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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    56 Outubro 2020  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

CONFINAMENTOS, CONFINAMENTOS E CONFINAMENTOS


EDUARDO LOSICER [1]


A escolha deste provocativo título tem o propósito de enfatizar que, neste pequeno texto, se trata de apresentar variações sobre um mesmo tema [2].

Na primeira versão de nossa análise clínica sobre situações concretas de confinamento, construímos uma crônica com algumas páginas de nosso diário de bordo de uma experiência clínica nas plataformas de alto mar, misturadas com análises comparativas em relação (assimétrica) com a experiência de confinamento por quarentena que a pandemia nos impõe hoje a todos.

O específico mal-estar produzido em ambas as situações se revela, certamente, de uma singularidade incomparável, mas tentamos articular certas oposições contraditórias que se formavam entre ambas. A plataforma como modelo absoluto da produção compulsivamente perfeita que o mercado exige, por um lado, e o isolamento forçado do mercado imposto pela quarentena doméstica. Nas plataformas, era o incomparável sistema de alta produção que provocava o efeito de confinamento, mais do que o fato de estar ilhado no meio do mar. O custo psíquico do desempenho máximo exigido (produção absoluta de sujeito de desempenho) produzia nos embarcados uma psicopatologia de fronteiras dificilmente encurvável, ao passo que a quarentena compulsória pelo vírus revela estas fronteiras por motivos inversos: o mal-estar é produzido pelo fato de estarmos radicalmente privados da compulsão dos mercados e do consumo. Produtividade máxima como paradigma da cultura do desempenho versus consumo mínimo dos isolados do mercado... no embate se descortina uma miríade de sintomas antes latentes. O distanciamento cortando o grande elo entre produção e consumo de uma forma inédita e extrema, engendrando patologias e formas de vida nunca antes experimentadas.

Certamente a flexibilização do distanciamento social provocará uma nova torção entre estas linhas de produção e desconstrução de subjetividades, mas achamos que vale a pena analisar as emergências que lhes surgem... antes que se fechem. Não se trata apenas de dar nome às novas distopias e utopias que nos saltam aos olhos - até mesmo porque nossa capacidade de compreensão está inegavelmente afetada -, mas de olhar, no presente corrente, os fragmentos que se nos apresentam minimamente inteligíveis e transmissíveis.

É inegável que, nos tempos atuais, o logos que nos constitui está sendo duramente alvejado nos seus âmagos de Razão e Verdade. A Ciência - que ainda os sustenta – retrocede diante do ataque dos que a negam radicalmente. Os negacionistas estão no poder e os terraplanistas, com a visão de mundo plano, empurram-no para a milenar era pré-copernicana, com sua tentadora ilusão de homem narcisicamente autocentrado, centro do universo.

Para compor o complexo e depauperado marco conceitual que interessa às nossas reflexões, temos que considerar que o conceito determinista da história está em suspensão na medida em que o acontecimento histórico está transcorrendo bem diante de nossos olhos, em tempo real, condenando-nos a esperar por um futuro incerto para encontrar-lhe sentido. Os signos a que estamos habituados para representar-nos o mundo somem nestes tempos obscuros e pareceria que não há mais semiologia nem qualquer método pronto para compreender o sentido perdido no embate.

Foi assim, buscando analisadores menores, que encontramos um novo vértice de análise clínica quando percebemos que a nova sintomatologia da vida confinada podia ser reunida sob o título geral de síndrome de privação/abstinência. Mudamos a premissa de pensar que os confinados são principalmente afetados pelos excessos próprios do encerramento, e assim consideramos que também são afetados pela suspensão súbita de tudo que estava sendo vivido de modo igualmente compulsivo.

Acrescentamos o entendimento de que é a privação das compulsões “normais” que nos deixa abstinentes sintomáticos. A compulsão de consumo, a mais paradigmática das compulsões da vida acelerada, foi bruscamente suspensa pelo confinamento e isto não poderia ser sem efeito. Matriz de todas as compulsões, a força do consumo se infiltra normalmente entre as classes seguindo as linhas do poder de compra e se aninha nos grandes e pequenos vícios de cada indivíduo e cultura. Não necessariamente nas compulsões próprias da pessoa neurótica. Não há, apenas, a típica frustração/castração que separa o neurótico do seu objeto, mas a privação traumática do gozo que ele propicia. Dentro deste vácuo, as forças psíquicas primárias subitamente liberadas por trauma se irradiam balizadas pelos momentos históricos marcados pelos excessos e abusos vividos na experiência individual e social.

A angústia emblemática da neurose emergente no início do século passado dá lugar à compulsão como sintoma do início deste conturbado século. Aquilo que era nervosismo da vida moderna na época da angústia freudiana, agora é o nervosismo dos mercados que nos impulsiona ao consumo. Vimos que os embarcados – no polo da produção – nos permitem perceber o drama que vivem aqueles que são impulsionados à produtividade absoluta.

