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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    55 Setembro 2020  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

OS QUE NÃO FORAM HERÓIS:
SOBRE A SUBMISSÃO DOS JUDEUS AO TERROR NAZISTA [1]



RENATO MEZAN [2]



À memória de David Sztulman, morí umadrichí [3]

“As ideias precedem os atos, assim
como antes do trovão vem o relâmpago.”

Heine, De l’Allemagne



Na parede lateral da sinagoga que, na Congregação Israelita Paulista, é usada para os ofícios diários, estão gravadas centenas de nomes: homenagem aos parentes dos membros da comunidade que pereceram durante a “Solução Final da Questão Judaica”, como os nazistas denominaram a mais fantástica realização dos seus doze anos de poder, nos quais não escasseiam horrores e crueldades.

Lembro-me da primeira vez em que entrei nesta sinagoga, durante os preparativos para meu bar-mitzvá. O mármore coberto de nomes me chamou imediatamente a atenção, e me recordo de ter pensado que o de minha avó Renata Mezan poderia estar entre eles; mas não foi da Alemanha, e sim de Milão, que ela partiu para uma morte horrenda em algum campo da Polônia. Os nomes me fizeram pensar também na visita que Tzivia Lubetkin, uma sobrevivente do Gueto de Varsóvia, fizera à CIP poucos meses antes, e no encontro que David Sztulman, então diretor do Departamento Juvenil, organizara com ela. Tzivia Lubetkin havia sido uma importante testemunha no processo Eichmann, dois anos antes, e a este título é mencionada no livro de Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal, do qual voltaremos a falar. Ela nos contou sobre o Levante, sobre o heroísmo dos jovens comandados por Mordechai Anilewicz, sobre o prodígio que foram aquelas três semanas da primavera de 1943, quando algumas centenas de judeus enfim despertados da sua apatia resistiram às brigadas alemãs, até que somente uns poucos permanecessem vivos e pudessem escapar pelos esgotos.

Foi por esta época que li Mila 18, o romance de Leon Uris ambientado no Gueto. Anos depois, ao visitar Varsóvia, emocionei-me diante do monumento aos combatentes do gueto, que fica no local onde se erguia o número 18 da rua Mila, hoje uma praça. [4] E sempre a mesma pergunta se apresentava diante dos meus olhos, na pequena sinagoga, ouvindo a voz pausada daquela senhora que nos falava em hebraico, em pé recitando um Kadish em memória daqueles milhões de mortos, ou ainda ao percorrer as alamedas silenciosas do que foi o campo de Auschwitz [5], naquela mesma visita à Polônia: por que não resistiram? Por que marcharam tão passivamente para a morte? Por que somente anos depois de se iniciarem as atrocidades contra os judeus é que ocorreram episódios de resistência, entre os quais o levante? É a responder estas perguntas, ou ao menos encaminhar um esboço de resposta, que visa o presente artigo.

1. Submissão

E antes de mais nada, uma observação. A maneira como costumamos formular a pergunta inclui implicitamente uma nota de desdém, pois o “tão passivamente” nada mais é do que um eufemismo para “marcharam para a morte como carneiros para o matadouro”. Esta conotação é um insulto aos que morreram, acrescentando à sua tragédia um matiz vergonhoso que em nada nos honra, a nós, nascidos depois que tudo terminou, e que teríamos preferido que nossa história contivesse mais episódios como Metzadá (o suicídio coletivo dos combatentes contra Roma em 70 d. C.) ou como o levante do Gueto, e menos cenas como as que nos mostram os filmes sobre o Holocausto, longas filas de pessoas caminhando ordenadamente para as câmaras de gás.

Para compreender como tal coisa pôde acontecer, é preciso entrar no âmago da história, compreender o que era o regime nazista e o que fez com todos os que com ele tiveram contato, alemães e não-alemães, soldados e civis, carrascos e vítimas. Somente assim se pode vislumbrar também o significado da revolta do Gueto, e porque só após três longos anos de sofrimento é que ela pôde eclodir. Dados históricos são assim indispensáveis, mas igualmente a análise destes dados do ponto de vista psicológico, pois estamos lidando com um fenômeno de obediência coletiva a diretrizes tão absurdas, tão bárbaras e desumanas, que desafia a imaginação o simples fato de terem sido formuladas. Acusar de covardia as vítimas – pois é disso que se trata, quando vem à tona a metáfora dos carneiros – é, além de uma ofensa à sua memória, um erro grave, que provém da desinformação tanto quanto do nosso desejo de não nos identificar com elas.

É no livro de Hannah Arendt que encontro as informações necessárias para o que se segue. Enviada em 1961 a Jerusalém pelo New Yorker, com a missão de cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, ela escreveu um texto sóbrio, porém que ainda hoje se lê com emoção. O que comove o leitor é a lucidez da pensadora, as questões que ela levanta - e como as levanta – à medida que as páginas vão se cobrindo de dados precisos, cortantes, aterradores. Hannah Arendt não se furta a examinar o papel dos próprios judeus na implementação da Solução Final, sem o qual ela não teria atingido aquele grau macabro de sucesso. E do que nos conta emerge a possibilidade de compreender, como disse, o que se passava nas mentes dos que não resistiram, assim como, talvez, nas daqueles que finalmente pegaram em armas e resgataram a honra do povo condenado.

A Solução Final, ou Endlösung, não foi a primeira política dos nazistas em relação aos judeus. Desde a eleição de Hitler para o posto de chanceler, as medidas antijudaicas foram postas em prática com uma determinação fanática e com uma meticulosidade toda germânica. Elas atingiram primeiro os judeus da própria Alemanha, excluídos do serviço público logo nos primeiros meses do regime – o que significava abandonar cargos nas escolas e Universidades, no rádio, em entidades culturais como museus e orquestras, nos serviços médicos, etc. As Leis de Nuremberg de 1935 codificaram a exclusão da “raça inferior” e criaram a figura jurídica da Rassenschande, o crime de contato sexual entre arianos e judeus. Estas medidas não encontraram oposição dos alemães, antes pelo contrário: obtiveram um apoio mais do que formal, a ponto de Arendt poder falar em “cumplicidade ubíqua” da população e do Estado.

