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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    56 Outubro 2020  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

FICAR SEM CARA [1]

NARCISISMO E KULTURARBEIT



“Trata-se aqui de uma verdade particular, a verdade da
realidade. Gostaria de fazer disso um pedaço de prosa
do futuro, algo análogo aos relatos de Saint-Exupery. O escritor
escreve na língua daqueles em nome dos quais ele escreve.
Embora conheça o tema bem demais, corre o risco de
não ser compreendido por aqueles para os quais escreve. Ele
os ‘trai’, passa ao largo de sua documentação. É da
verossimilhança que a literatura do futuro retirará sua força.”
V. Chalámov

“É essa coincidência com o mundo exterior real, que chamamos de verdade.”
S. Freud, Novas conferências.



1/ A verdade da realidade

Essa epígrafe da primeira edição francesa do livro de Varlam Chalámov, Artigo 58, situa logo de início o registro a partir do qual colocaremos a questão da realidade e dos destinos do Eu. Do ponto de vista do psicanalista, o homem se desloca no interior da verdade da realidade humana. Não é a única realidade que lhe interessa, mas é aquela na qual ele vive. Essa realidade é o chão temporal, espacial, libidinal, onde o homem é, por si só, o movimento convergente do que ele é para os outros e do que os outros são para ele.

Aqui, trataremos de uma realidade historicamente inédita, a dos regimes totalitários e dos universos concentracionários, o Lager e o Gulag, conforme atestam algumas das grandes obras de uma literatura de um gênero, também ele até então inédito.

A realidade, no sentido que interessa à psicanálise, é de definição intrincada. É difícil compreender seus conteúdos, seu objeto, separados das categorias de pensamentos filosóficos e científicos que a modelam. Essas categorias, porém, tendem inevitavelmente a estabelecer pares de opostos entre a realidade psíquica – interna – de textura fantasmática inconsciente – individual – subjetiva, “pessoal”, e uma realidade externa – material – intelectualmente construída – comum – geral – objetiva – impessoal e livre das deformações dos desejos inconscientes.

Ora, a realidade que se nos impõe conhecer, a partir da prática psicanalítica, é, não é senão matéria psíquica; e ela é, ao mesmo tempo, singular e coletiva, de textura libidinal singular e investindo o impessoal da herança filogenética, habitada, animada por traços que pertencem a um tempo coletivo. É o que podemos convencionar chamar de realidade humana.

Trataremos de civilização e de cultura e desta noção freudiana, insubstituível e intraduzível, Kulturarbeit, passagem forçosa das transformações psíquicas impostas à história da humanidade e à história singular de cada um devida às dependências constitutivas mútuas entre o indivíduo e a espécie em suas apetências divergentes e convergentes, solidárias e incompatíveis, para a vida e para a morte. A Kulturarbeit aparecerá como a garantia coletiva do narcisismo individual, exercendo a função de identificação originária ante-objetal.

Trataremos da força de interpretação da obra literária e do que ela revela a respeito dos recursos do espírito humano mergulhado em um universo de destruição.

Trataremos da vergonha, ferida impessoal coletiva infligida à figura humana; ferida que a realidade humana gestou no século XX e que não se assemelha a nada que a história designava ao homem sobre ele mesmo até então. O que pode advir dessa vergonha?

2/ Totalitarismo

Tiranos, ditadores, poderes absolutos de monarquias e de igrejas, guerras entre Estados e religiões, escandiram a história geral desde sempre. Porém, a época histórica que se inicia nos anos trinta – e para cujas sequelas seria difícil determinar um término – fez a função de proteção do processo civilizatório, proteção ilusória mas também real, bascular a céu aberto na direção da manifestação de uma função francamente destrutiva, a das organizações de massas, das organizações totalitárias do século XX.

