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JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS |
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54 |
Junho 2020 |
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PSICANÁLISE E POLÍTICA
PSICOPATOLOGIA PSICANALÍTICA E CLÍNICA CONTEMPORÂNEA AULA INAUGURAL 2020 [1] Mario Pablo Fuks [2] O nascimento deste curso teve a ver, antes que nada, com as demandas formativas que surgiram na clínica. Nas últimas décadas, a clínica psicanalítica estendeu-se a tipos de sofrimento diferentes dos que haviam constituído sua clientela clássica. Isto significou estímulos e desafios para o trabalho terapêutico e um esforço para a conceitualização psicopatológica. Houve invenção de conceitos novos e reformulações metapsicológicas globais.
Isto já aconteceu outras vezes no longo caminho da psicanálise. A teoria psicanalítica, denominada inicialmente teoria geral das neuroses, surge e se desenvolve a partir da presença marcante nos consultórios dos médicos, principalmente dos neurologistas, de uma demanda clínica constituída pelas histéricas. Esta demanda produz um grande impacto por seu caráter massivo. Mas impacta também, desde o ponto de vista psicopatológico, pelos efeitos diferenciados que produz nelas o fato de estarem inseridas num campo do olhar (que instaurava Charcot) ou num campo de escuta (que foi instaurado por Freud).
A compreensão da histeria se obteve através de um modelo explicativo do sintoma em termos de experiências não elaboradas (traumáticas), de conflitos e defesas psíquicas, constituído a partir de um método que permitia o deciframento do sentido e a reconstrução de uma história que explicava sua emergência e sua significação para o devir existencial da pessoa em análise. Difere radicalmente de como é concebido na medicina, para a qual o sintoma é signo de uma doença ou disfunção presente no organismo. Para Charcot, os sintomas histéricos estavam determinados por lesões funcionais do sistema nervoso central não comprováveis anatomopatologicamente.
A extensão do método de pesquisa e a compreensão resultante para fenômenos não patológicos da vida cotidiana, como os sonhos, os lapsos, os chistes, os devaneios, as crenças supersticiosas, permitiu a construção de uma teoria geral do funcionamento psíquico.
A reunião de todos esses fenômenos, patológicos ou não, permitiu postular a existência de uma ampla vida psíquica inconsciente sobre a qual é possível incidir através da interpretação de suas produções, levando à dissolução de sintomas quando é usada para uma finalidade terapêutica, ou seja, em um contexto que envolve uma relação transferencial.
O saber psicanalítico se constituiu, assim, como crítica e ruptura com o saber médico a partir de uma demanda clínica específica constituída pelas neuroses.
A clínica das neuroses, portanto, está no ponto de partida, na emergência deste projeto histórico que se chama psicanálise. Mas isto vai continuar, e a expansão da clínica irá desempenhar um papel central no desenvolvimento da psicanálise. O nome do curso já fala sobre isso.
A primeira e a segunda décadas do século XX marcam a entrada das psicoses dissociativas (esquizofrenia) e delirantes (paranoia) e dos quadros melancólicos, levando a novos enfoques sobre a estrutura do psiquismo centrados no conceito de narcisismo. Este trouxe uma compreensão mais profunda do Eu, incluindo as instâncias ideais (Eu ideal - Ideal do Eu) que conduziram, em 1920, à criação do conceito de Supereu.
A extensão a fenômenos não patológicos, como o dormir e o sonhar, o luto, os enamoramentos e apaixonamentos, os fenômenos coletivos, levam a uma complexificação do aparelho psíquico, com novas explicações para o já conhecido, como o papel dos valores e ideais na metapsicologia do recalque nas neuroses.
A metapsicologia se constrói em psicanálise a partir da elaboração psicopatológica, que é essencialmente teórica, dos sintomas reconhecidos como anormais pela instância médica, como também daqueles que não são considerados anormais, como os que Freud estuda na psicopatologia da vida cotidiana. A delimitação entre normal e anormal na psicopatologia psicanalítica será relativa, porosa, e a questão dos limites, ao invés de encaminhar-se no sentido de uma normatização, se transformará em um elemento incitador da investigação.
Este ponto de partida fundamental se mantém como referência e como herança simbólica para as sucessivas gerações de psicanalistas, e a psicanálise experimenta processos de mudança e renovação, resultantes das demandas externas e de sua evolução interna.
