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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    53 Abril 2020  
 
 
CRÔNICAS DA QUARENTENA

ENJANELADOS


Daniela Athuil [1]




Sou uma observadora das janelas da cidade. Observo o rosto de cada prédio, os olhos de cada apartamento, ora abertos, ora fechados. Observo as construções paradas, a geometria das casas e condomínios. Formas espalhadas aleatoriamente, reduzindo o tamanho do céu. Bem-te-vis e carcarás se revezam no parapeito das sacadas.


As palavras dormem.

Da minha janela às vezes vejo pessoas caminhando com cachorros ou sacolas de compras, bicicletas e motos levando entregas. A cidade parece uma memória. O vento sopra livre entre os prédios, uivando nos vãos da janela, me lembrando que a natureza fala. O sol nasce desnublado, dilata, expande. Agora é ele que encolhe a cidade. Estou acordada e meus olhos estão nus.

As palavras ainda dormem.

Algo perturbador me atravessa. O confinamento é violento, a vida convulsiona. A cidade acuada me interpela: o que é uma cidade sem pessoas? Sinto uma necessidade profunda de falar, de me comunicar com o mundo. De gritar nossa fragilidade. Precisamos uns dos outros. De um jeito novo. Nosso tecido social/urbano esgarçou, assim como nossos códigos de relação.

As palavras calam.

Ao mesmo tempo tenho a estranha sensação de que há uma dimensão conhecida dessa experiência, uma espécie de memória coletiva inscrita. Somos sempre testemunhas e sobreviventes de todos os traumas da história, agora brutalmente reavivados. O que aconteceu deixa marcas.

As palavras lembram.

Minha filha brinca na sala. Enterra sua boneca que morreu por causa do vírus.

Tento socorrer a paciente, levá-la ao hospital, colocá-la no respirador. Já não dá tempo. “Está tudo triste mamãe, vamos enterrá-la”.

As palavras choram.

O lúdico conversa com a morte e com a falta de sentido. Não há mais como disfarçar a realidade nem mesmo para as crianças. O trauma perfura, machuca. Mas também nos sensibiliza. Nos distancia mas também nos engaja: “Mamãe, e quem não tem casa, fica aonde?”

As palavras saltam na esperança de serem lançadas numa garrafa ao mar. Na esperança de que a gente possa novamente encontrá-las. Ainda dá tempo.





[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo de trabalho e pesquisa O feminino e o imaginário cultural contemporâneo, do grupo de intervenção e pesquisa clínica Da gestação à primeira infância e da equipe editorial deste Boletim.




 
 
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