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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    49 Abril 2019  
 
 
CARNAVAL

UM CARNAVAL QUE PASSAMOS


NAYRA C. P. GANHITO [i]


Foi em meio ao espanto, à sombra do inominável como resultado possível das eleições presidenciais, em meio à enxurrada de notícias e dos esforços aflitos da campanha do vira-voto, às intensas trocas do grupo Ninguém solta a mão de ninguém, no WhatsApp, que reuniu a comunidade Sedes naqueles dias. A divulgação do magnífico samba-enredo da Mangueira nas redes chegava para nós como um sopro de beleza, de alento e de esperança, provocando admiração e contágios: vai ter resistência na avenida em 2019! E foi assim, vinda de não se sabe bem quem, nem exatamente quando, que cresceu a ideia - e logo a possibilidade - de nos juntarmos à emblemática comunidade da Mangueira em seu desfile-manifesto, atendendo seu chamado a um CarnavAto. Um grupo de 9 pessoas, que não necessariamente se conheciam pessoalmente (alguns encontros se fariam já na avenida), rapidamente se empolgou, aderiu e se organizou em torno dessa oportunidade pulsante de resistir: “Na luta é que a gente se encontra!”


O enredo História para ninar gente grande é levado por um samba tecido por muitas mãos[ii], no qual, ritmo, letra e melodia se potencializam para contar “a história que a História não conta”, “os versos que o livro apagou”, “o avesso do mesmo lugar”. História não cronológica, poética e alegórica, mais celebrada do que “explicada”, que homenageia aqueles que lutaram nas revoltas populares que impulsionaram o país desde sempre, sem menção ou reconhecimento na história oficial. Assim fazendo, devolve-lhes os nomes, a voz, a existência e a potência negados. E sua cor, etnias e gênero: “Mulheres, tamoios, mulatos/ Eu quero um país que não está no retrato.” Lideranças afros, indígenas e femininas ganham corpo, se dão a conhecer. “Aula de história decolonial, a partir de uma perspectiva latinoamericana, indígena e preta. História do Brasil sem excluir as mulheres negras, as lutas e resistências, sem a borracha do olhar europeu.”[iii]

Entendidos observaram que este samba escapa à estrutura comum dos sambas enredos por não ter propriamente um refrão, desenrolando-se num quase continuum sempre recomeçado (o que sentimos agudamente cantando a plenos pulmões por quase uma hora na avenida!). Nele, os tempos históricos do país se misturam em suas repetições mortíferas de sentido: “desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento”; “tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”. “Salve os caboclos de julho/quem foi de aço nos anos de chumbo”. Ouvimos e, confrontados à nossa ignorância, somos convidados a pesquisar: quem foram os Caboclos de julho, e os Cariris, e Dandara, os malês, as Mahins, o dragão do mar de Aracati, que aparecem ao lado de Marielle?

A poética acústica e visual deste enredo ofereceu-se então como narrativa alternativa (“Brasil, meu nego deixa eu te contar...”) e também como convite à escuta: “Brasil chegou a vez, de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês.” Assim, com estes oportunos plurais.

Em um texto certeiro e inspirado publicado nas redes, um tal Padre Gegê [iv]comemorou: “Parabéns e obrigado, Estação Primeira de Mangueira. Só o samba poderia com afroternura chamar um Brasil tão regredido em suas potencialidades civilizatórias de ‘meu nego’ e ‘meu dengo’. E desse jeito carinhoso e familiar o samba o chama a rever uma história a partir do que o sistema de poder quer ocultar e silenciar.”

E ainda: “...para além dos binarismos de oposição do tipo ‘esquerda X direita’ a Mangueira oferece um caminho de revolução histórica a partir do legado africano ancestral que, necessariamente, implica na oralidade, (...) no saber/poder de ‘contar’. E contar é fazer memória, contar é não esquecer, contar é disputar narrativas; contar é transgressão, contar é assumir protagonismos!”

“(...) E isso é revolucionário...O SAMBA tem dessas coisas. O SAMBA tem muito a ensinar, inclusive, à esquerda. O SAMBA tem uma afropotência extraordinária de, muitas vezes, falar de revolução sem falar de revolução!!!”[v]

Parafraseando André Breton (“A beleza será convulsiva, ou não será”), afirmemos: a revolução será micropolítica, estética e subjetivante, ou não será!

