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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    16 Abril de 2011  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

INTERVENÇÃO NUM ESPAÇO DE FORMAÇÃO MÉDICA: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA


No dia 31 de março, realizou-se no Sedes o evento organizado pelo Departamento de Psicanálise - “Intervenção num espaço de formação médica: relato de uma experiência”.  O projeto em questão, coordenado por Cleide Monteiro, Maria Laurinda Ribeiro de Souza e Vera Lucia Zaher, foi introduzido pela articuladora de eventos, Noemi Moritz Kohn. No grupo  presente de aproximadamente 50 pessoas, entre membros e alunos do Departamento, havia participantes de parcerias anteriores do Departamento, além de profissionais de outras instituições de saúde. Todos  mostraram-se bastante tocados pela apresentação. Foram diversos os depoimentos de colegas com percurso institucional, em que reconheciam as temáticas e dificuldades  surgidas ao longo do projeto, o que reforça a importância de um espaço coletivo de escuta no campo da Saúde Mental.


Nossa proposta, com a apresentação realizada no dia 31 de março sobre a experiência de intervenção realizada na Faculdade de Medicina de Botucatu durante o ano de 2010, não  pretendia apenas responder ao compromisso com o coletivo do Departamento, no sentido de partilhar uma experiência vivida e que se referia a um contrato de trabalho com o Instituto Sedes Sapientiae – Departamento de Psicanálise. Ela tinha, para nós, o intuito de recolocar em discussão, atualizar e, se possível, retomar um caminho já trilhado pelos que iniciaram este Departamento, através do Setor Saúde Mental e Instituições.  Vale a pena lembrar que o Setor Saúde Mental e Instituições foi um dos primeiros grupos de trabalho deste Departamento, estando na origem de sua própria formação. Mudanças significativas no gerenciamento das políticas de Saúde, na configuração dos espaços públicos coletivos e na primazia progressiva da medicalização como forma de tratamento, foram, aos poucos, esvaziando e desviando o nosso investimento nesta forma de intervenção e interrompendo o convênio de formação e supervisão firmado, desde o final de 1983, com a coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Estado.

Assim sendo, queremos deixar claro que ao fazer este relato, estávamos de certa forma, nos reencontrando com experiências já desenvolvidas e elaboradas por nós, em outros espaços e em outros tempos. Este comunicado, agora estendido ao Boletim, mantém o convite, anunciado na convocação para aquele encontro: o de que possamos não só ampliar a discussão do trabalho realizado, mas também reativar novas configurações e novos projetos que se situem na vertente aqui retomada.

Para nós, o trabalho de escrita desta experiência e o compromisso de fazer esta apresentação, permitiu que ressignificássemos nosso percurso. Foi importante ter este coletivo como "lugar terceiro" a quem podíamos dirigir nossa narrativa e nos faz reafirmar a necessidade de se manter vivo um espaço de escuta para as experiências que se mantém isoladas neste Departamento.

O início do projeto:

Em plenas férias de Janeiro de 2010 chegou, através de Daniela Danesi, membro do Departamento, uma solicitação para que o Departamento realizasse um trabalho junto à Faculdade de Medicina de Botucatu da UNESP. Mais especificamente, um trabalho junto ao grupo de tutores da disciplina Interação Universidade-Serviço-Comunidade – IUSC. O pedido chegava marcado pela urgência – estávamos em ano eleitoral e a verba destinada pelo Ministério da Saúde para o programa de formação permanente para médicos deveria ser utilizada até maio daquele ano. Havia também a exigência de que fosse firmado um convênio institucional formalizado com o CNPJ do Sedes Sapientiae. O pedido demandava, portanto, uma resposta imediata. Era necessário formar um grupo de trabalho, elaborar um projeto de intervenção e conseguir uma apreciação favorável tanto do Instituto quanto do Departamento de Psicanálise. Sem contar os acertos administrativos e burocráticos que essas tarefas sempre solicitam.

Os contatos para viabilizar a formação do grupo de trabalho se dirigiram, inicialmente, aos membros do Departamento que fizeram parte do setor “Saúde Mental e Instituições”. As respostas foram surpreendentes, pois as pessoas lamentavam não poder realizar a tarefa nesse momento, mas gostariam muito de se envolver com o projeto – em outro momento, com uma outra forma de colaboração possível... Não seria essa disponibilidade, tão enfaticamente anunciada, uma evidência  da “demanda reprimida” para projetos que pudessem reinserir o Departamento no cenário da formação para o atendimento na rede pública de atenção à saúde?

