PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    32 Novembro 2014  
 
 
ESCRITOS

PSICANÁLISE E O TEATRO DA INTIMIDADE


JOÃO RODRIGO OLIVEIRA E SILVA[1]


    
Confesso que fiquei aliviado ao perceber que, apesar de minha imprudência ao sair atrasado de casa, consegui chegar ao meu destino cinco minutos antes do que havia combinado. O trânsito, ou melhor, sua ausência, permitiu. Fiquei na rua esperando os cinco minutos passarem já que sabia que, tanto quanto me atrasar, me antecipar não seria bom. Vencidos os minutos, toquei o interfone.

Uma voz feminina e jovem respondeu e pediu que eu aguardasse. Não demorou muito e uma moça abriu a porta sem se apresentar e nem olhar direito para mim. Confirmei o andar ao qual iria e segui, só, até o elevador. Nele, reparei que, embora o interior renovado não chamasse a atenção, igualando-o a centenas de outros elevadores da cidade, sua porta pantográfica denunciava a idade e seu charme. Adoro essas portas gradeadas, através das quais podemos acompanhar o movimento da máquina e ver, desde as entranhas do edifício, os andares a passar.

Chegando ao segundo andar, parei em frente à porta número 22. Toquei a campainha com um frio na barriga e fui recebido por outra bela jovem. Antes que lhe perguntasse algo, o que certamente me demoraria um pouco a fazer, Laura, com uma voz doce e hospitaleira, disse: “Estávamos te esperando”. Eu já sabia, mas ouvi-la confirmar me permitiu um quase imperceptível suspiro de alívio. Convidou-me a entrar e me sentar e então ofereceu um chá. Enquanto aguardava a xícara quente, pude reparar na pequena sala em que estava: nela havia o sofá no qual me acomodei, uma mesa de centro baixa, à minha frente, com uma xícara e um bule de chá sobre a pequena bandeja; havia ainda duas cadeiras ao redor da mesa, uma à minha esquerda e outra à frente. À direita, uma janela aberta iluminava e bem à esquerda, uma porta fechada, uma mesa de canto e um corredor completavam o cenário.

Laura, depois de me passar a bebida, levantou-se e disse que queria contar uma história. Assenti: “Sim, claro!”. Enquanto eu tomava uns primeiros goles do mate, ela foi até o canto da sala junto ao corredor e voltou trazendo uma cumbuca branca. Dentro havia dez pequenos objetos. Ajoelhou-se junto à mesa baixa e começou a retirá-los um a um. Pude ver que se tratava de bonequinhos de brinquedo e enfeites. Ela certamente os separara antes de minha chegada, pois já estavam todos ali, juntos, como que à minha espera. Foi alinhando os pequenos bonecos lado a lado, sobre a mesa, numa coreografia em tudo muito precisa. Parecia já haver ensaiado esses movimentos inúmeras vezes. Explicou que os bonecos representavam os dez membros de sua família, como estava constituída há pouco mais de um ano: A mãe, o pai, ela, seu irmão, a avó, o avô, sua tia, seu tio, uma prima e um primo.

Com os bonecos de sua família assim postados, lado a lado, sobre a mesa, deu início à sua história. Tomando-os nas mãos, cada qual em sua vez, foi apresentando os parentes e contando sua tragédia. Ao final, deitava o boneco sobre a mesa separado dos demais e dizia o número de familiares que restavam.

Começou com a primeira tragédia da família: um acidente de carro que há pouco mais de um ano matara o tio e o primo. Dois bonecos deitaram sobre a mesa. Logo depois do acidente, ainda em meio ao luto, veio a morte repentina e inesperada da avó entristecida, mas forte. Menos inesperado foi o falecimento na sequência do avô doente. Mais dois bonecos deitaram, restando seis de pé. Atolada em dor a tia foi a próxima e sua morte foi o golpe que levou a prima desesperada a fugir para o exterior e romper o contato com o resto da família. Mais dois bonecos. Por fim, apavorado com a sequência de mortes na família e calculando ser o próximo, o pai de Laura, copiando a sobrinha, desapareceu fugindo para o exterior. Outro boneco deitou. Não bastasse tanta desgraça, sucedeu que seu irmão, abalado com o ocorrido, se envolveu num romance extremo que o levou a cometer um crime passional. Preso, restaram dois bonecos de pé sobre a mesa; Laura e sua mãe, sós, com o fardo de se sentirem as últimas restantes de uma família de dez.

Laura contou-me tudo com ar ao mesmo tempo triste e carregado de vitalidade. Sua voz às vezes embargava e seus olhos não escondiam a dor. Ainda assim, era possível sentir nela uma presença que só encontramos quando alguém fala com esperança de algo que sabe ser essencial para sua existência.