A nossa singular “odisseia carnavalesca” daria uma outra história dentro desta. Não se tratou de “brincar o carnaval” como forma de escapismo. Menos catarse do que trabalho, físico e psíquico, foi um meio ativo buscado para sair da paralisia e transformar o medo, a melancolia e o ressentimento, essas paixões tristes, em resistência alegre, recuperando certa potência relacionada ao desejo. Trabalho de equipe, que implicou desde a pesquisa e escolha de como se hospedar no Rio no carnaval, época de lotação e preços altíssimos, até vestir a fantasia, o que não se podia fazer sem a ajuda de outras mãos. Ou sair para a Sapucaí à meia-noite, umas três horas antes do desfile, divididas em duas por táxi porque as fantasias juntas não cabiam – e sem nos perder! Táxi especial, com credencial, pra nos deixar perto da concentração, mas era longe pra caramba! Implicou sair do controle, da zona de conforto, chegar ao limite das forças físicas. Uma experiência - mistura de ativismo, aventura, viagem, ritual iniciático e prazer – capaz de criar laços: hoje nos encontramos nos grupos ou corredores do Sedes, ou fora deles, com um sorriso cúmplice de quem participou de algo “grande” – o desfile da Mangueira foi histórico, mas os protestos carnavalescos significativamente se alastraram como fogo Brasil afora - e o fizemos juntas.

“Vestir a fantasia”, em seu potencial simbólico de realização de desejos não é meramente usar uma fantasia. Foi assim que fomos tamoios, logo atrás do abre-alas, juntinho à ala dos compositores, em nossas fartas penugens nos tons das araras em referência a Confederação dos Tamoios, na frente dos amarelos Cariris do nordeste. E viemos rigorosamente comandadas pelos chefes de ala, que na concentração nos arrumaram em fileiras de 10 (mil vezes recontadas) e ajeitaram os enormes cocares que ameaçavam cair de nossas cabeças e durante todo o desfile cuidaram de que nos mantivéssemos na distância correta entre a fileira de trás e a da frente. Entendemos melhor o que é um desfile de escola de samba que, para além de sua dimensão de festa popular, é também ópera, arte complexa que demanda talentos e esforços múltiplos, diversos. Não se trata de um grande bloco de carnaval onde prevalece a espontaneidade e a criatividade individual, mas de um imenso trabalho coletivo do qual os 3.500 integrantes e os carros alegóricos na avenida são apenas a parte mais visível.

Só teríamos a noção da beleza do conjunto, do significado da sequência das alas, da ousadia dos carros alegóricos e a visão da incrível bandeira brasileira nos tons da escola, com os dizeres “Índios, negros e pobres” (no lugar do “Ordem e progresso”) ladeada por flâmulas tremulantes com as figuras de Marielle e outros, nos dias subsequentes, através das mesmas imagens de TV que chegaram a qualquer espectador. Durante o desfile, só ouvimos a famosa bateria da Mangueira pelos alto falantes, pois viemos na frente. E apenas no dia seguinte teríamos as primeiras notícias de quanto o desfile da Mangueira foi apreciado, do tamanho da vibração da plateia, e que entrava na disputa como favorita.

No caminho de volta, exauridas, numa dessas loucas corridas de táxi do Rio de Janeiro em meio à noite, de repente vislumbramos umas cores luzindo sobre a água...era o sol, que já nascia sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas! Um lindo dia ensolarado se anunciava depois das chuvas que persistiram e chegaram a alagar a Marquês de Sapucaí na 6ª feira à noite, ameaçando o carnaval.

“Amanhã vai ser outro dia”.

E no ano que vem tem mais.

Leia também:
Campeã absoluta, Mangueira exalta Brasil que não te ensinaram na escola:
https://www.geledes.org.br/campea-absoluta-mangueira-exalta-brasil-que-nao-te-ensinaram-na-escola/?fbclid=IwAR1iIwH-nsnQjjkTmETnt--sc-sWgKHVlbtqc7LgTYXdOB3n9trdfoWvUvQ

Quem são os heróis invisíveis homenageados pela Mangueira:
http://viajarverde.com.br/herois-invisiveis-homenageados-pela-mangueira/



[i] Psiquiatra e psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante da equipe editorial deste Boletim.

[ii] História para ninar gente grande , de Manu da Cuica, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira, Danilo Firmino e Deivid Domênico.

[v] Escrevi sobre esta dimensão disruptiva, sublimatória e “revolucionária” do samba em “O dia em que o morro descer e não for carnaval”, Boletim Online 42, Junho de 2017.




 
 
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