As conversas iniciais acabaram formalizando um grupo de trabalho composto por três membros do Departamento: Cleide Monteiro, M. Laurinda R. Souza e Vera Zaher. Limitações de tempo determinaram uma divisão no grupo que se manteve até o final do projeto: Cleide e Vera coordenaram as atividades de campo, realizadas mensalmente, com períodos alternados de 4 e 8 horas de reunião, e M. Laurinda participou da retaguarda do trabalho, em São Paulo, com uma escuta diferenciada daquela que se tinha na presença de tantos interlocutores.

As primeiras reuniões com a equipe que coordena o IUSC confirmaram o interesse pela tarefa, e despertaram o entusiasmo do reencontro com profissionais que se implicam com os projetos de formação e com os cuidados da saúde da comunidade em que trabalham.

O programa do IUSC desenvolve-se já há 7 anos, envolvendo os alunos do 1º, 2º e 3º anos de medicina e os do 1o e 2o  anos de enfermagem, e faz parte das estratégias de mudança do currículo de ensino da FMB. Ele se insere num processo de mudança curricular mais amplo – a nível nacional –, que busca contemplar a demanda por novas formas de trabalhar o conhecimento do ensino superior, seguindo a orientação política do Ministério da Educação (MEC) para implantação das novas diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Medicina. Seus objetivos incluem a inserção dos alunos nas equipes das unidades básicas de saúde ou unidades de saúde da família e promover sua interação com os moradores, lideranças comunitárias e outros profissionais de saúde, dentro da proposta mais abrangente do Sistema Único de Saúde.

O pedido explícito para este trabalho era o de organização de um curso de psicanálise a fim de que os tutores-preceptores pudessem aprender a lidar com os conflitos instaurados em diferentes instâncias: entre professores e alunos, entre os alunos de medicina e os de enfermagem, entre professores e tutores–preceptores e a instituição. “Eles estão se matando” foi uma das expressões enunciadas pela coordenadora do projeto e que nos apontou a intensidade do que estava sendo vivido.

A palavra curso nos trouxe uma certa surpresa e perplexidade, já que, de nossa parte, a escuta do pedido apontava para uma tarefa pertinente à análise institucional. Mas, para que se constituísse essa parceria, foi preciso apresentar um modelo de curso nos moldes tradicionais, que pudesse receber o aval oficial das instituições implicadas... A apresentação oficial de um programa para este projeto foi, portanto, parte necessária para a formalização do contrato encaminhado ao Ministério da Saúde.

O próprio trabalho de discussão para a escolha de um título para a apresentação ao Ministério já anunciava a necessidade de alguns acordos: “Educação permanente para a formação de tutores e preceptores do ensino na graduação médica e de enfermagem em atenção básica à saúde: a contribuição da psicanálise”. Como vocês percebem, o excesso de termos é revelador dos acordos feitos. Além da expectativa inicial de um curso e, ao mesmo tempo, o desejo de uma intervenção que dissolvesse os conflitos, a apresentação do projeto e abertura das inscrições suscitou novos conflitos: por que contratar uma instituição externa à faculdade? Por que a psicanálise? Descrédito de que a psicanálise, sendo um saber ultrapassado, tivesse alguma contribuição a fazer. Questionamento sobre a não-inserção de outras equipes que não os membros do IUSC. Portanto, ao lado dos ataques, uma manifestação desejante de participação. Esse cenário provocou uma abertura na composição do grupo, que não ficou restrito aos preceptores-tutores.

Em paralelo nós também nos reuníamos para processar as informações e construir uma linguagem que fosse nos preparando, enquanto grupo, para a coletivização da tarefa. Foi o tempo de nos depararmos com as diferenças de expectativas, de disponibilidades, de referências... Levantamos várias possibilidades de condução, estabelecemos uma diretriz para o projeto e organizamos a bibliografia básica – para nós e para o grupo. As reuniões do nosso grupo se mantiveram com uma frequência bastante regular (encontros semanais ou quinzenais). Discutíamos o encontro com o grupo, analisávamos os movimentos, as demandas, as respostas da coordenação, as dificuldades de manejo e processávamos possibilidades de continuidade.