A partir de 1920, a investigação das neuroses traumáticas, em particular as neuroses de guerra, conduz a uma reformulação do funcionamento psíquico geral, uma mudança no modelo tópico ou estrutural e da teoria das pulsões, as quais constituem para a psicanálise o motor da vida psíquica.
Em 1924 Freud já fala de neuroses e de psicose desde novos pontos de vista, e diferencia duas outras linhagens psicopatológicas: asneuroses narcísicas – cujo paradigma é a melancolia - e as alterações do eu, nas quais o eu, para não se romper diante das tensões e conflitos que deve enfrentar, se deforma. São quadros nos quais se põe em jogo o mecanismo de recusa. Esse texto se denomina, injustamente, “Neurose e psicose”. Deveria chamar-se “Neuroses, psicoses, neuroses narcísicas e alterações do eu.”
Elas funcionarão para nós como referência teórica freudiana da maior importância para a compreensão dos diversos quadros clínicos, que nos anos finais dos 90, uns 20 anos atrás, começamos a identificar como patologias contemporâneas: as personalidades narcísicas, as depressões, as renomadas síndromes de pânico, os transtornos do sono, as anorexias e bulimias, as patologias do ato, entre as quais e com grande destaque, por seu crescimento massivo e invasivo, as toxicomanias.
Todos esses quadros correspondiam às definições classificatórias que começavam a ser vigentes na época, fortemente marcadas por uma corrente que ganhava hegemonia no mundo médico e na psiquiatria, cuja referência consagrada era o DSM em suas sucessivas versões e que se esforçou em induzir uma mudança no modo de pensar a psicopatologia, apoiada nos importantes avanços em neurociência, mas também no poder extenso e agressivo da indústria farmacêutica e dos convênios de saúde. Tal acontecimento, com forte impacto político no campo da saúde mental e além dele, favoreceu a volta da psiquiatria biológica ao centro da cena clínica de diagnóstico e tratamento de transtornos mentais.
Esta corrente hegemônica[3] concebe o homem como um ser “natural”, a-social e a–histórico. A concepção subjacente dos fenômenos objeto da psiquiatria é fundamentalmente biológica, assentada no sintoma nervoso central. O que se reconhece como psíquico, ou seja, a psicologia com que conta essa tendência, é uma psicologia dos processos conscientes, e as determinações que regulam este funcionamento psíquico são neurológicas.
Em suas descrições, os autores estavam à procura de uma linguagem comum e pouco sofisticada. Isto prometia possibilidades de interlocução entre os psiquiatras e psicólogos de diferentes tendências preocupados com a clínica, mas acabou operando um efeito de censura sobre as diversas formulações psicopatológicas. Tinham como referência normativa o que podemos designar como protótipo sadio da época.
O protótipo sadio corresponde ao ideal do homem contemporâneo, chamado também de pós-moderno, caracterizado pelo extremo individualismo, por demandar paliativos imediatos em vez de mergulhar em profundidades subjetivas ou intersubjetivas, acreditar somente no tangível, e não valorizar a ideia de processo. Valores coletivos como a igualdade, a justiça, a solidariedade eram vistos como armadilhas do discurso, construídas para os incautos e ingênuos.
Do ponto de vista epistemológico, no que se refere a critérios de cientificidade, os líderes dessa linha se regem por um positivismo e um pragmatismo lógico, questionador de qualquer desenvolvimento especulativo, que conduz à quase desaparição do conceito de patologia e da psicopatologia como disciplina teórica, que supõe a ideia de causalidades complexas, etiologia, processo, e que vem a ser substituída pela descrição de sintomas ou síndromes, inscritos em sistemas de escalas.
Para essa tendência só é válido o que é “objetivo”, ou seja o que pode ser descrito e avaliado da mesma maneira por qualquer observador, e o que é mensurável, ou seja, o que se pode inserir em uma escala, na medida do possível utilizando um aparelho, um questionário, um teste padronizado.
Mensurar e quantificar deixam fora algumas coisinhas: amor, desejo, ódio, aspirações, projetos existenciais. Sabemos que elas têm sua força, suas intensidades, mas não podemos medi-las. Um conceito fundamental na psicanálise, o conceito de libido, se constrói sobre a ideia demagnitudes, pensáveis como energia, como cargas passíveis de aumentar, diminuir, serem investidas, deslocadas, condensadas, distribuídas em redes associativas, direcionadas para o exterior ou o interior. Mas se trata de magnitudes não mensuráveis. Não se pode dizer nada delas com números. Mas sim com palavras.[4]
Como recurso terapêutico central, o psicofármaco. Como recurso auxiliar, a psicologia das funções conscientes. Como conceito de cura, a desaparição do sintoma. Está ausente o conceito de processo no campo da intervenção terapêutica. Como reabilitação, a reinserção social adaptada e a-conflitiva, mesmo que se continue afirmando, no discurso, o objetivo de conseguir o pleno bem-estar biopsicossocial do paciente.