Após contar sua história, Laura revelou-me sua aflição atual: com o desaparecimento do pai e a prisão do irmão, sua mãe, que até então mantivera-se como um esteio à família, sucumbiu ao sofrimento. A perda do marido e a paixão trágica do filho retiraram-lhe o chão. Vendo a mãe só e desamparada, Laura resolveu trazê-la para morar consigo. Porém, melhor seria dizer que sua mãe ali mais do que morar, pousava, já que mal saía do quarto e encontrava-se em tal estado de desencanto que Laura temia agora perder também sua mãe.  Foi por isso, enfim, que me chamara: para contar-me sua história e para que eu conhecesse sua mãe.

Então perguntou se eu poderia ver sua mãe que, sem que eu soubesse, também estava à minha espera. Novamente respondi que sim, claro. Segui atrás de Laura pelo corredor até uma porta entreaberta. Parado sob o batente, pude acompanhar, no quarto escuro e um pouco abafado, seus movimentos enquanto suavemente abria as cortinas e a janela, deixando alguma luz e ar entrar naquele ambiente sombrio. Assim, foi possível distinguir entre as cobertas, a fisionomia ainda sonolenta e retraída de sua mãe, Sonia.

Ao me ver e ser apresentada a mim, Sonia se recompôs rapidamente. Surpreendi-me com a metamorfose em anfitriã do volume sombrio sob as cobertas, a me colocar confortável naquela situação e me indicar um banco em que sentar. Percebi instantaneamente o sorriso nos olhos de Laura ao ver sua mãe assim, recomposta.

Sonia se revelou, para minha ainda maior surpresa, uma anfitriã bem falante e entendi que ali me cabia apenas ouvir e acompanhar a conversa entre mãe e filha. De tempos em tempos, Sonia, que já se pusera sentada na cama, virava-se pra mim conferindo se eu estava atento à conversa e solicitando minha cumplicidade quanto a algum comentário que fazia a respeito da filha. E Laura, então, não dirigia mais que seu olhar a mim. Mas era um olhar tão sereno e acolhedor que parecia um recanto em meio a tanto sofrimento e ameaça que rondavam aquele apartamento. Pude ouvi-las falando do pai, do irmão, lembrando-se de uma viagem à praia que fizeram apenas as duas, de festas, de momentos alegres vividos juntas. Resolveram mostrar algumas fotos. Das fotos vieram lembranças de músicas e das músicas, lembranças de tempos idos em que dançavam juntas. Quando dei por mim, assistia à mãe e filha, num pequeno quarto, agora iluminado, num mais mínimo espaço entre a cama, um armário e uma mesinha, a dançar. E a rirem-se.

Enquanto assistia à dança – e nesse momento era como se eu fosse apenas parte de uma plateia assistindo a um espetáculo – me ocorreu uma curiosa ideia: pensei em sair à francesa e deixar Laura e Sonia felizes dançando. Perguntei-me se seria isso que Laura estava buscando e se seria para isso que ela me chamara.  Pensei:  será esse o fim de nosso peculiar encontro?

Não foi.

Antes de findar a música e a dança, desde um instante de alegria a contrastar com tudo que até então me fora apresentado, vi Sonia regressar a sua forma anterior. Já não era mais a jovem mãe de outrora a dançar o futuro com sua filha criança. Era a sombra de uma dor. Disse que estava cansada e que já bastava de visita. Voltou à cama e pediu que sua filha fechasse a janela e fizesse a gentileza de me acompanhar até a porta.

Despedi-me de Sonia. Dei passagem a Laura e fui seguindo, passo a passo, seu caminhar lento até a porta. Lá, paramos um em frente ao outro. Ela olhou pra mim com olhos marejados e brilhantes. Seu semblante estava tenso de sofrimento e preocupação. Eu sentia meus olhos igualmente marejados. Percebi que ela queria ainda dizer algo antes de minha partida. Sem que eu precisasse esperar, tomada de profunda seriedade, a pergunta que me fez pareceu na hora a mais óbvia, difícil e inevitável: “O que é que eu faço?”

Pergunta tão impossível de ser respondida quanto de ser ignorada. Foi assim que fiquei parado em frente a Laura, olhando-a em silêncio e imaginando se diria algo e o que poderia ser. Tumultuava meu pensamento o estranho da situação. Após alguns segundos que pareceram longos minutos, disse, na esperança de que pudesse ajudá-la, o único pensamento que me veio a cabeça.  Então, quando já havia me pronunciado, para minha surpresa, ouvi sair da minha boca um complemento ao mesmo tempo natural e absurdo: disse a ela que me procurasse, caso sentisse necessidade. Ela sorriu.

