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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    32 Novembro 2014  
 
 
NOTÍCIAS DO DEPARTAMENTO

PEQUENO RELATO DA MESA VERDADE E FARSA


MIRIAM CHNAIDERMAN[1]

                        
A primeira mesa de debates no evento Ditadura Civil Militar no Brasil – o que a psicanálise tem a dizer tinha o provocativo nome Verdade e Farsa.  Eu tinha a dura tarefa de ser debatedora em um encontro entre Maria Rita Kehl e Alberto Dines, duas personagens de nossa história brasileira na luta contra a opressão e o totalitarismo. Iniciei os trabalhos falando da emoção que sentia  ao ver novamente nosso Departamento de Psicanálise retomar a Carta de Princípios que fundou o Instituto Sedes Sapientiae, que deixa claro nosso compromisso na luta por um mundo melhor. Fazer um evento onde buscávamos pensar nossa relação com a história brasileira tinha como base a convicção de que a psicanálise se insere em um contexto político e social e que precisamos refletir sobre o que temos a dizer.


Alberto Dines e Maria Rita Kehl têm trajetórias onde a questão da verdade e da farsa estão contundentemente presentes. Alberto Dines coordena e dirige o Observatório da Imprensa onde exerce importante função crítica e analítica do que vai acontecendo em nossos noticiários, denunciando omissões e cumplicidades perigosas. Maria Rita Kehl integra hoje a Comissão Nacional da Verdade onde vem tendo importante papel. Os dois compartilharam conosco importantes experiências nessa busca pela verdade.

O que marcou o depoimento de Alberto Dines foi a afirmação da necessidade de um trabalho de busca pela verdade que não aconteça só em datas específicas. Denunciou que a história é feita de falsas catarses comemorativas e, depois, o que resta é o esquecimento. Afirmou: “não estamos encerrando 50 anos depois de 64, mas começando”. Segundo ele, “são 7.664 dias a mais que precisam ser lembrados. A história deve nos preparar para o futuro”. Relatou então que na véspera tinha revisto a entrevista que fizera com Cláudio Guerra, delegado do Dops do Espírito Santo. Já havia feito uma entrevista há dois anos atrás. Cláudio Guerra tinha sido preso por uma delinquência comum. Na cadeia se converteu, tornou-se evangélico da Assembléia de Deus.

Alberto Dines conta que ficou impressionado com o modo pelo qual Cláudio Guerra  reconhece o que fez. Conta ter matado, conta ter sido sua a ideia de queimar os cadáveres em uma usina em Santos. Foi ideia sua não deixar traços. Fala de Ana Rosa Kucinski e seu marido, de Davi Capistrano. Alberto Dines se interroga perplexo: o que fazer como entrevistador? Gritar, interromper?

Cláudio Guerra foi preso porque matou uma pessoa que trabalhava com ele e que tinha se tornado um matador. Fazer a violência em proveito próprio é algo inadmissível. Fleury foi liquidado porque se envolveu no tráfico de drogas. O Coronel Manhães também era ligado à contravenção, trabalhava para um bicheiro. Afirma Dines: “Esses 21 anos de ditadura foram a incubadora da violência que está aí até hoje”.

Maria Rita Kehl também relaciona a violência de hoje com o que se passava na Ditadura. Por isso a necessidade de revisar a Lei da Anistia. A impunidade dos torturadores embasa a violência hoje e a persistência da perversidade em nosso sistema carcerário. Em sua fala, usou realmente da psicanálise para buscar entender o que move na tortura. Na Ditadura a porteira do gozo sádico foi aberta. Em nome do bem, se autorizava qualquer mal.

Maria Rita está pesquisando nesse momento, na Comissão da Verdade, os camponeses da Guerrilha do Araguaia. Relata como nem sabiam que estavam numa ditadura militar. E conta como a guerrilha não chegou a acontecer: foram execuções de pessoas que supostamente iriam fazer uma guerra, uma guerrilha. Os camponeses foram horrorosamente torturados.  Relata como um camponês, ao ser perguntado sobre onde estariam os “terroristas” afirmou: “os únicos que estão fazendo terror são vocês”. Maria Rita chega a descrever algumas das terríveis punições. Mas os camponeses “sustentam na palavra a sua liberdade”.

Maria Rita volta à psicanálise e tenta pensar o sadismo do torturador, quando a lei se inverte: quanto mais você gozar.... Há um cálculo, também incluído na psicologia do torturador. Imperativo categórico: se você pode, você deve. Extrair a confissão deixa de ser importante.

A seguir, Maria Rita Kehl mostrou como, com a Comissão da Verdade, o Exército teve a oportunidade de se diferenciar daquele outro momento. E não quis.  Lembra que a presidente Dilma conseguiu proibir a comemoração do dia 31 de março nas instituições do exército, mas não conseguiu que abrissem os arquivos.

Maria Rita termina sua fala afirmando que a forma suprema de crueldade seria manter o desaparecimento dos cadáveres. Tristemente, nos conta que a Comissão da Verdade não conseguiu quase nada em torno dos 146 desaparecidos políticos. Afirma: "nada mais tremendo do que o desaparecimento de corpos, essa tortura não termina”.

Após um emocionado debate, diante do impacto das falas, eu só poderia encerrar a mesa lendo o poema de Nicolai Assiéiev[2]:

Coração Batendo Sem Que Se Ouça

Dias se sucedem,
                            semanas se sucedem
torvelinham
                     num galope célere;
como se cavalgássemos
                                         sobre um tempo de aço
voando
-    olhos abertos-
                           pelo espaço.
Assim a vida,
                      ela nos atravessa –
o ouvido zoa,
                   o coração dispara,
como
        se quisesse
                            saltar para
fora,
-    é só o que lhe resta!
Se alguém
                tenta detê-lo,
                                   ele se altera:
toca a rebate
                     dá por paus e pedras!
E quantas vezes
                           o coração
                                          explode
e não se ouve
                       a explosão
                                        que o sacode.

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[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[2] 1959. Tradução de Haroldo de Campos. In: Poesia Russa Moderna. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2001.

 




 
 
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