Duas observações cabem aqui. A primeira é que, no contexto dos anos 30, as medidas discriminatórias eram ainda um assunto interno da Alemanha, e, por mais que chocassem o mundo civilizado, foram ativamente elogiados pelos antissemitas de outros países, especialmente na Europa do Leste, que sempre viu na cultura alemã um modelo prestigioso. Em segundo lugar, os próprios judeus alemães as aceitaram, pois reconheciam no regime nazista a legalidade e a legitimidade do Estado constituído. Aceitar, é óbvio, não significa aprovar: é claro que esperavam que um dia os nazistas fossem alijados do poder e que fossem abolidas as leis vergonhosas. Alguns perceberam as proporções do horror e emigraram, mas a maioria se adaptou ao que parecia um mal menor e, em todo caso, passageiro.

“As Leis de Nuremberg privavam os judeus dos seus direitos políticos”, frisa Hannah Arendt, “mas não de seus direitos civis; eles não eram mais cidadãos (Reichsbürger), mas continuavam membros do Estado alemão (Staatsangehörige). Os judeus sentiam que agora haviam recebido leis próprias e que não seriam mais postos fora da lei (...). Eles acreditaram que haveria um modus vivendi possível, e chegaram a se oferecer para cooperar com a “solução da questão judaica”. [6]

Este engano nos parece hoje incompreensível, mas na época não o era. A imensa maioria dos judeus alemães, apesar do antissemitismo difuso do último século, havia se integrado à sociedade e à cultura do país em que haviam nascido, e no qual também haviam nascido muitas gerações de seus antepassados. Orgulhavam-se das contribuições dos seus às artes, às ciências e ao progresso da Alemanha; haviam lutado lealmente por seu país na Grande Guerra, e muitos haviam sido condecorados por bravura. Consideravam-se superiores aos Ostjuden, ou judeus do Leste europeu, que falavam ídiche, usavam longas barbas, cachos laterais no cabelo (peies) e casacos de cor negra, e viviam num universo religioso que lhes parecia antiquado e cheio de superstições. Seu próprio ambiente religioso era na maior parte dos casos o da Reforma judaica do século XIX, isso quando não eram completamente seculares: a religião era um assunto privado ou comunitário, mas de forma alguma os impedia de levar uma vida civil em nada diferente da dos outros oitenta milhões de alemães. Até os sionistas se acomodaram com as Leis de Nuremberg, embora por outra razão: viam na segregação imposta aos judeus um elemento a favor de suas ideias, um primeiro passo para a recusa da assimilação e no sentido de um despertar da consciência nacional entre os refratários à sua mensagem política.

O primeiro grande abalo nesta visão otimista veio com a Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, quando todas as sinagogas do país foram incendiadas e se quebraram milhares de vitrinas de lojas judaicas, cujos cacos no chão “brilhavam como cristais” (daí a alcunha com que ficou conhecida esta barbaridade). [7] Ainda assim, a política oficial do Reich – que agora englobava a Áustria – era a de que os judeus deveriam sair do país, a fim de que este se tornasse judenrein (limpo de judeus). Sabemos que, apesar das extorsões financeiras e do labirinto burocrático, 150.000 judeus austríacos puderam emigrar relativamente em paz entre o Anschluss de março de 1938 e os primeiros meses de 1940 – Freud e sua família entres eles. Incidentalmente, era Eichmann o encarregado de negociar com os líderes da comunidade as questões de emigração; fez isso com notável eficácia, com o que veio a adquirir a fama de “perito em questões judaicas” que mais tarde o levaria a chefiar o departamento encarregado da enorme tarefa de deportar milhões de pessoas para a morte no Leste.

2. Terror

“Foi com o início da guerra que o regime nazista se tornou abertamente totalitário e abertamente criminoso”, escreve Hannah Arendt (p. 82). A invasão da Polônia colocou sob a bota alemã três milhões de judeus, cujo destino estava selado antes mesmo que as bombas acabassem de cair sobre Varsóvia. No filme O pianista, de Roman Polanski, vemos a reação de uma família judia de classe média aos primeiros decretos dos ocupantes: medo, estupefação, tentativas de esconder algum dinheiro, indignação – mas principalmente inércia. Quando é formado o gueto, em outubro de 1940, os judeus vão disciplinadamente para as novas casas; assistem paralisados ao levantamento dos muros, e continuam a viver como podem. Logo se instalam as doenças e a fome, mas cada um tenta prover a si e aos seus, buscando sobreviver, na esperança de que um dia aquele pesadelo chegaria ao fim.

Na Europa inteira, enquanto isso, a Wehrmacht conquistava um êxito atrás do outro. Com exceção da Inglaterra e da União Soviética, todos os países estavam sob o domínio alemão ou eram governados por regimes pró-Berlim, mesmo os neutros como Portugal, Espanha e Suíça. Nos países ocupados, colocou-se imediatamente em prática a segunda política nazista para os judeus, agora que a emigração em massa se tornara impossível: o que Arendt chama de concentração. Os judeus deviam se registrar e passavam a usar a estrela amarela; em seguida vinha a ordem para se mudarem para o gueto, que era murado e patrulhado pelas SS. Neste processo, as lideranças judaicas colaboravam através dos “Conselhos Judaicos”, encarregados de obter os dados cadastrais e de cuidar de detalhes práticos como confisco de bens, distribuição de cartões para racionamento, etc. A estes homens, sem dúvida atormentados pelas tarefas que deviam executar, parecia que estavam escolhendo o caminho da prudência, ao não confrontarem um invasor cuja crueldade e cujo total desprezo pela vida humana se manifestava diariamente, com uma ferocidade da qual ninguém julgaria capazes homens do século vinte. A doutrina da superioridade racial certamente oferecia aos alemães uma boa justificativa para seus atos, e o reino do terror era implantado com uma rapidez de tirar o fôlego. Qualquer tentativa de oposição era punida com massacres e com requintes de crueldade; informantes e colaboradores abasteciam a Gestapo com o que ela precisava saber, e os judeus aceitavam, como todos os outros, a realidade pavorosa que tinha se abatido sobre eles quase do dia para a noite.

