A MORAL E OS BONS COSTUMES DEVEM PAUTAR AS ELEIÇÕES BRASILEIRAS?[1]
A orgia de ontem e de hoje
FERNANDA ALMEIDA[2]
De eleição em eleição vimos que alguns brasileiros na hora h podem mudar de opinião frente a uma boa pauta bomba. Mas quais têm sido os conteúdos das pautas bombas, ou das assim chamadas balas de prata? Em geral têm sido fatos e argumentos bizarros e de cunho moralista que rebaixam cada vez mais o debate político e as conquistas valorativas da sociedade brasileira expressas nos direitos humanos e civis. O conservadorismo tupiniquim escancara a face mais apedeuta da nossa sociedade e seu amesquinhamento em face dos valores morais.
Às vésperas das eleições que definem os rumos do país – no campo democrático existe um consenso sobre os riscos para a democracia e o futuro do Brasil caso o eleito seja Jair Bolsonaro – uma parcela dos brasileiros parece implicar mais com a eventual participação do candidato a
Governador do Estado de São Paulo em uma orgia que com a adesão e simpatia desse mesmo senhor ao projeto fascista liderado pelo capitão reformado e aspirante a presidente que reedita e traz para a cena cotidiana as piores páginas da nossa história.
João Dória é notadamente um dos políticos (ops! Desculpe, gestor) que mais tem disseminado a cultura antipetista, antiesquerda e anticomunista nas redes sociais. Ele contribui cotidianamente, seja através de seu discurso persuasivo e mordaz, ou ainda, através de sua postura contundente – sempre com dedo em riste – para a naturalização da ideia de que seu adversário político é um inimigo a ser fustigado, banido e eliminado. Seu maior adversário é, sem sombra dúvidas, o ex-presidente Lula, portanto, todos aquele em quem João Dória mira são atrelados ao nome do ex-presidente, buscando figurar uma espécie de cruzada contra o mal na qual seu grupo representa os valores da família, da religião, dos bons costumes, da dignidade, enquanto os do outro lado simbolizam a sujeira, a corrupção, o perigo e o profano.
De maneira caricatural – Dória é íntimo das câmeras – o candidato do PSDB produz vídeos em que os enunciados bandidos do PT, vagabundos da esquerda, quadrilha de bandidos, comunismo e, especialmente, uma exaltação a bandeira brasileira, seguida sempre da consigna “nossa bandeira jamais será vermelha”, buscam mobilizar o sentimento de medo e repulsa a tudo aquilo que as pessoas conseguem associar ao campo petista e da esquerda, materializados no PT, CUT, MST, MTST, entre outros. Essa estratégia de João Dória não é nova, tampouco exclusiva dele, daí sua insistência em pegar carona na (deplorável) popularidade de Jair Bolsonaro, reivindicando para si a suposta força do capitão e sua disposição em fazer justiça eliminando os inimigos. Sua campanha traz como pautas a criminalização dos movimentos sociais, a redução da maioridade penal e um culto a violência através da ação militarizada da polícia no enfrentamento das expressões da questão social.
Mas ele não contava com os vídeos pornográficos que viralizaram nas redes sociais gerando uma massa de comentários nos grupos adversários e aliados. Um dos vídeos é editado para intercalar cenas de sexo entre um homem e, pelo menos, cinco mulheres, com a fala de Dória discursando em algum palanque sobre a importância da família. O objetivo é claro, qual seja, indicar que caso Dória seja de fato o homem que aparece no vídeo, como pode ele falar em costumes e família traindo sua esposa em uma orgia de sexo grupal? No outro vídeo a mesma cena é apresentada sem cortes e sem edição. O fato é que isso é exibido para a sociedade como tentativa de vinculá-lo a uma crítica moralista, melhor dizendo, é como se a suposta falha de caráter do marido afetasse toda a sociedade, então, João não teria traído somente sua esposa, mas teria quebrado a base da confiança nele depositada traindo os mais importantes valores de seu eleitorado. Eis a bala de prata!