Nesta corrente, as questões do sujeito ficam eclipsadas e o sofrimento psíquico é de certa forma naturalizado ao ser considerado como de origem orgânica.
Nós, que fundamos o curso, não podíamos deixar de prestar atenção, de escutar o que acontecia neste modo de pensar as psicopatologias e de relacioná-las com o funcionamento das pessoas na vida cotidiana, que apontava para mudanças no laço social com efeitos fortemente dessubjetivantes. Esses interrogantes eram fundamentais para nos posicionarmos na contramão do objetivismo pragmaticista, que esvaziava e ainda esvazia, de forma crescente, o pensamento psicopatológico tão caro à psicanálise.
Buscávamos formas de articular os modos como se apresentava o sofrimento psíquico e as rápidas transformações que então atravessava a vida social, o que significava incluir em nossa reflexão o impacto do desenvolvimento tecnológico, do capitalismo avançado e os novos laços sociais presentes na sociedade de consumo e do espetáculo.
Trabalhando de forma complexa as problemáticas humanas e inter-humanas a que se referem essas patologias, concebemos um curso que implicasse na formulação de hipóteses a respeito do funcionamento psíquico subjacente às manifestações estudadas, recolocando a importância do pensamento psicopatológico psicanalítico e sua metapsicologia. Isto requer um trabalho de releitura dos conceitos já existentes e a criação de novas articulações teóricas a que estes novos tempos nos remetem. A leitura atenta de psicanalistas contemporâneos [5] está por isso no dia a dia de nossas ocupações.
O começo do curso coincidiu com a conquista do Oscar, para filme estrangeiro, de Central do Brasil, de Walter Salles. Fizemos um evento aberto de lançamento do mesmo, convidando Miriam Chnaiderman e Olgária Mattos para um debate muito interessante. O título era Central do Brasil, vicissitudes da subjetivação e coloquei, na abertura, a seguinte pergunta:
“Que tipo de subjetividade é possível conceber quando se parte de cenários como a estação de trem que dá nome ao filme, mas que poderiam ser aeroportos, centros comercias, praças públicas ou até uma rua qualquer, lugares que já foram espaços de sociabilidade, e onde as pessoas ficam reduzidas à condição de transeuntes que mal se olham, se falam ou se escutam e onde ‘se começa com uma diluição dos sistemas de reconhecimento do outro e se acaba com uma perda de reconhecimento de nosso próprio eu’[6]?” [7]
Kristeva dizia, como vimos no ano passado, no seu livro sobre as Novas doenças da alma que a experiência cotidiana demonstra uma redução impressionante da vida interior, perguntando-se se temos hoje o tempo e o espaço necessários para arrumar-nos uma alma, ou se pressionados pelo stress, impacientes por ganhar e gastar, por gozar e morrer, os homens e mulheres de hoje prescindem dessa representação de sua experiência que chamamos de vida psíquica.
Proponho-me a trabalhar alguns conceitos que permitem desenvolvem uma reflexão no sentido apontado, seguindo um psicanalista brasileiro muito importante que é Jurandir Freire Costa.
Existem dois pressupostos, duas invariantes - para pensar o psiquismo do ser humano - que podem ter uma validade universal. O conceito de Eu, tendo o narcisismo um papel fundamental em sua construção, e o conceito de desamparo que é considerado essencial para a caracterização do humano.
O narcisismo funda a possibilidade de representar-se como uma unidade, constituída como um eu. Mesmo que um indivíduo possa vir a reconhecer que não conhece nem domina tudo sobre si mesmo, que está longe de ter essa unidade com a qual se ilude, essa ficção de si mesmo que é seu eu lhe é necessária para a ação e a adaptação ao mundo. Para ocupar um lugar no mundo e poder agir nele.
Para ter e sustentar essa representação de si que a psicanálise definiu como eu, o ser humano depende dos outros. Tanto para sua constituição é necessária a narcisização da criança por parte dos pais, quanto para a sua sustentação, seu respaldo, precisa-se do reconhecimento dos outros com os quais o indivíduo interatua. Os outros fazem parte dos sistemas de reconhecimento.