Arendt narra um fato que deixa isto absolutamente claro: em Amsterdã, em 1941, alguns judeus ousaram atacar um destacamento da Gestapo. A represália foi fulminante: quatrocentos e trinta judeus foram presos e torturados, depois deportados para Buchenwald e Mauthausen. O mesmo aconteceu em outros lugares, com judeus e não-judeus que ousavam se rebelar ou sabotar instalações alemãs; a retaliação vinha logo, sobre centenas de inocentes, e com uma brutalidade aterradora. Não era viável resistir individualmente: esta é a verdade. A Resistência francesa e os guerrilheiros que na Iugoslávia infernizavam a vida dos ocupantes foram constituídos a partir de bases preexistentes, especificamente o Partido Comunista, organizado já para a vida clandestina segundo as diretrizes de Lênin no famoso opúsculo Que fazer?. Ora, os judeus como grupo eram bem organizados – as coletividades dispunham de escolas, orfanatos, órgãos assistenciais, e, obviamente, sinagogas – mas não se tratava de estruturas que pudessem ser convertidas do dia para a noite em entidades combatentes, sem falar no fato de que a maioria dos judeus não teria aderido a elas se por milagre pudessem escolher. Foi nas fileiras dos movimentos juvenis sionistas que finalmente se recrutaram os que podiam lutar, mas isto ainda estava longe, no horizonte distante, quando no verão de 1940 a Europa inteira se cobria de suásticas e o Terceiro Reich parecia mesmo poder durar mil anos.

Este poder se abate sobre os judeus com uma velocidade e com uma eficácia que os deixou completamente sem opção. No que se refere à Polônia, o processo Eichmann revelou que já em 21 de setembro de 1939, quando as ruínas de Varsóvia ainda fumegavam, Reinhard Heydrich – o “engenheiro da Solução Final” – convocou uma reunião em Berlim para tratar do destino dos três milhões de judeus que ali viviam. Os nazistas jamais esconderam seu antissemitismo, mas agora ele não se limitava à discriminação legal ou a ocasionais episódios de brutalidade. Tratava-se de passar, como diz Heine na frase que tomei como epígrafe, das palavras aos atos. As diretivas do Führer eram: concentração imediata dos judeus poloneses em guetos, estabelecimento de Conselhos Judaicos (Judenräte) e deportação de todos os que viviam na parte ocidental do país para a área do Governo Geral da Polônia. Isto porque os territórios que faziam fronteira com a Alemanha haviam sido pura e simplesmente anexados ao Reich, com o nome de Warthegau (continham importantes reservas de minérios e petróleo); a parte oriental, até a fronteira do território anexado pela União Soviética, era conhecida como “Governo Geral”, e seria o palco do extermínio nos anos seguintes.

As ordens foram seguidas escrupulosamente, e a máquina pôs-se em marcha. O território do Reich deveria ser tomado judenrein o quanto antes: e isto significava deportar 400.000 judeus da Alemanha, da Áustria e dos Sudetos checos, além de 600.000 da nova província formada com a anexação da Polônia ocidental. Ainda não se falava em extermínio físico, mas é evidente que movimentar estas centenas de milhares de pessoas rumo a guetos na Polônia central, em trens de carga hermeticamente fechados, só podia acarretar consequências pavorosas. A concentração em guetos era uma etapa essencial neste esquema, e havia a diretriz bastante lógica de que eles fossem estabelecidos perto das estações ferroviárias, a fim de facilitar o transporte. Desta forma, em poucos meses se conduziram à Polônia e se trancaram em bairros superpovoados todos os judeus que tinham permanecido nos territórios do Reich.

Uma operação desta envergadura colocava problemas logísticos de extrema complexidade, e diversos departamentos do governo e das SS tiveram de trabalhar em conjunto – o Ministério dos Transportes, por exemplo, devia cuidar para que os horários dos trens de deportados não colidissem com o funcionamento dos trens normais, a polícia precisava garantir que os embarques se dessem em ordem, etc. Mas tudo dependia, antes ainda, da boa vontade dos judeus em “cooperar”, como disse com convicção Eichmann em seus depoimentos. Ora, além dos motivos que já mencionei – a inércia natural a quem vive num país e obedece às suas leis, a dificuldade de opor resistência ativa à força inacreditável e à aparente invencibilidade dos alemães, mito que só foi abalado quando os russos impediram a conquista de Stalingrado e a maré da guerra começou a virar – há ainda outro fator a ser considerado.

Trata-se do seguinte: a concentração – não em campos de prisioneiros, mas em guetos onde a vida prosseguia tão normalmente quanto possível – era ainda uma situação tolerável. Havia recursos para a iniciativa individual, desde a astúcia para conseguir alimentos ou remédios até a possibilidade de fugir, esconder-se com amigos ou no campo, etc. A maioria dos judeus era de homens e mulheres com família, e julgavam, não sem razão, que seria melhor obedecer aos éditos do ocupante até que aquele pesadelo terminasse: não podiam suspeitar que a cúpula nazista já havia decidido seu extermínio.

Um outro elemento de enorme importância é o que chamei atrás de inércia. Não uso este termo num sentido moral: penso no fato de que as pessoas tendem naturalmente a se acomodar às circunstâncias da vida quando lhes parece que não há alternativa viável a elas. Em termos sociais, é preciso levar em conta que existiam governos nestes lugares, mesmo que títeres dos nazistas; havia leis a serem obedecidas, ainda que iníquas, uma polícia que vigiava as pessoas – infelizmente, uma polícia judaica que se somava às SS – e, sobretudo, o conhecimento de que na maior parte dos países a população apoiava, passiva ou ativamente, as medidas antissemitas. [8] Fugir em massa? Impossível. Resistir individualmente, só através da fuga ou do ocultamento por cristãos - foi o que aconteceu com a família de Anne Frank e com tantos outros. Indefesos, desarmados, tendo a perder o pouco que haviam conseguido salvar, e ordeiros por séculos de obediência à Lei, os judeus, nos primeiros dois anos da guerra, simplesmente não tinham outra opção exceto a de seguir vivendo.

