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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    58 Abril 2021  
 
 
HOMENAGEM

HOMENAGEANDO CONTARDO


MIRIAM CHNAIDERMAN [1]


Vivemos tempos sem respiro. O ar putrefato cheira morte e o sufocamento provoca terríveis contrações em nossas vísceras enquanto urubus governam alimentando-se de carniça. São muitos milhares de cadáveres a cada dia e vamos levando nosso cotidiano em meio a leitos insuficientes que levam a covas insuficientes, em meio a monstrengos que desumanizam um dia a dia podre. Cada vez que entre os mortos brilha um nome conhecido, estremecemos diante dessa mórbida proximidade.

Assustamo-nos. Aliás, vivemos assustados. Ainda bem. Pois não há como naturalizar a morte de milhares de brasileiros. Dessa vez, foi da morte de Contardo Calligaris que soubemos. Não de Covid. Mas em meio à Covid. Contardo lutava com um câncer que se agravara em janeiro, conforme relata Walter Salles no Ilustríssima de 4 de abril. Alguém tão cheio de vida, tão pensante, tão contestador, morre em plena pandemia internado em um grande hospital também assolado pela Covid. Mas, em meio a tanto anonimato de tantos mortos, o nome de Contardo surgiu lancinante. Seu filho relata que suas últimas palavras, antes de ser sedado, foram: “Espero estar à altura”. Fico pensando, à altura do quê? Da vida? Da morte? Do que construiu? O que é baixeza em um momento como esse? Nesse duro momento de despedida, nesse duro momento irreversível, Contardo preocupou-se em “estar à altura”. Buscou alguma dignidade diante da humilhação da não escolha. Momento de submissão a um destino cruel. Ele tão rebelde. Mas, mesmo nesse momento, a vaidade se sobrepôs e a dignidade triunfou. Mais uma vez a nobreza se fez presente na vulgaridade dessa triste passagem. Fiel à sua vida em que circulava entre caçadas nobres em florestas que rodeavam castelos medievais e a fuligem das sarjetas dessa cidade poluída. Assim foi Contardo.

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Contardo Calligaris não é apenas, para nós, um nome conhecido que se recorta nessa imensidão de mortes. Além de ser personagem que participou ativamente da vida cultural do Brasil, esteve próximo a muitos de nós quando de sua vinda a São Paulo no momento em que se mudava para o Brasil no final dos anos 80. Conta em Hello Brasil: “Que a paixão por esta terra se confundisse com a paixão por uma mulher é algo que não me parece comprometer nenhum dos dois amores” (p. 11). Foram muitas as paixões pelas mulheres... sempre contava em entrevistas que se casou 8 vezes. É terno o texto de Maria Lúcia Homem, a mulher que o acompanhou nessa última viagem, publicado na Folha de São Paulo de 8 de abril. Conta que quando perguntava a seu parceiro o que seria dela sem ele, recebia como resposta: “Vai ser o que você quiser”. Eu me perguntei: “Será que sempre podemos ser o que quisermos?” E a tal da castração? O fato é que Contardo sempre buscou a coerência com o seu desejo. Será que sempre conseguiu?

O nomadismo de Contardo achou parada no Brasil, e, já há alguns anos, em São Paulo. Nascido na Itália, estudou na Suíça com Piaget e Starobinski. Depois foi a Paris, onde se analisou com Serge Leclaire e frequentou os seminários de Lacan. Estudou com R. Barthes e M. Foucault. Leu Gramsci, militou na esquerda que abandonou e criticou até o final de sua vida. Exemplo disso é sua recente polêmica com Caetano Veloso. Criticava violentamente o marxismo.

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Conheci Contardo através de Marie-Christine Laznik no final dos anos 80, quando vinha ao Brasil para lançar seu livro Hipótese sobre o fantasma. Eu me enredava naquele palavreado buscando entender Lacan. Foi o momento em que Melman, Pommier, Bergés também vieram ao Brasil. Hipótese sobre o fantasma talvez seja o livro onde Contardo mais procura uma fidelidade ao lacanismo. Mas, é original em sua proposta. Sua crítica a uma concepção substancialista do inconsciente é muito rica, embora mantenha a ideia de estrutura. Depois de expor sua concepção do que seja “fantasma”, dedica-se a expor casos clínicos. Contardo era um grande clínico. Depois tornar-se-ia clínico da conjuntura social e teve papel relevante na análise do mundo da cultura e da política.

Em 1989 lançou o seu hoje clássico Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Sempre com uma grande preocupação clínica.

No final dos anos 80 o nosso Departamento convidou Contardo para dar um seminário. Ele queria falar sobre o masculino. Em contraponto aos mil textos que proliferavam sobre o feminino. Suas aulas sempre foram brilhantes e polêmicas. Lembro que ele argumentava dizendo que para que uma mulher realmente se casasse com seu parceiro deveria abrir mão do nome do pai. Ficamos revoltadas. Hoje penso que talvez ele tivesse mudado pois duvido que em todos seus casamentos as mulheres tenham se tornado Calligaris... Mas, foi nesse seminário que me encantei com a acuidade clínica de Contardo, a partir de um relato de caso. Era uma paciente que se drogava e vivia em risco pelas bordas de Paris. Depois de algumas faltas às sessões, quando ela volta, Contardo a recebe dizendo: “Estou preocupado com você”. Em vez de interpretar como ataque, movimento mortífero, resistência... Naquele momento acho que entendi o que é interpretar do lugar da transferência em vez de interpretar a transferência... Foi quando eu o escolhi como analista.