Giorgio Agamben, em seu trabalho “Identidade sem Persona” (2011) [8], diz que o desejo de ser reconhecido pelos outros é inseparável do ser humano. Não se trata de satisfação ou de amor próprio; se trata do fato de que somente através do reconhecimento dos outros é possível constituir-se como persona. Persona, no uso coloquial, é um papel social ou personagem vivido por um ator. É uma palavra italiana derivada do latim para denominar um tipo de máscara feita para ressoar com a voz do ator (per sonare significa "soar através de"), permitindo que fosse bem ouvida pelos espectadores, bem como dar ao ator a aparência que o papel exigia.
O significado original é de máscara. E é através da “máscara” do teatro greco-latino, da persona, que o indivíduo adquire um papel e uma identidade social.
Um aparte: Persona e personare são instrumentos possíveis para pensar algumas situações que aparecem na clínica. Eu os associo com a chamada fala desafetada, em boa medida monocórdica, automática, que caracteriza certos pacientes com problemas alimentares nas sessões. Falta ressonância, falta persona. A angústia se expressa nelas, como todos sabemos, no campo do olhar, da imagem, na frente do espelho.
Em Roma cada indivíduo era representado por um nome que expressava sua pertença a uma gens, uma estirpe. Mas esta estirpe estava definida pela máscara de cera mortuária do antepassado que a família patrícia custodiava no átrio da casa familiar. O significado passou rapidamente para a palavra “personalidade” que define o lugar do indivíduo nos dramas e nos ritos da vida social. Um pouco mais adiante persona acabou significando a capacidade jurídica e a dignidade política do homem livre.
Do homem livre, sim, porque o escravo não tem antepassados, nem máscara, nem nome que expresse uma pertinência, portanto não pode ter capacidade jurídica, não pode ter persona. A luta pelo reconhecimento é, assim, a luta pela máscara, mas essa máscara coincide com a “personalidade” que a sociedade reconhece a todo indivíduo - ou com a “personagem” que faz dele -, “com sua cumplicidade mais ou menos reticente”, diz Agamben. Este reconhecimento se dá em espaços de sociabilidade, que podem ser a praça pública ou a rua, conforme a códigos, a sistemas de reconhecimento. Na cultura ocidental a máscara, a persona, não tem só um significado jurídico. Ela tem contribuído para a formação da persona moral. [9]
É importante ver o que é a identidade para as sociedades atuais, para os estados nacionais e seus sistemas de controle. A palavra identidade, tão usada nos discursos psi, aparece na cultura ocidental ligada à preocupação em identificar os indivíduos, necessária para a identificação dos criminosos. São dispositivos policiais que contribuem para desenvolver o que se conhece como sociedade de controle. Usam recursos denominados bioantropométricos. Isso conduz à criação das “cédulas de identidade”. Vão desde a forma da cabeça e das mãos até as impressões digitais.
Mas ter uma cédula de identidade é ter uma persona? Nada disso. Poderíamos dizer que ter um crachá pendurado no peito, sim. Mas ninguém usa a cédula de identidade como um crachá. No entanto, com base nelas se pode fazer todo tipo de controle e manipulação de populações. Os indivíduos somados constituem populações, não constituem comunidades de reconhecimento recíproco. Difundem-se por todos os países do mundo lá pela década de 1920.
Agamben conclui: “Por primeira vez na história, a identidade já não estava em função da ‘persona’ social e de seu reconhecimento, mas de dados biológicos que não podiam ter com ela relação nenhuma. O homem substituiu a máscara, que lhe possibilitava o reconhecimento pelos outros homens, por dados biológicos que lhe pertencem como algo íntimo e exclusivo mas com os quais não pode identificar-se de maneira alguma”, e a respeito dos quais não consegue produzir uma distância que possibilite alguma experiência ética com seu ter e com seu ser. Os que reconhecem e identificam esses dados são aparelhos, máquinas. Há previstos, para o futuro, arquivos com o DNA de todos os cidadãos para fins de segurança, repressão do crime e gestão da saúde pública. O homem fica assim reduzido a sua vida nua, conceito que Agamben construiu para falar dos habitantes dos campos de concentração, que também, todo mundo o sabe, eram identificados por um número tatuado no braço.