A invasão da Rússia, em 22 de junho de 1941, marcou outro ponto de virada nessa história sinistra. Hitler, agora inteiramente tomado por sua megalomania, ordenou o extermínio físico de todos os judeus da Europa, como Heydrich contou a Eichmann numa reunião em novembro daquele ano. E, no Terceiro Reich, Führerworte haben Gesetzkraft, as palavras do Führer tinham força de lei. Por extraordinário que pareça, este era um dos princípios fundamentais da legalidade nazista – l’Etat c’est moi, literalmente e num sentido que nem mesmo Luís XIV podia suspeitar. Diversos textos jurídicos da época, citados por Hannah Arendt, não deixam qualquer dúvida a respeito.

Até então, havia na verdade dois métodos para lidar com a Judenfrage. A política de concentração atingia os judeus trazidos do Reich e os poloneses, assim como, nos diversos países ocidentais, as respectivas comunidades. Com a ocupação dos territórios da União Soviética, que incluíam os países bálticos com sua grande população judaica, entraram em cena os Einsatzgruppen, ou unidades de assalto, encarregadas de realizar fuzilamentos em massa. Havia quatro destes batalhões de assassinos, e seus alvos eram todos os funcionários soviéticos, além dos profissionais liberais, jornalistas, intelectuais e de modo geral a intelligentsia destas regiões, que, no radioso futuro traçado pelos nazistas, teriam a missão de fornecer trabalhadores escravos para a raça dominante. A estas categorias logo se somaram os judeus, os ciganos, os “rebeldes” de todo tipo, que pudessem representar alguma “ameaça” à “segurança do Reich”. Cerca de trezentas mil pessoas foram assim fuziladas, não sem antes cavarem seus próprios túmulos coletivos, que em seguida eram cobertos de terra, às vezes com os corpos ainda se retorcendo nos últimos estertores da agonia.

Mas um método tão lento de matança não permitiria liquidar com rapidez toda a população judaica do continente. A Solução Final veio para resolver este problema, e começou a ser delineada no outono de 1941, quando se decidiu ampliar o programa de eutanásia até então aplicado somente aos doentes mentais da própria Alemanha. Um decreto de Hitler datado de 1 de setembro de 1939 - o primeiro dia da guerra – ordenava dar a estes infelizes “uma morte misericordiosa”. O envenenamento por gás foi a fórmula encontrada, e até meados de 1941 foram mortos cinquenta mil internos em asilos alemães, austríacos e dos Sudetos.

Este foi o ensaio geral da Endlösung. Em janeiro de 1942, no subúrbio berlinense de Wannsee, Heydrich convocou uma reunião com os principais executivos do serviço público alemão e com os encarregados de todos os departamentos da SS. O objetivo era avaliar até que ponto a burocracia estatal de carreira estaria disposta a cooperar com o projeto de genocídio, a manter o segredo necessário para que as medidas fossem eficazes, e de modo geral a considerar a ordem de extermínio como mais uma tarefa a ser executada. Não houve qualquer oposição da parte destes honrados funcionários, de quem dependia, na verdade, o bom funcionamento da máquina estatal; quanto às SS, era sua tarefa cumprir as ordens de Hitler. Eichmann assistiu a esta reunião, assim como Oswald Pohl, encarregado do Wirtschafts - und Verwaltungshauptamt - o WVHA, ou Escritório Central para a Economia e Administração da SS, do qual passaria a depender a operação concreta dos campos. Matar pessoas em escala industrial tornava-se assim um assunto “econômico” e “administrativo”, pois havia problemas a serem resolvidos racionalmente – a capacidade de absorção dos campos, por exemplo, tinha de ser calculada em conjunto com as possibilidades de transporte de gente de toda a Europa, as “cargas” deviam lotar os trens para não desperdiçar combustível, havia questões de logística, produção do gás, etc. O departamento de Eichmann foi encarregado de organizar o transporte, e durante os anos seguintes ele cumpriu essa tarefa com horrenda eficácia e infinita escrupulosidade.

Hannah Arendt reconstitui os procedimentos que conduziram à instalação dos campos de extermínio na região do Governo Geral da Polônia – Auschwitz, Treblinka, Sobibor, Maidanek, Belzek e outros. Todos conhecemos, depois de tantos livros e filmes, a sequência macabra deste processo: como os deportados eram conduzidos no meio da noite em trens lacrados, como eram selecionados os mais aptos para os trabalhos necessários ao bom funcionamento dos campos, da cozinha dos oficiais às mulheres que deveriam servir de prostitutas e aos Sonderkommandos, encarregados de retirar os cadáveres dos galpões e de cuidar dos fornos crematórios; como os outros prisioneiros eram levados a crer que iriam tomar um banho, despindo-se e arrumando caprichosamente seus pertences; como eram trancadas as portas, ligado o gás e asfixiados os condenados; como eram em seguida queimados os seus corpos, produzindo colunas de fumaça que se podiam ver a quilômetros de distância; e por fim, como eram arrancados os dentes de ouro, que, fundidos depois, viriam acabar nos cofres do Reichsbank. Estes horrores são por demais conhecidos para que nos demoremos neles, mas é preciso lembrá-los - o dever da memória - para que se tenha a medida da frieza e da naturalidade com que operava a indústria da morte.

3. Ilusão

Agora podemos tentar responder à pergunta que não cala: por que os judeus aceitaram morrer assim? Por que não se revoltaram nos trens, ou antes, ou depois, ao desembarcar no destino final?

A resposta é complexa. Em primeiro lugar, porque não sabiam o que ia lhes acontecer, ao menos nos primeiros tempos. Não havia informação precisa sobre nada na época da guerra, pois o rádio era censurado, a imprensa idem, e quem fosse apanhado ouvindo a BBC podia ter certeza de uma morte rápida como traidor. Para nós, que vivemos no tempo da Internet e do mundo que cabe na palma da mão, é difícil imaginar o que anos de ocupação brutal, de propaganda mentirosa e de pavor constante podem provocar em matéria de ilusões ou de simples desconhecimento da realidade. Mesmo quando começaram a surgir os primeiros boatos do que se passava no Leste, poucos acreditaram que aquilo fosse mesmo possível - e o tamanho do seu engano só lhes era revelado quando o galpão se trancava e o Zyklon B começava a fazer efeito.