Desde esta perspectiva de dupla fase (saturação de objetos ofertados subitamente suspensa pelo confinamento), é possível pensar que os sintomas de estresse dos quarentenados se misturam com sintomas de privação do estresse “normal” da vida cotidiana. Como uma bricolagem de fragmentos, a clínica nos mostra distorções básicas de tempo e lugar, por exemplo. Sentimentos de distopia e dessincronia são próprios dos territórios ‘totais’ e flutuam no seu ar rarefeito e toxico. A distorção do tempo provoca efeitos de colapso de futuro (privação de projeto) e fragmentação do passado (frequentes falhas de memória). O sentido de aqui e agora também entra em torção e fragmentação, assim como o sentido de devir e de transformação. A sensação de tempo parado - síndrome da marmota, que acorda sempre no mesmo dia - convive com seu oposto de tempo acelerado – todos os dias são iguais.

A repentina privação de rotinas preestabelecidas subtrai o sentimento de vigência de uma ordem coletiva – política – e abandona o sujeito às dificuldades de estabelecer as rotinas possíveis entre os conviventes clausurados, mesmo que se sigam as regras estabelecidas nos casos de atividades ordenadas à distância.

Acima de tudo, é a suspensão do pensamento único da segurança – aquele que tudo ordena - que nos deixa expostos a riscos literalmente incalculáveis. Junto com ele, o gerenciamento de risco – coração do pensamento único neoliberal – também falha. Na prática, esta gestão trata dos riscos que correm os investimentos de capital e deixa o cálculo dos riscos sociais a cargo de um Estado reduzido ao mínimo. Seria impensável que um Estado assim reduzido tenha competência para avaliar o risco de uma pandemia, por exemplo. É assim que antes mesmo de poder calcular o risco de contágio na pandemia, o confinado perde a garantia protetiva do Estado e perde ao mesmo tempo a possibilidade de cálculo de risco privado - individual e familiar - a que está submetido. Dentro deste quadro, é o risco de classe que se realiza com toda sua crueldade.

Para potencializar estas perdas, o governo negacionista abandona toda e qualquer responsabilidade social, de maneira que a função de proteção do distanciamento social fica impregnada de uma inegável ambiguidade. É neste solo desprovido de lógica que crescem os sintomas produtivos e os sintomas de privação. Esta diferenciação – artificial, para atender nossos propósitos – separa dois mecanismos básicos da produção de sintomas: aquela que segue o modo da neurose, mediada pelo retorno do reprimido, diferente daquela produção imediata própria do sintoma pós-traumático. Embora seja prematuro ensaiar classificações nosológicas para a sintomatologia encontrada no confinamento, pudemos perceber que o recrudescimento de sintomas neuróticos não se verifica como esperado. Não necessariamente os fóbicos se tornam mais fóbicos nem os obsessivos mais obsessivos. A angústia claustrofóbica (inconscientemente determinada) não prevalece sobre a vontade consciente de sair para a rua, ainda menos quando os poderes públicos estimulam a quebra das regras de isolamento. Tampouco na clínica das plataformas encontramos encaixe dos quadros caraterísticos dentro das grades da psicopatologia tradicional. As diversas manifestações de depressão descritas pela psiquiatria clássica também não se encontram como esperado, mesmo que propiciadas pelo ambiente sufocante do confinamento. Na maioria dos casos parece mais como sendo resultado direto do sentimento de impotência que domina toda a economia psíquica dos enclausurados. Conste que não se trata da depressão encontrada em lugares compulsoriamente fechados, como prisões e outras organizações concentracionárias. É justamente a peculiar incerteza sobre o fim do confinamento que propicia a oscilação entre se submeter à ordem – impotência e depressão - ou transgredi-la – negação onipotente do risco -, transgressão que, em condições habituais, poderia ser considerada como atitude suicidária. Mesmo neste exame superficial da fenomenologia do confinamento, temos que assinalar que a propalada síndrome do pânico – quadro que qualificamos como doença da morte iminente – se apresenta brutalmente misturado com a evidente banalização da morte e da fria gestão dos corpos inviáveis, escancaradas pela imprevidência e pela falência da administração da saúde pública.

De fato, todas as manifestações do pathos do confinamento em épocas de Covid são derivações a partir deste novo vértice de subjetivação da morte. A precarização e o desvalor da vida parecem se propagar junto com o vírus, seguindo as fendas abertas pela desresponsabilização do Estado. Os laços de solidariedade se esgarçam e as pessoas, hipersensíveis ou anestesiadas de suas emoções, sentem a frieza e a tensão deste esgarçamento penetrando até a intimidade dos ambientes confinados. Uma certa emotividade à flor da pele se apresenta frequentemente, desconfortavelmente despida das racionalizações que habitualmente lhe dão motivo. Nós as entendemos como prova do excesso de carga (trauma) a que o psiquismo fica submetido quando carece das representações que a signifiquem (chorar vendo novela). É de notar que nos embarcados, contrariamente, os laços solidários se fortalecem para efeitos de união das equipes de alto desempenho, gerando vínculos de amizade e reconhecimento praticados exclusivamente no seu mundo ilhado e nunca conhecido “pelos de fora”. Nos quarentenados, ineficientes, enfrenta-se o problema econômico do excesso (na metapsicologia freudiana a emoção é pura quantidade que se desloca entre as representações) mobilizando reações primárias de desligamento que se manifestam de diversas formas: hipermotilidade corporal fisioterápica alternada a sentimentos de forte preguiça; vontade de dormir alternada a insônias lúcidas - sem sono nenhum -; irritabilidade com o convivente misturada a distanciamento indiferente; esforço e falha do reconhecimento que dificultam a elaboração necessária para dar suporte ao outro (casos frequentes de separação de casais).