Os interesses e os direitos de cada indivíduo eram parte integrante, tanto nos princípios quanto nos fatos, disso que formava os “interesses superiores” de um Estado, de um governo, de uma organização social. Esses interesses superiores se tornaram uma ideologia e uma prática políticas em nome das quais, cinicamente, deixou de acontecer aquilo que a história precisou de muito tempo para conquistar.

A organização de massa expulsou de seus fins comuns o cuidado com a conservação material e moral do indivíduo, seu direito e seus direitos de viver em condições compatíveis com sua integridade psíquica e física.

3/ Civilização, Cultura, Kulturarbeit

Uma civilização se caracteriza por organizações regidas em suas concepções, princípios, críticas, atos políticos, pelo cuidado com o bem comum, público e privado. Esse bem comum se caracteriza, por sua vez, pela busca de uma aliança, de uma compatibilidade entre os fins de interesse geral e os fins de interesse individual. O totalitarismo desliga o bem individual do bem comum. Somente o bem coletivo público faz parte do bem comum. O bem privado se torna letra morta.

Quanto à cultura – e é notório o poder ideológico da própria noção de cultura de massas –, nesse contexto de colapso das instituições, ela considera o ponto de vista individual, pelo simples fato de seu individualismo, como sendo um desvio contrário aos fins coletivos, como o crime de traição por excelência contra o bem comum, como um crime contra o interesse das massas.

Admirável mundo novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell mostram que o desejo amoroso é a primeira falha na identificação coletiva compulsória e a maior fonte de resistência do indivíduo contra a imposição de um coletivo que visa instaurar uma ligação coletiva despersonalizada, idêntica para todos, em substituição a toda ligação pessoal, pulsional, erótica.

Nesse sentido, essas obras confirmam a exatidão dos projetos totalitários: o indivíduo é mesmo um desviante, as fontes pulsionais de suas aspirações psíquicas são incompatíveis com fins unicamente coletivos que eliminam as diferenças individuais. De certa maneira, essas obras, bastante avançadas em relação ao que se convencionava pensar sobre os regimes totalitários naquela época, combinam com a análise do mal-estar na civilização produzida por Freud: “a criação de uma grande comunidade humana teria êxito maior se não fosse preciso preocupar-se com a felicidade do indivíduo”. [2]

Os regimes totalitários instauravam de fato uma cultura de massas, apesar da apóstrofe famosa: “quando ouço a palavra cultura, saco o meu revólver”. Uma cultura a serviço da criação de um homem novo, um homem fictício, o homem intercambiável, musculoso, marcial, radiante. Essa cultura era suposta portadora de uma nova sociedade. A cultura da civilização decadente, ao contrário, não passava de um subproduto burguês perverso de uma sociedade ultrapassada, em vias de extermínio.

O caráter sumário disto que aqui designo em termos de civilização e cultura pretende, sobretudo, ressaltar o que as diferencia da Kulturarbeit.

Entendidas como obras, formações coletivas, centradas em fins coletivos comuns, a civilização e a cultura omitem, teórica e literalmente, suas origens pulsionais, o fato de que suas possibilidades de evoluir e seus poderes de influenciar dependem apenas de “um impulso erótico interno” de mesma natureza para o indivíduo e para a coletividade, e que é pelo indivíduo isolado, visionário e desviante que passam as iniciativas de mudança.

A civilização não é uma transformação psíquica coletiva de um inconsciente coletivo. Não há nem alma nem inconsciente coletivo. A alma, a pequena chama do espírito, aquela que se alumia ante todas as fontes da insatisfação humana e que impulsiona: a história humana e cada história em movimento progressivo/regressivo é inseparável dos corpos e de sua limitada duração vital.

É por meio do psíquico no individual que se realiza a Kulturarbeit, processo especificamente posto em evidência e cognoscível pela experiência analítica. Mas o psíquico no individual possui um espaço-tempo misto: o espaço-tempo limitado da vida individual, o espaço-tempo indefinido do humano em seu conjunto. A Kulturarbeit é um híbrido, um ser quimérico, que surge do encontro entre os fins egoístas das pulsões sexuais e das pulsões de destruição e suas formas de representação e de ato na realidade humana.