Uma segunda e poderosa razão é que os judeus não estavam preparados para compreender a natureza absolutamente inédita do genocídio. Parecia-lhes que o nazismo era apenas outra figura do imemorial antissemitismo, e foi este o quadro mental em que situaram o que lhes era dado ver e viver. A longa história de perseguições das Cruzadas em diante, com alguns ensaios amadores na época dos helenistas e dos romanos, os havia familiarizado com a ideia de que alguns de seu povo poderiam morrer, que a hostilidade latente dos povos cristãos poderia se manifestar de tempos em tempos através de violência, barbárie e destruição (Inquisição, pogroms na Polônia e na Rússia, etc.). Mas Am Israel chai, o povo enquanto tal sobreviveria, como sempre havia sido o caso desde gerações sem conta, ainda que partes dele pudessem ser aniquiladas. Sempre houvera a possibilidade de fugir, até mesmo de se converter diante de perseguições religiosas, como as da Espanha no século XIV e posteriormente nos domínios ibéricos. Sempre houvera um alhures, um futuro, a crença na vinda do Messias e no retorno à Terra Prometida. Agora, porém, nada disso existia: a Europa havia se convertido numa imensa ratoeira, e todos eram parte de uma monstruosa engrenagem, cujo alcance lhes escapava por completo. Os judeus franceses não sabiam o que se passava na Holanda, nem estes o que acontecia a seus correligionários na Letônia ou na Hungria. Imaginavam que estavam sendo transferidos para “assentamentos” no Leste, e tomavam isso como mais uma calamidade que lhes incumbia suportar, à espera do fim da guerra e da vitória dos Aliados.

É contra este pano de fundo que devemos considerar o levante do Gueto de Varsóvia. Outros capítulos deste livro contam os detalhes da revolta; gostaria aqui de refletir sobre o que a tornou possível. Para dizer as coisas sucintamente, parece-me que foi a percepção de que havia algo além da simples concentração, a saber que daquelas viagens misteriosas ninguém voltava.

O Gueto começou a ser evacuado em outubro de 1942, à razão de cinco mil pessoas por dia. A fome e as doenças já haviam dizimado a maior parte dos habitantes, assim como em outros guetos poloneses. Aos poucos, a verdade foi se revelando: não havia “reassentamento” algum, o destino dos passageiros daqueles trens que voltavam vazios era a morte, pura e simples. Tornou-se impossível manter a ilusão de que obedecer significava vida e rebelar-se significava morte: a cuidadosa fachada de “normalidade” construída pelos nazistas, e que havia obtido êxito notável até aquele momento, começou a ruir.[9]

Quem se rebelou, como sabemos, foram os jovens que nada tinham a perder, que não tinham responsabilidades familiares, e isto é importante. A liderança veio dos movimentos sionistas organizados, que tinham alguma noção do que era preciso fazer para coordenar os esforços de todos para um fim militar. Foi a certeza de que morreriam de qualquer modo que, ao se impor com a evidência ofuscante do meio-dia, tornou possível a reação, cujas condições materiais eram de uma dificuldade inimaginável, mas que acabou por eclodir na manhã de 19 de abril de 1943, o primeiro dia de Pessach de 5703.

Quando falo em “fachada de normalidade”, refiro-me tanto às medidas que puderam manter em disciplinada letargia as massas (judaicas ou não) quanto ao apagamento de qualquer possível resistência por parte dos que deviam implementar a Solução Final. Um dos métodos mais eficazes para este objetivo específico era o uso de uma linguagem cifrada, a que se chamava nos documentos nazistas de Sprachregelungen (regras de fala), e que o linguista Victor Klemperer, que passou a guerra na cidade de Dresden, chamou de LTI – lingua tertii imperii, ou idioma do terceiro império (Dritter Reich) [10]. Neste código sinistro, assassinato era “morte misericordiosa”, genocídio era “solução final do problema judaico”, deportação era “reassentamento”, etc. Hannah Arendt observa com razão que este sistema foi incrivelmente útil para

“assegurar ordem e equilíbrio entre os serviços imensamente diversificados cuja cooperação era indispensável nesta questão. (...) O efeito direto deste sistema de linguagem não era deixar as pessoas ignorantes do que estavam fazendo, mas impedi-las de equacionar isso com seu antigo e “normal” conhecimento do que era assassinato e mentira.” (p. 101).

Outro termo típico da LTI era “a batalha pelo destino do povo alemão” (der Schicksalskampf des deutschen Volkes), que, comenta a filósofa, “tornava mais fácil o autoengano sob três aspectos: sugeria em primeiro lugar que a guerra não era guerra; em segundo, que fora iniciada pelo destino e não pela Alemanha; e, em terceiro, que era questão de vida ou morte para os alemães, que tinham de aniquilar seus inimigos ou serem aniquilados.” (p. 65)

A LTI funcionou também como poderoso auxiliar na manutenção da disciplina entre os judeus, na medida em que o verdadeiro objetivo de todas as medidas de repressão não era jamais mencionado. (Algo semelhante, embora em escala muito menor, ocorreu com o discurso da segurança nacional durante as ditaduras latino-americanas). Desde o estabelecimento dos Conselhos Judaicos até o preenchimento de questionários detalhados sobre suas propriedades, apresentados como simples dados de cadastro necessários à nova administração, desde a tarefa de selecionar os que deveriam ser “reassentados” (realizada pelos Conselhos Judaicos, que entregavam à SS listas com nomes segundo as diretivas recebidas - tantos de tal idade, tantos de tal sexo ou profissão) até a organização de uma polícia judaica (desarmada) nos guetos, o uso de termos como “reeducação para o trabalho”, “prestação de serviços ao Reich” e outros do mesmo calibre era essencial para manter a ilusão de que quem se curvasse seria salvo, para preservar a ficção de que tudo aquilo era perfeitamente natural e normal. No portão principal de Auschwitz, lia-se a cínica inscrição Arbeit macht frei, o trabalho liberta [11].