A cada nova eleição (seja regional ou nacional) somos bombardeados por notícias e pautas com apelo moralizante que buscam, às vésperas das eleições, influenciar parcelas do eleitorado sensíveis ao tema. Esta prática contribui para o empobrecimento e desinformação do debate político. Os candidatos de esquerda e os mais progressistas têm sido as maiores vítimas dessa forma de disputa política rebaixada, mas não exclusivos, como demonstram os vídeos de que Dória foi o alvo.
Qual teria sido a postura de Dória caso o protagonista da história fosse um adversário da esquerda? Do caso da filha de Lula na campanha de 1989, em que o tema do aborto foi utilizado, às fake news de 2018, muita coisa mudou em termos de campanha eleitoral, mas infelizmente o uso distorcido ou abusivo dos conteúdos morais permanece inalterado. A eleição de 2018 com certeza entrará para história, ela se mostra um divisor de águas, independente dos resultados, seja pelos riscos já mencionados, seja pela maneira distorcida como que o processo eleitoral vem acontecendo. A manipulação da informação precisará ser bem compreendida. Essa forma privada de comunicação – expressão da sociabilidade neoliberal – expressa na fabricação e divulgação dos conteúdos via smartphones, desafiará os projetos coletivos e de participação social. As graves denúncias que vinculam o candidato Jair Bolsonaro à produção defake news e sua disseminação através de grupos de WhatsApp financiados com dinheiro de caixa 2 constituem os ataques mais graves ao processo democrático das eleições desde a redemocratização do país. Ao mesmo tempo, o conteúdo desse material é profundamente nocivo à sociedade, pois aprofunda ainda mais o distanciamento entre as conquistas sociais e civilizatórias da sociedade brasileira e a empurra para um passado obscurantista e notadamente conservador retocado por photoshop.
O eleitorado, submetido à guerra de informações liderada por ideólogos do fundamentalismo religioso e moral, fica à mercê dos interesses econômicos e políticos que os financiam, dissimulada ou abertamente, fragmentando-se e dispersando sua força potencial com mentiras produzidas e utilizadas propositadamente para esse fim, ou seja, a sociedade é vítima de um processo que se dá em duplo sentido: impede o debate sério e aprofundado dos temas econômicos e políticos e, por outra via, ainda deforma e retarda as conquistas humanas e civilizatórias. Vejam os temas que suscitam debate às vésperas das eleições: aborto, direitos da população LGBTI, a descriminalização e legalização do consumo de drogas, a laicidade do Estado e os direitos religiosos. Enfim, a discussão gira em torno da possibilidade de regressão dos poucos avanços sobre essas pautas.
O fato é que nesse jogo ideológico quem perde são as minorias – mulheres, negros, quilombolas, indígenas, população LGBTI, usuários de psicoativos, entre outros. Um amigo querido, professor extremamente competente e criativo que busca exercer livremente seu direito de amar outro homem, relata o assédio sobre a população LGBTI relativo à pressão midiática em torno do suposto Kit Gay que nunca existiu. Dilma foi acuada em 2010 com uma pauta obscurantista em torno do aborto. Haddad teve de explicar, entre indignado e incrédulo, que nunca escreveu uma obra defendendo o incesto. Enquanto isso cresce o número de mulheres trans, negros, índios e gays assassinados durante a campanha do 2º turno das eleições.
Um fio de esperança aparece quando lembramos que neste mesmo sofrido 2018, tempo da eleição mais difícil e da ameaça mais reacionária da história do Brasil, São Paulo elege como deputada estadual uma mulher negra, trans, educadora, artista e nordestina e o Brasil vive um clima de virada que poderá assegurar a derrota do pensamento ultraconservador, reacionário e autoritário. De todo modo, vamos pedir piedade pra essa gente careta e covarde!
[1] Originalmente publicado no Jornal GGN em 25 de outubro de 2018.
[2] Assistente Social da área da Saúde. Pesquisadora do NEPEDH (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ética e Direitos Humanos) PUC-SP. Aluna do 1o ano do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.