidade de começar de novo...” (p. 300).

A força do comum, do coletivo, se coloca aqui, lado a lado, com a força individual, ambas relacionadas, porém discriminadas. Prosseguindo com Said, podemos pensar que desmantelar narrativas de causas sociais perdidas/roubadas/espoliadas se coloca como um ato potente e transformador se e quando puder revelar/restaurar a existência digna de “um” sujeito, no ponto preciso em que ela se reporta ao comum, ao que é de todos e de cada um. Neste sentido, não há justiça abstrata, ela se encarna sempre em uma história, em um corpo, em uma causa, propiciando um novo começo. Aqui, no ponto de articulação entre a coletividade de todos e a singularidade de cada um, podemos entrever um lugar para as práticas da psicanálise, uma vez que se dedicam a evidenciar aquilo que é o mais particular dos sujeitos, apenas discernível no contexto compartilhado dos seus ambientes. Desse modo, no consultório privado ou no espaço público, as análises clínicas constituem histórias que se apresentam como artesanatos únicos. Do mesmo modo, os sintomas com os quais trabalhamos são peças confeccionadas com o que há de mais único nos sujeitos. É o que nos diz Colette Soler, em seu livro A psicanálise na civilização. Ela afirma que o sintoma constitui uma resistência singular do sujeito aos mandatos normativos do seu tempo. Diante das vozes que nos dizem como sermos profissionais realizados, pais ou mães adequados (as), femininos ou masculinos, bons cumpridores das expectativas sociais, enfim, diante destas vozes ininterruptas há sempre algo particular em cada um de nós que se rebela e resiste. Resiste a conformar-se, a tomar a forma “devida”, irrompendo assim o sintoma, como verdade ineludível de nós mesmos. A autora destaca o sintoma em seu aspecto de resiliência política, o que não se confunde com a resistência no sentido estrito do recalcamento. Em nossas clínicas, de que modo abordamos/interpretamos os sintomas e as resistências que eles portam? Quando tendemos a ver sempre a mesma coisa nos atendimentos, sempre os mesmos sintomas relativos a um certo Édipo não resolvido, por exemplo, acabamos por relançar/amordaçar/patologizar o sintoma, cegos à face mais original do sujeito e à sua força mais revolucionária.

Voltemos à afirmação de Said, destacando ali uma outra ideia: “A consciência da possibilidade de resistência só pode residir na vontade individual (...) e pela firme convicção da necessidade de começar de novo...”. Segundo o filósofo, a resistência às injustiças e aos sofrimentos exige vontade e convicção quanto à necessidade de começar de novo. Podemos ver, aqui, novamente, um lugar para as práticas terapêuticas do cuidado (e não só a psicanálise, mas é dela que posso falar). A vontade de começar de novo não pode ser “terceirizada”; o analista não pode se encarregar dela pelo paciente, no lugar do paciente. Porém, começar de novo é algo motivado por um horizonte de esperança, por uma causa que não se toma como perdida. A função do analista é trabalhar na criação de novas condições de enunciação (a chamada transferência), de modo a favorecer o desmantelamento das narrativas que sustentam e fabricam uma causa perdida. Entretanto, o analista não sabe de antemão quais são as causas perdidas em jogo, nem pode mover o sujeito a começar de novo, porém é suposto saber e suposto mover o sujeito, segundo uma definição lacaniana. O que nos sustenta, analistas e terapeutas, neste empréstimo do que não temos? Não seria a convicção de que um novo amanhã surgirá, e de que é preciso começar de novo? Neste sentido, frente às causas perdidas e embalados por Ailton Krenak, podemos dizer que toda análise começa por adiar o fim do mundo. E que para tanto, é preciso “cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu” ... das causas perdidas.



Outubro / 2020



Referências bibliográficas

Benjamin, Walter. Para a crítica da violência. In: Benjamin, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915 – 1921). São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013.
- Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
- Said, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
- Soler, Colette. A psicanálise na civilização. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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