Até a aparência das estações a que chegavam os trens da morte era cuidadosamente estudada: havia placas, escritórios onde trabalhavam pessoas, mapas, horários afixados, etc., reproduzindo à perfeição uma estação comum das ferrovias locais. Os galpões de extermínio eram sinalizados como banheiros, e as torneiras por onde saía a substância letal tinham o aspecto de inofensivas e bem-vindas duchas. Tudo era, em suma, planejado para sugerir não a morte iminente, mas uma nova vida - de escravos, mas vida. O mais impressionante disso tudo é que o genocídio foi organizado com maestria e meticulosidade, e que as pessoas, em suas dúvidas ou em seu desespero, se agarraram àquilo que poderia manter, ao menos, sua sanidade: a ideia de que, afinal, tinham alguma chance de sobreviver.

4. Alienação

Para dar conta do regime mental em que isso podia ser plausível, é preciso entrar agora brevemente no terreno da psicanálise. Estamos falando de crenças, de algo intangível mas extremamente poderoso na vida psíquica, capaz de orientar o comportamento de cada um de nós. Há aqui uma mescla de elementos conscientes e inconscientes: os conscientes são aqueles que já evoquei, ao falar das decisões que as pessoas tomavam com base no que lhes parecia mais prudente ou mais seguro. Resta abordar alguns aspectos inconscientes, que, por terem sido instrumentalizados com eficácia diabólica pelos nazistas, tiveram um papel nada desprezível neste trágico capítulo da história judaica.

Uma das hipóteses comumente levantadas para dar conta da “passividade” dos judeus é a da identificação com o agressor. Este termo designa um mecanismo de defesa estudado por Sándor Ferenczi e por Anna Freud, e que é acionado em certos casos de traumatismo, por exemplo em mulheres estupradas, em crianças que sofreram violências sexuais, ou ainda, na forma conhecida como “síndrome de Estocolmo”, quando um sequestrado passa a ver seus algozes não como inimigos cruéis, como pessoas que estão do seu lado e que no fundo desejam o seu bem. Na identificação com o agressor, a vítima não alimenta ódio contra quem lhe fez mal, mas contra si mesma, como se fosse culpa sua o que lhe aconteceu. Assume como seus os desejos do agressor, como no caso em que uma menina violada pelo padrasto sente culpa por tê-lo “seduzido” e passa a odiar seus próprios impulsos sexuais, ou a considerar que tudo aquilo no fundo não é tão ruim. O mecanismo em causa implica uma grave dissociação na psique da vítima, pois uma parte dela sente culpa e horror, enquanto a outra nega o que aconteceu ou lhe retira importância. O resultado prático pode ser que ela venha a se portar exatamente como o agressor exige.[12]

Aplicado como instrumento para compreender o que se passou no Holocausto, porém, este conceito induz a concepções errôneas, como a de que os judeus seriam no fundo masoquistas, aceitando passivamente o papel de “carneiros” e vendo-se como os nazistas os viam. A versão mais politizada desta concepção se coaduna com a visão da História judaica na perspectiva sionista: séculos de opressão teriam transformado os judeus num povo inapto a se defender, e somente a redenção nacional por meio do retorno à Terra de Israel os poderia livrar dos vícios de caráter acumulados pela humilhação constante na Diáspora. Este tema, em todas as suas variantes, foi e em parte é um dos pilares sobre os quais se assenta a ideologia sionista, e é óbvia a força mobilizadora de que se reveste: não está aqui em pauta se corresponde à verdade, e sim sua utilidade para compreender o fenômeno da submissão a um sistema assassino. Dito de outro modo: o judeu assimilado, ou o judeu religioso não-sionista, não teriam recursos morais para se opor à perseguição, porque só o espírito judaico autêntico, imbuído do ideal nacional, é que poderia tê-los preservado, permitindo sua mobilização para salvar o povo do genocídio.

Esta perspectiva implica, porém, que os judeus europeus se vissem a si próprios pela ótica dos nazistas, o que em hipótese alguma é verdadeiro. Penso que a ideia de alienação, no sentido definido por Piera Aulagnier, é mais fértil para compreender o que se pensou naquelas mentes e levou os judeus a participarem - não passivamente, mas disciplinadamente, e por vezes ativamente - da sua própria destruição física.

Escreve a psicanalista francesa:

“a particularidade e a força de um sistema (alienante) repousam sobre sua capacidade de difração e de infiltração no conjunto das relações entre os sujeitos. Entre o chefe e os súditos, entre os epígonos, entre os sujeitos singulares, vai circular um poder de morte e um risco de ser morto que todos correm e detêm sobre o outro. O seu irmão, o seu vizinho, um desconhecido que você cruza, podem ser o delator potencial ou real, aquele a quem você vai dever sua morte, ou inversamente (...) Estamos diante de uma realidade social que se tornou conforme, embora não idêntica, a uma representação que está presente na fantasia de todo mundo.” [13]

Piera Aulagnier tem em vista aqui um sistema totalitário como o stalinista, mas suas indicações servem também para o que foi a vida na Europa sob o nazismo. Continua ela:

“ora, o discurso do poder sobre (...) esta realidade social, na qual e graças à qual ele se exerce, proíbe aos sujeitos reconhecerem o que, nesta realidade, é a colocação em atos (mise en actes) de um objetivo pulsional, a realização parcial de uma interpretação fantasmática da realidade.”[14]

Isto significa que nossas fantasias inconscientes de perseguição, com as quais lidamos de hábito por meio de mecanismos eficazes de defesa, parecem agora ter-se realizado na cena da realidade, através dos meios de coerção que o regime totalitário impõe a todos.