Byung-Chul Han, autor de Sociedade do cansaço eSociedade da transparência, em um novo livro Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder fala do quantified self, do self quantificado. E diz o seguinte:
“A crença na mensurabilidade e na quantificabilidade da vida domina a era digital. O quantified self (o self quantificado) também reverencia esta crença.” (p. 83). O corpo é equipado com sensores que registram dados fisiológicos automaticamente até durante a meditação e o repouso. Até mesmo nesses momentos o desempenho e a eficiência têm importância. “Estados de ânimo, sensações e atividades cotidianas são registrados. O desempenho corporal e mental deve ser melhorado através da autoaferição e o autocontrole.” (p 83-84) [10]
No entanto, o puro acúmulo de dados não responde à pergunta quem sou eu? - afirma, a seu turno, Byung-Chul Han. “O self quantificado é uma técnica dataísta de si que o esvazia completamente de sentido. O si mesmo é desmanchado em dados até que se torna insignificante. Por mais abrangentes que sejam, dados e números não produzem autoconhecimento. Os números não nos contam nada sobre o eu. Não há narrativa. Mas o eu se deve a uma narrativa. Não a contagem mas a narrativa é o que conduz ao encontro de si e ao autoconhecimento.” (p. 84)
O valor da narrativa, e do que aporta a psicanálise nesse sentido, nós o descobrimos trabalhando ou dando supervisão nos Hospitais-Dia. Comprovamos que as histórias dos pacientes estavam eclipsadas, como parte dos processos institucionais dessubjetivantes. A abordagem psicanalítica permitia recuperá-las. Anos depois, trabalhando na clínica dos transtornos alimentares, descobrimos também que os diários que as nutricionistas aconselhavam aos pacientes elaborar podiam constituir-se em instrumento muito importante para introduzir o narrativo no diálogo com eles. Interessava não tanto quantas vezes vomitou, mas o que estava acontecendo consigo no momento em que foi vomitar.
O escrever, diz Byung, era importante na cultura do cuidado de si analisada por Foucault; escrever notas sobre si mesmo que precisavam ser relidas. Serviam a uma ética do eu.
O dataísmo (o fetichismo dos dados) esvazia o auto monitoramento de qualquer ética e verdade e o tornam autocontrole.
O sujeito contemporâneo, o sujeito neoliberal, é um empreendedor de si mesmo que se autoexplora e se auto fiscaliza. Carrega consigo um campo de trabalhos forçados e um panóptico (Bentham), com o qual se automonitora individualmente. (p. 86)
Existe na teoria psicanalítica outro pressuposto, outra invariante do psiquismo que pode ter uma validade universal, que decorre do estado inicial da experiência humana que Freud chamou de impotência/desamparo. Essa impotência jaz no coração da angústia, da experiência religiosa e de outros processos culturais. E volta a aparecer em diversos momentos, no seio da vida social e civilizada, imposta pela ananké ou destino ligado ao inevitável, e que em Roma era chamado de “necessitas”. É quando o indivíduo, desvalido e impotente, se defronta, como diz Freud em O mal-estar na cultura (1930), com três coisas, que ferem seu narcisismo:
A fragilidade e caducidade do corpo; a potência esmagadora da natureza; as ameaças provenientes das relações entre os seres humanos”.
Eu diria que, nestes dias que estamos passando, temos todos os quadradinhos deste esquema ticados: o corona vírus, de evolução incerta, pelo lado do corpo; as chuvas, enchentes e desabamentos que produzem cada ano mais vítimas, pelo da natureza; e o terceiro quadradinho, pelo lado das relações com os outros: as ameaças provenientes da gestão desse governo, principalmente de seu chefe, que ataca a educação, a ciência e a cultura através de reminiscências hitleristas, que atenta contra o funcionamento democrático convocando a atos como o do próximo domingo, e que promove e autoriza a multiplicação de expressões de ódio e agressividade, utilizando a grosseria e as piadas obscenas contra toda jornalista mulher que o questione.
Jurandir Freire Costa dizia que, na cultura narcisista [11], o recrudescimento da angústia de impotência produz uma reativação dos mecanismos narcisistas de preservação: o isolamento, a retração e afastamento dos outros, a agressividade, as compensações fetichísticas de diversos tipos, a ativação de ideais arcaicos, os fanatismos fundamentalistas.
Em dita cultura, a vivência de desamparo é levada a um ponto tal que torna conflitante e extremamente difícil a prática da solidariedade social. Nós já dissemos, e escrevemos sobre este tema, que os traumas coletivos naturais aumentam a solidariedade social e coesionam a comunidade. Em contraposição, os traumas coletivos chamados históricos, como as ditaduras e as guerras, desorganizam e fragmentam a comunidade pela falência institucional das instâncias de mediação e das responsabilidades individuais e coletivas. Hoje, penso eu, estamos diante da coexistência e combinação desses dois efeitos.