Depois do seminário, um grupo de professores reuniu-se com Contardo por um curto período de tempo para um seminário clínico. Foi muito rico .

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Quando Contardo se fixou em Porto Alegre e passou a vir regularmente a São Paulo como psicanalista, vários de nós passamos a frequentar seu consultório. Eu, inclusive. Foi uma análise riquíssima onde aprendi muito sobre o que é a liberdade de escuta. Muitas vezes mal me deitei, já era convocada a me levantar. Mas sempre com um sentido preciso. Em geral, em uma intervenção na minha ancestral culpa judaico-cristã...

Eu estava em análise quando foi lançado o Hello Brasil - notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil . Foi bem difícil saber das intimidades de Contardo com sua parceira em viagens aventureiras pela Bahia... Questões transferenciais? Não sei... mas não gostei... Não gostei do que o livro propunha. Depois disso, minha análise minguou e encerramos. Mas sempre nos admiramos e nos gostamos. Continuamos amigos e queridos. Ainda bem.

Escrevi muito sobre Hello Brasil quando em meu pós-doutorado eu buscava entender o que poderia ser chamado de “identidade brasileira”. Não só sobre Hello Brasil. Critiquei Melman, briguei muito com analistas pela forma em que aplicavam a psicanálise para pensar o político-social. Todos atribuindo ao Brasil um destino inelutável, falando em perversão e ausência de pai. Em um dos meus textos indago-me: “por que será que nós, que sempre questionamos uma concepção unificadora do conceito de identidade, vemo-nos tomados pela busca de uma estrutura psicopatológica unificante para pensar o Brasil?” (Brasil perverso/Brasil melancólico/Brasil histérico – e daí?)

No texto que publicou na Ilustríssima de 4 de abril, Walter Salles relata o quanto Hello Brasil serviu de base para o filme Terra estrangeira. Fiquei surpresa. Terra estrangeira é um belíssimo filme sobre uma busca desesperada de dois perdidos que aflitivamente vivem à margem e no risco, na busca de alguma territorialização. Verdade que vão a Portugal nessa busca desenfreada. Mas nunca pensei em termos de colonizado e colonizador...

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No final dos anos 90 Contardo torna-se colunista do jornal Folha de São Paulo. Teve importantíssimo papel e penso que ele próprio foi se tornando mais livre dos esquemas aprisionantes que a pura aplicação da psicanálise pode ter. Foi absolutamente polêmico e sem papas na língua. Teve uma coragem digna de toda admiração. Para o bem e para o mal. Sem cair no cinismo, propunha reflexões sobre a tortura, sobre o golden shower, sobre o liberalismo. Provocava o pensamento, sempre. Muitas vezes permeado de revolta com seus pontos de vista. Mas obrigava a pensar.

Em um momento em que até Mário Sérgio Conti em seu programa de entrevistas na GloboNews revoltava-se com o golden shower que havia ocorrido no carnaval, Contardo defendia a liberdade do golden shower. Sua postura radical em relação ao desejo sempre foi disruptora. E num jornal de grande circulação isso não deixava de ser um ato profundamente político.

Cito Maria Lúcia Homem no pungente artigo de 8 de abril: “a crítica do clichê, da lógica de massa e da quase inevitável boçalidade do grupo, a busca pela afirmação radical da subjetividade autoral e um outro projeto de país e de planeta”. Um país onde cada um pudesse ser o que quisesse...

É bem complexa essa proposta de Contardo pois o levou a defender arduamente o neoliberalismo. Claro. Mas, no sufocamento de desejo que vivemos, sempre era salutar ler suas colunas. Mesmo que raivosamente.

Depois, Contardo fez a Psi, aventurou-se em uma série de TV. Arriscou-se. Seu livro Cartas a um jovem terapeuta até hoje é guia para quem se inicia. Lançou romances, fez teatro. Lançou os livros onde reunia suas colunas. Era inquieto. Buscava formas de dar vazão à sua turbulência. A vida é turbulência. É o que a torna interessante e rica.

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Antes de lançar meu filme De gravata e unha vermelha convidei Contardo para assisti-lo em casa. Encomendamos um barco de sushi com o qual ele se deliciou. Adorou o filme e ficou o resto da noite, em meio ao saquê e risadas, decidindo qual trans o atraía mais. Assim era Contardo.

Fui ao lançamento do livro que lançou com Maria Lúcia Homem, Coisa de menina, mas quando cheguei, muito atrasada, já não havia mais ninguém. Escrevi ao Contardo contando que me atrasara, que fora e já não havia ninguém. Ele foi super carinhoso, contou que estavam no café da Livraria Cultura. Teria sido nosso último encontro.

Walter Salles relata que estavam construindo um documentário. Contardo queria registrar de que forma via o antigo continente depois de sua experiência brasileira. Em meio a esse projeto, o câncer piorou e Contardo falava que talvez tivesse que dar a “dormidinha final” antes do que previra.

Morrer com projetos talvez seja o melhor alento em uma despedida.

Contardo silenciou. Seus últimos textos na sua coluna na Folha ainda eram sobre livros, análises da política. Não quis falar da doença nem de seu fim iminente. Foi uma escolha. Contardo devia saber de como o mundo enxerga o câncer e a doença. Não quis aparecer envelhecido e sugado pela doença. Quis deixar sua imagem guerreira e petulante. Ricamente petulante.

Fica em nós seu legado de rebeldia e pensamento.

Laerte escreveu: “Ciao, Contardo”. Só nos resta também escrever “ Ciao, Contardo”. Você vai fazer muita falta.



[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.




 
 
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