A consequência é que não se pode falar de delírio – a realidade é que se tornou por assim dizer “delirante” – e portanto o sujeito deve, para poder sobreviver psiquicamente nestas condições, acionar mecanismos de negação da realidade: “não, isto não está acontecendo, não é possível!” Ou melhor, “está acontecendo, mas não é (tão ruim, entenda-se) como parece”. “Eles não vão fazer o que estão dizendo”. “É melhor não provocar o opressor; quem sabe ele se satisfaça com o que conseguiu até aqui”. E assim continua o sujeito, cedendo um pouco de cada vez – é o que os nazistas chamavam, cinicamente, de “tática do salame”: fatiar o salame um pouquinho a cada vez, determinando alguma medida absurda e esperando que a rotina a tornasse “natural”, depois impondo outra, e repetindo o mesmo processo, até o desenlace nos fornos crematórios.

Continua Piera Aulagnier:

“O terror é antes de tudo uma ameaça que concerne ao pensamento (...) O sonho do poder, como mostra Orwell, seria privar o sujeito de todas as possibilidades de pensar, de conhecer o termo terror, tornar-lhe impossível dar um conteúdo a este conceito. A força alienante, no tipo de situação aqui descrito, visa a excluir qualquer representação pensante ( mise en pensées) da realidade tal como ela (força) a conforma. (...) Poder-se-ia dizer que esta colusão e essa cumplicidade entre a realidade e a fantasia devem permanecer ocultas, negadas. (...) Por motivos de sobrevivência, o sujeito tem todo interesse em não pensar as “circunstâncias reais” nas quais está colocado, a não pensar o poder como perseguidor, (...) Esta realidade, o sujeito a substitui pelo discurso do outro acerca dela: a realidade é como este outro a define. (...) A alienação, em sua forma mais radical e mais trágica, culmina nesta desrealização do percebido (que se cristaliza) numa representação discursiva. Esta, apresentando-se sob a forma de um discurso em si mesmo lógico, pode efetivamente trazer ao sujeito a ilusão de que contém uma verdade partilhada e partilhável com todos os demais, a ilusão de que, ao repeti-lo por sua conta (...), o sujeito faz parte destes “eleitos” que detêm uma verdade a impor aos outros, “para o seu próprio bem”.[15]

Este último trecho nos é útil para compreender o outro lado da questão: por que os alemães, e tantos outros, consentiram em participar do assassinato em massa de uma população indefesa. Hannah Arendt deixa claro que os SS não eram necessariamente sádicos, que viam o que estavam fazendo como o cumprimento do seu dever e como realização do solene juramento de fidelidade ao Führer. Eichmann, em sua cabina de vidro no tribunal de Jerusalém, não era um monstro: era apenas a encarnação da “banalidade do mal”. E os demais, os alemães que acreditavam cegamente no Führer, os milhares de não-alemães que participaram ativamente dos massacres ou simplesmente olharam para o outro lado, estavam efetivamente sob o domínio desta condição que ela descreve de modo tão eloquente e preciso.

Aquilo que Aulagnier designa como alienação é chamado por Hannah Arendt de autoengano, e para ela este mecanismo tornou-se um pré-requisito moral para a sobrevivência sob o nazismo.

“A hipocrisia passou a ser parte do caráter nacional alemão (...). A sociedade alemã de oitenta milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos autoengano, mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade de Eichmann. Estas mentiras mudavam de ano para ano, e frequentemente se contradiziam; além disso, não eram necessariamente as mesmas para todos os diversos níveis da hierarquia do Partido e para as pessoas em geral.” (p. 65)

Quanto aos judeus, o que se disse antes sobre a ignorância e o terror em que foram mantidos vale até o momento em que se começou a pressentir, na forma de boatos ainda incertos, o que ocorria nos campos. Numa fase intermediária, prevaleceu a condição de alienação e de negação da realidade, porque esta era pavorosa demais para ser admitida, e porque a “força alienante” continuava a atuar, sob a forma da “normalidade” nos guetos e nos países ocupados. Quando finalmente a realidade impôs a ruptura deste frágil equilíbrio psíquico, porque negá-la equivaleria agora a delirar em escala coletiva, a rebelião se tornou psicologicamente possível, e sua eclosão passou a depender apenas de meios materiais, como o armazenamento de armas e munições, a organização das pessoas em unidades e tarefas, etc. Ela se tornou, em suma, viável.

O levante do gueto de Varsóvia deixou atônitos os alemães, mas na verdade não foi o primeiro: episódios isolados de resistência ocorreram aqui e ali, sendo, como se pode imaginar, dominados em horas. O que caracterizou a revolta de Varsóvia foi sua duração excepcional – três semanas – e o grau extraordinário de organização dos judeus. Já em janeiro de 1943, a ZOB (sigla em polonês da Organização Judaica de Luta) havia protagonizado escaramuças com as tropas alemãs nas ruas do gueto. Mas foi a capitulação da Wehrmacht em Stalingrado, a 2 de fevereiro de 1943, que provou a possibilidade de derrotar a até então invencível máquina de guerra nazista. E os dias gloriosos do levante não foram em vão: assim que se espalhou a notícia, outras revoltas ocorreram, em escala menor, porém não menos heroicas – no gueto de Byalistok, nos campos de Treblinka e Sobibor, e em outros lugares também.

Para concluir: volto à sinagoga da CIP e aos nomes inscritos na parede lateral. Não foram covardes, estas pessoas que como minha avó se viram no meio de uma tormenta cujas dimensões e cujos efeitos não podiam imaginar. A razão enlouquecida pelo extremo de sua potência, como escreveram Adorno e Horkheimer na Dialética do Iluminismo, transformou o poder de criar e de organizar em poder de organizar para matar: e a mentira, a dissimulação, a força bruta, a crueldade além dos limites mais inimagináveis, engendraram uma situação na qual apenas o mecanismo da alienação pareceu garantir algum alívio e alguma esperança. Os que se agarraram a ele até o fim viveram no terror e morreram de modo pavoroso, mas não indigno: não tinham outra alternativa, porque acreditavam que o mundo não poderia ter sido virado pelo avesso, como de fato tinha. Os que perceberam isso a tempo, ainda que já no final de suas forças, puderam sair da apatia e escolher uma morte honrosa, embora não menos certa do que a que os aguardava nos campos: dos quinhentos mil judeus que passaram pelo gueto de Varsóvia, menos de cem saíram vivos. Faço minhas as palavras de Hannah Arendt:

“Há muitas coisas consideravelmente piores do que a morte, e a SS cuidava que nenhuma delas jamais ficasse muito distante da mente e da imaginação de suas vítimas (...) A glória do levante do gueto de Varsóvia e o heroísmo dos poucos que reagiram estava precisamente no fato de terem recusado a morte comparativamente fácil que os nazistas lhes ofereciam – à frente do pelotão de fuzilamento ou na câmara de gás.” [16]

Mas esta recusa, por alto que seja o seu valor moral, não estava ao alcance da imensa maioria dos judeus. Não acrescentemos ao seu triste destino, ao silêncio em que foram assassinados, à injúria de os acusar de “terem ido para o sacrifício como carneiros”.