O totalitarismo e os campos são o colapso realizado daquilo que constituía os próprios critérios da civilização. Dessa devastação participou uma forte cultura, uma cultura repressora, que substituiu, ao longo de várias gerações, os Ideais do Eu altruístas (não importa quão hipócritas fossem), as figuras superegóicas morais, os valores identificantes resultantes dos interditos estruturais do incesto e do assassinato, pela exaltação das virtudes de um Supereu “obsceno e feroz” segundo a expressão lacaniana, “pura cultura do instinto de morte” segundo a expressão freudiana, que transforma em valores o ódio, a delação, a impunidade do assassinato.

4/ Os possíveis destinos do Eu na Psicologia das Massas

O desmoronamento daquilo que assegurava para cada um, sem que o soubessem, inconscientemente, a certeza da existência de um pacto entre o homem e ele mesmo, e os outros, esse desmoronamento ocorreu, quaisquer que sejam nossas forças de denegação: para aqueles que o viveram e a ele não sobreviveram, e para aqueles que permaneceram vivos, e para ao menos as duas gerações que nasceram depois. Esse desmoronamento faz agora parte de cada um; faz parte da herança da realidade humana. Com essa herança, o que aconteceu com as raízes fundantes de cada um tomadas por esse legado que o tomam por sua ligação visceral com a coletividade humana, com a história coletiva?

O próprio movimento dos processos civilizatórios, o próprio fato da existência de uma narrativa possível da história fornecem a cada indivíduo, independentemente da história singular que ele possa ter, e desde antes de seu nascimento, um capital narcísico inicial, o capital de uma certeza mínima de existir para outrem.

A Kulturarbeit, esse processo psíquico que se inicia na aurora da vida psíquica da humanidade e de cada indivíduo, é, por sua tessitura entre o único e o impessoal, a garantia narcísica mínima. Devido a sua dependência do que acontece com a coletividade, devido ao fato de que a sobrevivência da espécie depende da sobrevivência dos indivíduos que dela fazem parte, é ela, essa obra comum-individual que inscreve a existência individual como não indiferente em relação aos destinos da coletividade, afetando essa coletividade pelas derrotas e pelas conquistas alcançadas em cada destino individual.

Esse dado cultural precede cada indivíduo. Ele é esse mínimo vital, esse viático indispensável que assegura a cada indivíduo o caráter evidente de seus investimentos libidinais, que o assegura do caráter viável da condição humana. Em tempos normais, o que permite ao humano fazer frente a tudo o que possa lhe ocorrer é a existência de um tecido libidinal, trampolim e teia de aranha, em que os marcos estabelecidos pela trama da civilização na qual ele se move, devolvem-lhe o sinal, fazem signo, de sua existência para a coletividade.

O desmoronamento de uma civilização expõe até a última gota tudo aquilo que é tão perecível na organização da realidade humana. Revela a existência de um resto. Esse resto pertence ao processo psíquico ativo individual-filogenético que podemos chamar de Kulturarbeit. O dado narcísico individual, resistente em e por sua ligação com a coletividade, é esse resto.

“O conteúdo do inconsciente é, efetivamente, coletivo em todos os casos, patrimônio universal dos seres humanos”[3], escreve Freud em Moisés e o monoteísmo. O resto, o dado narcísico individual, faz parte dessa propriedade geral coletiva, identificante de cada um.

Esse resto, essa propriedade geral é uma certeza inconsciente, uma Bejahung fundamental, uma afirmação de vida, uma concordância com a realidade comum, o espaço libidinal comum em que o homem existe para o homem, antes mesmo dessa experiência acontecer. Essa afirmação “se” basta, antes que haja um si, antes que haja outros. Ela “se” sustenta no conteúdo coletivo do inconsciente. Sobre a atividade inconsciente repousa a certeza mínima de uma referência segura em relação a outro. E sobre essa certeza repousa o caráter amável da vida, para além de suas condições reais, antes de se atualizar no capital das primeiras experiências de prazer/desprazer.

