MIRIAM DEBIEUX ROSA[1]
PEDRO SEINCMAN[2]
ANA GEBRIM[3]
Lógica legal x Lógica da escuta Apresentamos brevemente uma perspectiva de acolhimento e escuta aos migrantes recém-chegados ou já instalados há algum tempo na cidade de São Paulo, com a posição ética, teórica e clínica da psicanálise, desenvolvida pelo Grupo Veredas: Imigração e Psicanálise, do IP-USP e Psicologia Social da PUC-SP.
Como destaca Ana Gebrim (2015) o trabalho com migrantes na área da saúde opera em um registro diferente da lógica legal. Aspecto a ser ressaltado, uma vez que grande parte dessas pessoas e mesmo dos atendimentos estão inseridos em equipamentos que respondem à lógica legal de concessão de refúgio somente àqueles que logram provar uma perseguição, ou seu fundado temor. Tais procedimentos não são sem consequência para os processos de subjetivação e para incitar uma posição de vitimização.
O acolhimento desenvolvido pelo Veredas opera pela via da escuta clínico-política dos sujeitos e seu
pathos - anseios, sofrimento sócio-político (Rosa, 2016) e desejos. Apesar do foco na singularidade do sujeito opera no que chamamos de rede de acolhimento intra e interinstitucional na qual o migrante confia e com a qual tem transferência, caracterizando assim uma clínica migrante (Seincman, 2017).
A Clínica Migrante Na clínica migrante é o profissional que se desloca, que migra e que se refugia dos pressupostos totalizantes de cada área. Enfatiza-se a posição de estrangeiridade da posição do analista, destituído do
setting tradicional, de sua língua materna, de suas referências culturais. Tal posição permite um encontro possível com o sujeito em sua condição de migração.
Temos a transferência como aspecto central presente não apenas na relação com o psicanalista, mas em todo o campo de relações que o migrante estabelece. Vemos a importância de uma figura de referência, a importância da ancoragem. A figura de referência de um acolhimento geralmente é escolhida pelo próprio migrante e pode ser qualquer um: algum profissional da instituição, um amigo, um psicanalista.
Esta escuta na transferência leva em conta os vários momentos do processo migratório. Indicamos diferentes tempos para o sujeito separar-se do acontecimento, formular uma narrativa e contar uma saga que o situe em sua história e na história da comunidade:
1 - A ruptura com uma certa ordem do país de origem, que já delega ao sujeito uma posição de estrangeiridade com sua própria cultura, ou seja, antes de ser estrangeiro em terra de acolhimento, o migrante vivenciou a estrangeiridade em terra natal.
2 - O tempo da chegada ao novo país (momento de esquecer), o que reatualiza a estrangeiridade já em terra de acolhimento, no novo país.
3 - A elaboração do processo migrante, que envolve o aspecto estrangeiro que se repete. Isso ocorre no tempo da construção da vida no país da acolhida (momento da implicação e elaboração) e possibilita uma nova inserção, perpassada pelo desejo e amparada por uma rede transferencial.
Acolhimento em Rede Multidisciplinar Para que o acolhimento e a escuta ocorram é necessária uma rede transferencial que o ampare, assim como aos profissionais das práticas de cuidado.
Nessa medida, nossa prática inclui uma reflexão ativa junto à rede de serviços de saúde, saúde mental e de assistência social sobre modalidades de intervenção, de aprimoramentos dos serviços para atendimento dessa população com sua peculiaridade cultural e linguística e a proposição conjunta de novos dispositivos.
Abrange também proposições conjuntas com o campo dos direitos e a proposição de aprimoramento das políticas públicas. Os temas de discussão das reuniões da Rede pretendem abarcar os seguintes pontos:
1) discussões e elaborações conjuntas de estratégias de encaminhamentos efetivos para alguns casos clínicos mais sensíveis – geralmente, é o caso de pessoas em maior grau de vulnerabilidade e exclusão que, portanto, necessitam de atenção mais especifica;
2) discussão de textos que abordem estratégias de integração e acolhimento à população migrante;
3) apresentação de serviços da Rede e outros atores importantes na integração e saúde para imigrantes e refugiados;
4) Elaboração em conjunto de estratégias de sensibilização e capacitação dos profissionais dos equipamentos de saúde e assistência da cidade de São Paulo para o acolhimento de imigrantes e refugiados;
5) interlocução com o poder público para proposições de políticas públicas no campo da saúde do imigrante.
Entendemos que a multidisciplinaridade no acolhimento aos refugiados permite intervenções que levem em conta o contexto cultural e a realidade de imigrantes e refugiados. Assim, possivelmente, o tempo de chegada no país de acolhimento pode ser menos marcado pela violência e mais pela riqueza daquilo que pode ser uma experiência migratória.
Referências Gebrim, A. (2015) Imigração e Saúde Mental : desafios clínico-políticos. In: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. (Org.). Direitos Humanos no Brasil 2015. 1ed.São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2015, v. , p. 179183.
Seincman, P. M. (2017). Rede transferencial e a clínica migrante: psicanálise em urgência social. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.
Rosa, M. D. (2016). A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do sofrimento. 1a edição. São Paulo: Escuta/Fapesp.
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[1] Psicanalista IP-USP e PUC-SP, coordenadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade e do Grupo Veredas: Psicanálise e Imigração (IP-USP e Psicologia Social da PUC-SP).
[2] Psicanalista, Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP, membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade e do Grupo Veredas: Psicanálise e Imigração (IP-USP e Psicologia Social da PUC-SP).
[3] Psicanalista, doutoranda do IP-USP, membro do Laboratório Psicanálise e Sociedade e do Grupo Veredas: Psicanálise e Imigração (IP-USP e Psicologia Social da PUC-SP).