[1] Originalmente publicado em Mezan, R. Sociedade, cultura, psicanálise. São Paulo: Blucher, 2017.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[3] “Meu mestre, que me mostrou o caminho”. David Sztulman, nascido na Polônia, foi por muitos anos diretor do Departamento Juvenil da CIP. Ele e sua esposa Sima despertaram meu interesse pela história e pelos valores do judaísmo, e me proporcionaram alguns dos anos mais felizes de minha vida. Que este texto sirva como um testemunho da gratidão que lhes dedico.

[4] Varsóvia foi destruída durante a guerra, inclusive Stare Miesto, a cidade antiga. Seguindo planos e desenhos que puderam ser preservados, os poloneses reconstruíram as fachadas e a aparência urbana do centro histórico exatamente como eram em 31 de agosto de 1939. Mas das ruas onde ficava o gueto nada foi reconstruído: o espaço tornou-se uma praça.

[5] Auschwitz é hoje um monumento nacional polonês, dedicado à memória dos patriotas ali assassinados. Milhares de retratos cobrem as paredes do que foram os dormitórios, tendo embaixo de cada um o nome da pessoa. Em 1978, quando estive lá, não havia uma única referência ao martírio dos judeus, nem nomes judaicos entre os retratos.

[6] Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1964), São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 50 ss.

[7] A Kristallnacht foi desencadeada como represália ao assassinato, por um jovem judeu, de um diplomata alemão na Embaixada em Paris. O pai deste jovem depôs no processo Eichmann (cf. Arendt, op. cit., p. 248).

[8] Nos países em que o governo ou a população boicotaram as medidas exigidas pelos nazistas, como a Dinamarca e a Bulgária, os judeus sofreram muitíssimo menos. Da Dinamarca, quase todos foram evacuados para a Suécia numa única noite, com a ajuda de barcos pesqueiros e muita audácia por parte da população local; da Bulgária, quase todos puderam emigrar para Israel depois de acabada a guerra. A própria França, onde o vergonhoso regime de Vichy endossava a política antissemita, recusou-se a entregar os que eram cidadãos franceses para serem deportados, em virtude do que 250.000 dos 300.000 que ali viviam no início de 1940 puderam sobreviver.

[9] Podemos dizer que, também aqui, as palavras (neste caso, uma convicção que demorou muito a se formar) precedem os atos (a ação concreta de se revoltar).

[10] A este respeito, ver a tese de mestrado de Miriam Bettina Oelsner,A linguagem como instrumento de dominação: Victor Klemperer e sua LTI – língua tertii imperii, apresentada ao Departamento de Línguas Modernas da Universidade de São Paulo em agosto de 2002. (Nota de 2015: em 2008, a obra de Klemperer, em primorosa tradução de M. Oelsner, foi publicada pela Editora Contraponto (Rio de Janeiro), sob o título LTI – a linguagem do Terceiro Reich.)

[11] Em certo sentido, não era uma completa mentira. Além de exterminar dois milhões de seres humanos, o campo fornecia trabalhadores escravos para indústrias alemãs como a I. G. Farben, a Siemens, a Krupp e outras, como vemos no filme de Steven Spielberg “A Lista de Schindler”. Quem fosse selecionado para estes postos podia garantir algumas semanas ou meses a mais de vida, mas quase todos os assim “privilegiados” morreram de inanição ou pela sobrecarga desumana de trabalho.

[12] Um fenômeno de identificação ao agressor em escala coletiva parece ter se dado no caso da escravidão dos negros na época colonial. Apesar de episódios isolados de resistência como fugas, revoltas e quilombos, entre os quais o glorioso Palmares, a imensa maioria dos capturados acabou por aceitar sua condição e, dentro dela, procurou meios de sobreviver psiquicamente. Obras como Ser escravo no Brasil (Brasiliense, 1982), de Kátia Mattoso, ou Campos da violência (Paz e Terra, 1989), de Silvia Hunold Lara, estudam este processo, pelo qual os próprios cativos vieram a considerar natural a existência da escravidão e o direito de seus senhores de os possuir e comandar - fato que é comprovado pela rapidez com que muitos deles, ao serem alforriados, procuravam por sua vez adquirir escravos. Não se trata, evidentemente, de justificar o instituto da escravidão, mas simplesmente de observar que, em condições em que não existe alternativa, a identificação com o agressor pode vir a ser acionada como mecanismo essencial para manter o equilíbrio narcísico em um nível suficientemente elevado e estável. Ele se somou a outros mecanismos – coletivos, como o sincretismo religioso, a preservação de cantos, danças e tradições, ou conscientes, como a astúcia e a própria obediência - para tornar tolerável a vida na servidão. Mas discutir esse problema, que em outros contextos poderia esclarecer uma parte da submissão a situações-limite (prisões, ditaduras, tortura, etc.) ultrapassa os propósitos do presente artigo.

[13] Piera Aulagnier, Les destins du plaisir, Paris, PUF, 1977, p. 41-42.

[14] Aulagnier, op. cit., p. 42-43.

[15] Aulagnier, op. cit., p. 43-44. Este é um terceiro sentido em que se pode interpretar a nossa epígrafe: a representação discursiva (palavras) precede logicamente, como condição de possibilidade, o comportamento (atos) que a realiza e por isso mesmo a sanciona.

[16] Hannah Arendt, op. cit., p. 23.




 
 
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