Para concluir, não se trata neste curso de sustentar uma aspiração messiânica de resolver todos os problemas com que a realidade nos confronta, mas sim de poder expandir o conhecimento das angústias que nos atravessam e que atravessam nossos pacientes, de não deixar que elas nos dominem e, fundamentalmente, de poder manter o pensamento aceso.
Quando, em 1998, perguntaram a Emilio Rodrigué, um analista argentino muito prestigiado, como ele enxergava, após sessenta anos exercendo o ofício de psicanalista, o alcance e os limites da psicanálise diante dos diferentes tipos de demanda clínica atual, ele respondeu o seguinte: “A psicanálise não envelheceu tanto assim. Ela ainda é bonita e graciosa. Ela não precisou de plástica alguma e ainda fizemos alguns avanços. O importante é que a leva atual de analistas é menos prepotente e mais sensível ao sofrimento humano.” [12]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, G. “Identidade sem Persona” em Desnudez Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte, Âyiné, 2018.
COSTA, J. F. “Narcisismo em tempos sombrios” in: Birman, Joel (org.). Percursos na história da psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Taurus Editora. 1988. pp. 151-174.
FREUD, S. (1930) “El malestar en la cultura”, Obras Completas, Vol. XXI. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FUKS, M.P. “Trauma e dessubjetivação” in Percurso (ano XXVI, n. 52, pp. 95-102, 2014).
KRISTEVA, J. Las nuevas enfermedades del alma. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.
MATRAJT, M. “La corriente hegemónica en salud mental”, Subjetividad y Cultura No. 4, México, abril 1995.
RODRIGUÉ, E. “Furacão Freudiano”, entrevista, Percurso 34. [1] Ministrada em 10 de março de 2020. [2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professor do Curso de Psicanálise, coordenador do curso Psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea e membro da equipe editorial deste Boletim. [3] Ver Matrajt, M. “La corriente hegemónica en salud mental” em Subjetividad y Cultura, México, 1995. [4] Os pediatras reclamam quando que não ficam sabendo sobre os trabalhos psicanalíticos sobre autismo porque os psicanalistas não publicam em revistas científicas. Os trabalhos científicos que não contenham número de pacientes, tabelas, estatísticas, não são publicados nas revistas médicas indexadas que respondem obedientemente aos critérios desta tendência hegemônica. [5] Eles produzem teorizações e criam conceitos psicopatológicos:personalidades como si (Helen Deutch), falso-self (Winnicott), personalidades narcísicas (Kohut), borderline (Kernberg), loucuras privadas (Green), personalidades fácticas (Blejer), ato-sintoma (Joyce Mac Dougall). [6] Galende, E. De um horizonte incierto, Paidós, Buenos Aires, 1997 [7] Central do Brasil: as vicissitudes da subjetivação Percurso (ano XI, no 21, 1998; pp. 67-69, 1998). [8] Agamben, G. Desnudez. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2011. [9] Agamben analisa como o teatro foi um espaço privilegiado para a elaboração de princípios que regem a relação dos indivíduos, ou seja, de cada ator, com sua máscara. Nas representações pictóricas se destaca a distância que separa cada ator da máscara que representa e que dá sonoridade a sua personagem. Os filósofos da época enunciaram um princípio, tomando como referência o teatro, pelo qual todo indivíduo, todo ator, tem a obrigação de assumir sua máscara, seu papel, mas com limites, com distância, sem se confundir, sem identificar-se totalmente com ele, sem se confundir com ele. Eis aqui, de meu ponto de vista, uma distinção entre eu ideal e ideal de eu - como instâncias ou como instituições do eu, assim as chama Freud - diferenciáveis como instâncias ideais. E, associadas aos ideais, a princípios morais internos. Isto supõe a possibilidade de um espaço interior que poderia ser chamado de transicional (Winnicott), de uma experiência em que se elabora um si mesmo, fruto da experiência. [10] Valem como exemplo interessante as frequentes operações de autoaferição do astronauta que protagoniza o filme Ad Astra – Rumo às estrelas com direção de James Gray (2019). [11] Em “Narcisismo em tempos sombrios” (1988) [12] RODRIGUÉ, E. “Furacão Freudiano”, entrevista, Percurso 34.
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