Também o imaginário coletivo mobilizado pela pandemia permite um enquadramento psicopatológico de suas manifestações. O “delírio conspiratório”, por exemplo, que na psiquiatria é a expressão que melhor representa o grande grupo das psicoses, dá base para que os meios de comunicação façam uso – e abuso – de sua aplicação nas mais diversas circunstâncias, frequentemente como “teoria da conspiração”. Lado a lado com analistas políticos e outros “especialistas” da interpretação do atual, a referência se justifica na medida em que só no delírio se encontra uma plena convicção de suas assertivas. A certeza típica do delirante, que independe de qualquer crítica, é frequentemente usada para a compreensão dos mais diversos arranjos ideológicos auto afirmativos e excludentes, que pressupõem um perseguidor ou inimigo confabulado lhe dando causa. Em tempos de incerteza profunda, a certeza delirante se oferece como única tábua para atravessá-los. É o conhecido “método que há na loucura”, núcleo lógico e invencível guardado por todo o delírio – única lógica que flutua no grande mar da irracionalidade. A nau dos insensatos que a todos salva.

Da mesma perspectiva, o grupo das psicopatias e sociopatias costuma servir de base para a interpretação de discursos políticos claramente manipuladores e impositivos. Tanto que a extrapolação acaba sendo convincente. Porém, na fronteira difusa entre estes campos de saber, o perigo de despolitizar mediante a patologização se torna mais iminente. Este risco é assumido, inversamente, pelos analistas que apelam para diagnósticos psicopatológicos para caracterizar figuras públicas, principalmente seus dirigentes e líderes. Declarar a sua insanidade acaba por naturalizá-los como sujeitos de onipotência inconsciente e de delírio místico, por exemplo. Os efeitos políticos das ações dos terraplanistas são minimizados como simples arrogância típica dos ignorantes. A pessoa comum, afastada subitamente do consumo e da produção, é empurrada para um questionamento existencial que afeta todos os cenários futuros em que a pessoa se projeta. Aliás, quando o futuro está colapsado, como é nosso caso, o questionamento reflui para o próprio sujeito, obrigando-o a questionar-se sobre o que seja ter uma “filosofia de vida” aqui e agora. Muitos percebem a desnecessidade de certos consumos e se abrem à possibilidade de outros modos de vida. Talvez esta seja a grande descoberta propiciada pelo confinamento. Dependendo da capacidade de se abrir para o incerto, descobrem-se coisas de si, do outro e do mundo, que antes estavam encobertas.

As revelações se impõem de todo o lugar – do real entorno e do imaginário – e nem sempre trazem boas notícias. Os véus se rasgam e as máscaras caem... e o que mostram não é nada de agradável. É inegável que a pandemia escancara os piores aspectos do ser humano e provoca uma queda dos ideais cultivados ao longo da vida. O medo, a decepção e a perda ensombrecem a esperança dos otimistas e ataca os brios dos revolucionários que acreditam ver a insurreição surgindo entre os destroços sociais deixados no avanço inexorável da pandemia. O mundo das aparências parece ruir em tempo retardado, deixando expostas, aos poucos, as vísceras do Estado e do mercado. Para não ficar preso do mau cheiro que exalam, é bom constatar que o humor tem se mostrado como a melhor linha de fuga da merda exposta. É necessária uma boa dose de espirituosidade (espírito transgressivo) para jogar com o não-sentido geral, e tirar dele alguma diversão de passagem ( divertere).

Se a clínica dos confinados nas plataformas em alto mar pode representar o paradigma da chamada sociedade do desempenho, a clínica dos confinados pela pandemia se candidata para representar a sociedade do escancaramento, isto é, uma interminável exposição da nudez do rei.

Com o distanciamento nos transformamos em ocupantes resistentes de nosso próprio espaço privado, mas desprovidos de qualquer proposito político. Como aproveitar o corpo liberto pelas funções remotas que vêm para solucionar o distanciamento? Como perceber, ao contrário, as novas alteridades emergentes na convivência forçada? Ou ainda... como aprender, eventualmente, da solidão imposta?

É obvio que tudo isto se transforma velozmente nas oscilações entre flexibilização e novo confinamento, mas também é verdade que passamos do ponto de retorno à situação anterior, e isto implica em pensar que a pandemia pode ate acabar, mas o “confinamento” deve continuar indefinidamente.



Agosto/2020.





[1] Psicanalista e analista institucional argentino-brasileiro, clínico e pesquisador independente, atua nos campos da saúde mental e dos direitos humanos.

[2] O autor aqui faz referência a seu artigo anterior, intitulado “Confinamentos e confinamentos”, publicado na edição 54 deste Boletim, de junho de 2020: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?apg=b_visor&pub=54&ordem=3




 
 
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