A experiência dos encontros:

O grupo teve início com 40 participantes das diversas especialidades: 21 médicos, 8 enfermeiros, 8 psicólogos, 1 dentista, 1 pedagoga, 1 assistente social.  Solicitados a se apresentar, falaram das expectativas que tinham com o trabalho que se iniciava. Anunciaram todos os tipos de conflitos e também de dificuldades: questões relativas à política e à gestão, à sustentação dos alunos na mudança dos paradigmas de formação; à forma pela qual os alunos respondem aos questionários propostos, à relação professor-aluno, aluno-paciente, professor-professor. O trabalho com a comunidade é uma das grandes questões; os alunos sentem-se invadindo a casa dos pacientes, têm medo da violência dos bairros, chocam-se com a pobreza... Mas, também, ficam mobilizados com outros afetos – a solidariedade e o desejo de ajuda.

As narrativas vão evidenciando a angústia, o horror, a perplexidade do encontro com uma realidade que é distante da experiência dos próprios tutores. Desejam aprender a lidar com a diversidade, a trabalhar em equipe, a otimizar o processo que contempla diversidade de visões.

Discutindo na retaguarda a intensidade transbordante da angústia, pensamos no conflito entre a idealização do projeto e as possibilidades reais de seu exercício e no descompasso entre a formação dos tutores e aquilo a  que se propõe realizar em seu papel formativo. O discurso de “reinventar o novo na ‘velha’ prática médica”, a concepção tão valorizada da integralidade, o desejo de implicação com a comunidade, produzia, quando da aproximação com a realidade, um grande choque desestabilizador. O grupo parece se manter graças a um ganho narcísico desse ideal, mas isso é também palco para a rivalidade das pequenas diferenças e para o receio do não-saber.

No segundo encontro, marcamos a urgência e intensidade de suas falas na reunião anterior e propusemos que eles se apresentassem novamente. Para nossa surpresa trouxeram sua vida pessoal e a inserção profissional, historicizando vários momentos de seus percursos de forma muito íntima. Confiança muito promissora para um grupo que estava se constituindo. As narrativas, embora não explicitamente reconhecidas, criavam laços. Reproduziam no grupo, com surpresas, o encontro com a estrangeiridade anunciada como questão.

A cada reunião avaliávamos o percurso, as discussões e definíamos novas estratégias de condução. Introduzimos textos que abordavam experiências que se aproximavam das questões conflitivas anunciadas: O Espelho, de Machado de Assis,  Grupos (fantasmas) no hospital, de Eduardo Losicer e O hospital: um espaço terapêutico?, de M. Laurinda R. Souza. A leitura funcionou como disparador de mais falas sobre as próprias experiências – um falar que ainda não era de uma intermediação ou elaboração possível mas antes revelador da necessidade de uma escuta para o que era vivido.

Formamos pequenos grupos de discussão para que se fortalecesse a escuta e a intimidade. Surgiram situações-problemas que foram trabalhadas e retomadas pelo grupo em outros momentos. Nelas anunciava-se o medo de se defrontar com o que devia ser reconhecido e tomar medidas justas, pois no momento decisivo havia um abandono sistemático do que podia ser o encaminhamento mais adequado. Fazer uso da autoridade legítima era vivido como um risco. E se, ao fazer isso, fosse aberta a “Caixa de Pandora”? O que fazer com a loucura que podia aparecer? Nesses relatos evidenciou-se a solidão e o desamparo de cada um e a necessidade de uma sustentação grupal que legitimasse os lugares institucionais. Partilhar essas experiências conduziu o grupo a construir várias sugestões e perguntas sobre como mudar essas posições e como fortalecer as parcerias. Para todos, retomou-se a necessidade de fazer valer os acordos e as diferenças, em lugar de sustentarem o que chamamos de “circuito de defesa evitativa”. Uma fala é representativa desse momento: “Nossa, como a história faz a gente entender o que se passa”, “E poder mudar...”, completa uma das coordenadoras.

Diante do valor enunciado das narrativas e da apresentação de uma realidade comunitária onde se vislumbravam tantas dificuldades de transformações, pensamos em introduzir a discussão de um filme: Sobreviventes, dirigido por Miriam Chnaiderman, foi o escolhido. A resposta a esse encontro foi impactante – reproduziram-se, no grupo, os efeitos da crueza dos excessos. O traumático não teve tempo suficiente de elaboração. Após o filme, o silêncio foi absoluto. Depois, lentamente, as falas: “Força dos depoimentos; há um fundo do poço – cada um sabe do seu. A moça que renasce quando o filho é colocado perto dela...”; “Parece que alguns conseguem; também na doença alguns conseguem...”; “Situações-limite, o médico cura?  É muito difícil”; “O que é viver, o que é sobreviver?”; “Ao perguntar ao paciente, perguntamos a nós mesmos e isso é terrível, pois precisamos olhar para a nossa própria história”; “Eles não são vitoriosos, são fracassados. Não faria esse filme”. Mas, depois dessas falas, surge um relato sobre o valor das narrativas e o entusiasmo no trabalho de ouvir os alunos. Morte e vida fazem sua presença. Foi um encontro difícil que deixou muitos restos...

