A VIDA DESDE A SACADA [1]
ALESSANDRA SAPOZNIK [2]
Madri, 14 de março de 2020
(Aos escutadores da cidade)
Faz-se dia na rua Salitre
Os vizinhos do edifício da frente com suas cadeiras estreitas colocadas em suas minúsculas sacadas, buscando um pouco de exterioridade
Uma exterioridade interior, um umbral suspenso no ar, de onde apenas se pode olhar a rua
Desde suas casas ecoam diferentes tipos de música, algumas delas não nos apeteceria escutar normalmente
Porém dadas as circunstâncias, se agradece a oferta
Há algo de vizinhança nessa atitude, e isso também se agradece
Um vizinho regando as plantas, um casal conversando
Ela veste a parte de cima do biquíni, ele de cueca
No andar de cima, duas jovens dançam em um tom estranhamente feliz
Pessoas passam com a sacola do supermercado, com seus cachorros, com a cara coberta por uma gola de inverno ou por um lenço
Traje anti-coronavírus improvisado, verdadeiro modelo antifascista utilizado nas manifestações
Vírus no lugar de bombas...quanta ironia!
O enclausuramento está nos tornando mais voyeurs, porém se trata de um voyeurismo imposto e restrito
Nosso olhar, normalmente acostumado a banhar-se nas infinitas cenas que acontecem na rua, agora se dirige aos balcões, ao interior das casas, aos pequenos movimentos os quais é possível apenas imaginar
Escutamos vozes que ressoam na praça
Tentamos adivinhar os ruídos, imaginamos quantas pessoas estarão na rua
Até agora olhamos a rua sem sentir sua verdadeira ausência
Ainda estamos na fase antropológica da quarentena, tratando de delimitar nosso objeto de estudo
Mas logo essa fase da investigação vai terminar
E o tempo vai passar mais lentamente, até estacionar no presente do indicativo
É quando começaremos a sentir muita saudade desse espaço que nos contém, desse manancial de experiências as mais diversas, muitas vezes hostis
Porém é lá onde se desdobra a vida, os encontros e os choques
E virá um tédio e um aborrecimento que não é o ennui do homem moderno que habita a cidade industrial
É algo que pende mais para a angústia e para o vazio
Muito pós moderno, como deve ser
Temo por nossos corpos e mentes, por como vão reagir a essa escassez de miradas, breves conversações, maus humores e fricções cotidianas
É por um tempo, temos que fazer esse esforço coletivo pelo bem comum
Isso já sabemos, vamos acatar
Mas o que realmente nos vai custar é mirar a rua e não poder vivê-la
Aqui vale mais dizer So close, faraway! do queFaraway, so close![3]
Será um pouco torturante ver o objeto de desejo tão de perto e não poder tocá-lo
“Dá vontade que esse maldito vírus chegue logo, nos tome de uma vez para que depois passemos a ser pós covides” [4]
Não se pode estar mais de acordo
Faz pouco tempo que a vida brotou das sacadas para apoiar aqueles que nos cuidam
Vizinhos que não se conheciam trocaram olhares e se cumprimentaram
E assim acontece todos os dias
O casal de vizinhos voltou a aparecer, desta vez devidamente vestidos com seus respectivos roupões
Foi uma pequena grande experiência
Agora mesmo está soando um acordeom muito melódico acompanhado de uma voz muito doce
Uma música generosa que desde a sua sacada vem para recordar-nos de nossa humanidade
Desde a minha sacada é possível avistar dois dos bêbados do bairro
Eles passam o dia sentados no banco da esquina, vivendo a cidade e tentando se relacionar com os vizinhos que passam
Não sei se é correto falar assim, mas a única coisa que me ocorre pensar é “que bom que eles ainda resistem”.
[1] Esse texto foi escrito no primeiro dia do confinamento. Desde então, a vida na sacada se tornou mais complexa, assim como a escritura. É difícil manter o tom de crônica do confinamento quando as pessoas estão morrendo.
[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do coletivo Escutando a Cidade. Mestrado na Universidad Complutense de Madrid, doutorado em andamento na mesma universidade e fundadora do projeto La Azotea: psicoanálisis, clínica y comunidad.
[3] Filme de 1993, dirigido por Wim Wenders.