Saí comovido e ouvi a porta fechar às minhas costas. Entrei no elevador e no breve trânsito de dois andares senti uma alegria tomar conta de mim. Soube-me um pouco atordoado, mas encantado com o que acabava de ocorrer. Como psicanalista e admirador de teatro, descobri nesta apresentação do teatroSOLO a experiência não clínica mais próxima do fazer psicanalítico que eu já conheci.

Epílogo

Quando li no jornal que estrearia em São Paulo um peculiar projeto teatral de nome teatroSOLO, concebido pelo diretor argentino Matias Umpierrez, fiquei entusiasmado e um tanto receoso. A proposta era de que cada uma das cinco peças do projeto fosse encenada numa locação distinta e apresentada para apenas um espectador por vez. Parecia atraente e assustador. Imaginei-me imediatamente sob a tortura de ter de acompanhar uma apresentação teatral ruim sem ter a proteção do anonimato e a cumplicidade do coletivo pra me esquivar. Talvez não me arriscasse a ir a essa peça se não fosse analista, ou talvez não fosse analista se não pudesse me deixar atrair por uma peça assim. Resolvi assistir a Êxodo, apresentação locada num apartamento no bairro de Campos Elíseos, com Mariana Faloppa e Vera Monteiro no elenco. Inscrevi-me para assistir à peça e fui informado do dia e hora em que devia comparecer.

Logo após a apresentação e na falta de cúmplices com quem pudesse trocar ideias sobre o vivido, o campo da psicanálise se ofereceu como um outro para receber minhas primeiras impressões. Assim que saí do apartamento, ainda envolto na emoção da peça, pensei nas semelhanças entre a experiência que acabara de viver e as experiências cotidianas com os pacientes em análise. Sentia que o teatro que presenciara era verdadeiramente um teatro da intimidade, título que não me incomodaria em usar para descrever também a psicanálise. Parecia que eu havia saído naquele instante do interior do mundo de alguém que até uma hora antes eu não conhecia, como se estivesse emergindo de um sonho no qual eu mesmo era personagem e no qual mergulhara intensamente. Quantas vezes não me atingiu esse sentimento após sessões de análise?

Além disso, a posição peculiar do “público” nessa apresentação me lembrou enormemente a particularidade da posição do analista. Eu era um espectador atento a ouvir uma narrativa e permitir que ela ocorresse; era um personagem convocado a participar de uma história que não era minha e que absolutamente não conhecia; por fim, era um ator/autor a intervir com falas e gestos no desenrolar da cena e a participar da construção de meu personagem. Tudo simultaneamente. E não é essa a posição do analista? De ouvinte atento e silencioso a permitir que uma narrativa seja criada? De personagem da história desconhecida desse outro que é seu paciente? De ator e autor cuja presença e singularidade deixam marcas no desenrolar da análise?

Por fim, a sustentação compartilhada do ficcional, pela coabitação cênica de Êxodo, guarda semelhança com a dimensão  poético-transferencial da psicanálise, apoiada na coabitação do enquadre analítico. Essa sustentação compartilhada do ficcional, na experiência da peça, ficou evidente quando, ao final, me ouvi aconselhando Laura e oferecendo-lhe que me procurasse. Foi, talvez, o momento mais surpreendente da peça para mim. Eu encarnara plenamente um personagem e sabia, no instante mesmo em que o fiz, que dizer pra Laura que ela podia me procurar era um absurdo, pelo simples fato de ela não existir para além daquele espaço. Mas, ao aceitar o absurdo e ingressar nele (como creio que qualquer um poderia fazer), sustentava externa e internamente o acontecimento teatral em jogo. Em análise, de modo semelhante, o campo da transferência é igualmente marcado pela aceitação do absurdo e o ingresso nele sustenta o acontecimento analítico que pode vir a ser.

Pode ser que essas observações não soem como novidade aos dramaturgos e atores, nem tampouco aos analistas, cuja arte de coabitar o ficcional e o absurdo se aprimora desde as longínquas conferências italianas de Zoe Bertgang[2]. Porém, sua aparição no encontro singular entre teatro e psicanálise, que foi minha visita ao apartamento de Laura, pareceu-me suficientemente estimulante para que valesse a pena compartilhá-la.

______________________________

 

 

[1]Psicanalista, Doutor em Psicologia Clínica, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] Zoe Bertgang é  personagem do romance Gradiva de Wilhem Jensen, estudado por Freud em O delírio e os  sonhos na ‘Gradiva’de Jensen .  
 

 




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/