Um dos restos apareceu nas faltas do encontro seguinte e na carta de um dos integrantes do grupo, que reafirmava sua crítica ao filme e manifestava o seu desejo de um curso de psicanálise. Será que o filme os confrontou muito diretamente com o horror do vivido no contato com a “miséria” da população? Com a loucura da “Caixa de Pandora” anunciada no temor de enfrentar as situações-problema relatadas no encontro anterior? Com a fragilidade manifestada no não-saber e daí uma retirada defensiva para o pedido de um curso? Mas, temos que reconhecer que o que privilegiamos no primeiro encontro – o valor de se ter tempo para as apresentações - reapareceu, de forma crucial, como impossibilidade, neste momento. As faltas, as carências e o desejo de serem treinados em “humanização” reaparecem. Faz-se, também, como resposta, uma tentativa de formar um grupo de troca pela internet – uma comunidade virtual.

Foi significativo que o próximo encontro fosse uma aula. Uma aula cujo tema contextualizava teoricamente muitas das situações vividas – a transferência, as expectativas do olhar do outro, o lugar do desamparo, o narcisismo, a constituição do sujeito.

O término:

No último encontro, ressituou-se a pergunta sobre a historicização. Os textos sobre as narrativas na transmissão da clínica sustentaram essa discussão. Surgiram questões: Para que serve escutar uma história? O que se faz com isso? Quais os limites da narrativa? O que se faz com os afetos provocados pela escuta? Qual o diferencial do médico nessa proposta de escutar, acolher... Onde fica sua especificidade?

E algumas respostas: “Se você deixar falar, às vezes a queixa inicial desaparece”; “Mas faz diferença para o paciente. O profissional deve acolher... porque alguém que fala é para um outro ouvir”; “A questão do tempo faz muita diferença; dar o tempo das coisas. Resolução para mim era um mote”; “Aprofundar as narrativas é necessário”!

E também exemplos de outros manejos possíveis. Modificar a organização do serviço. Desejo de participar do IUSC. Conversar com os estudantes... Atender, em dupla, situações difíceis. Manter os espaços de conversa.

O fechamento deste projeto trouxe uma série de relatos sobre os efeitos do trabalho para cada um dos membros do grupo e também das contradições e paradoxos que surgem no cotidiano da vida de todos. O reconhecimento da importância de partilhar experiências e a vontade de continuar com esse espaço de encontros e de trocas, tendo um tempo para elaborá-las, foi uma manifestação do coletivo.

Para encerrar, transcrevemos fragmentos de um depoimento escrito e encaminhado a nós, espontaneamente:

“.... A decisão de deixar o paciente falar assusta, inicialmente. O que o paciente tem para falar que eu tenha que ouvir... Abrir espaço para o outro falar, nem é tão difícil. Acho que o mais desafiador é acreditar na importância de ouvir o que o paciente tem a dizer.

 ... A oportunidade de participar deste grupo de discussão, deste curso, me fez desacelerar. Acrescentou outras formas de ver as situações, a necessidade de diversificar o olhar e ouvir, mais do que tentar resolver.  Afinal, é pouco o que a gente realmente resolve nesta vida. A preocupação com o resolver deu espaço para o ouvir.

Mas reconheço que me compliquei um pouco. Ainda não coordeno bem o meu tempo, tenho trabalhado muito mais, meus ambulatórios não raramente entram no horário de almoço ou à noite. Ao mesmo tempo, sinto-me bem mais instrumentalizada para mostrar a importância desta prática para meus alunos, residente e colegas de trabalho. Já foi possível assistir algumas transformações ao meu redor e isso foi muito gratificante, mas muito trabalho há pela frente. O dia-a-dia é muito rico de conflitos, problemas e nem sempre paramos para refletir sobre eles.

Paulicéia, 2011.

(1) M. Laurinda R.  Souza e Cleide Monteiro são membros da Departamento de Psicanálise e professoras do Curso de Psicanálise. Vera Lúcia Zaher é médica pediatra, psicóloga e membro do Departamento de Psicanálise  do Instituto Sedes Sapientiae.



 
 
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