O que acontece no inconsciente, para cada um, quando esta evidência, essa certeza mínimas são ativamente visadas pela destruição, fazendo recuar aquilo que a transmissão cultural, o ganho civilizatório garantiriam? O que acontece a cada um quando a função protetora da civilização, por mais ilusória que seja, pende para a prática aberta da destruição?

O que acontece quando, historicamente, a coletividade humananão mais designa que, de cada um, o semelhante e o inimigo, ela quer alguma coisa, ainda que seja algo de malicioso, a partir do momento em que ela não mais os designa como “queridos”, mesmo que escravos ou pestilentos, mas, ainda assim, “queridos”? O que acontece quando ela se põe a designar massivamente o outro como o que não tem importância, como o que deve essencialmente e na indiferença ser destruído, apagado?

Quando as massas freudianas dePsicologia das massas e análise do Eu dá lugar à existência de uma Psicologia das Massas, no sentido em que Hannah Arendt analisou o totalitarismo, quando estas massas se voltam abertamente para o assassinato, é impossível deixar de se interrogar sobre os recursos aos quais o Eu recorre, em seus apoios narcísicos, a fim de não perecer.

Sem chances de fuga, nem exterior, nem interior, diante do esmagamento executado pela massa totalitária, como o indivíduo singular pode manter a integridade narcísica, a coesão mental, necessárias para ficar vivo?

Sendo estas a fraqueza e a força humanas, manter-se vivo não depende apenas de suas forças biológicas: quando suas reservas biológicas são destruídas, suas razões de viver psíquicas possuem ainda sua obstinação própria.

O que acontece com o Eu em uma realidade organizada por uma estrutura de massas que almeja abertamente o objetivo de destruir o espírito, o corpo e a ligação? Este objetivo é implícito, velado, nos regimes totalitários, ao menos no discurso ideológico. E é explicito, martelado, nos campos de concentração e nos gulags.

“Eu via como nossos cavalos esgotavam-se e faleciam; não posso me expressar de outro modo, usando outros verbos. Os cavalos não se distinguiam em nada das pessoas. Faleciam por causa do Norte, do trabalho além das forças, da comida ruim, das surras e, embora tudo isso fosse dado a eles mil vezes menos do que às pessoas, faleciam antes. Então compreendi o principal: o ser humano tornou-se ser humano não porque é uma criatura de Deus e não porque tem um polegar em cada mão, mas sim porque é fisicamente mais forte, mais resistente do que todos os animais e, depois, porque conseguiu colocar seu princípio espiritual a serviço de seu princípio físico”.[4]

“Conseguiu colocar seu princípio espiritual a serviço de seu princípio físico.” Formulação surpreendente, inquietante, nesse contexto de condições ferozes impostas ao corpo nos campos. Contudo... como se realiza essa operação de sobrevivência que permite, em condições de provação extrema, realizar um salto inverso ao da passagem do pulsional ao psíquico? O que Chalámov evoca é esse salto do psíquico no corporal que permite ao homem seguir avançando num estado em que o cavalo morre. É uma forma de psiquização do corporal que não possui evidentemente qualquer relação com o salto da conversão histérica. É uma forma de libidinização de necessidades corporais, que não mais funcionam como apoio erógeno, mas adquirem uma valência libidinal direta.

Igualmente enigmática é a manutenção do investimento de uma realidade cotidiana cujo horror não se pode desconhecer, sob risco de morte imediata. Como se realiza essa espécie de milagre que permite continuar conhecendo – reconhecendo – mantendo-se em relação com uma realidade quando esta é totalmente negativa, quando ela considera o vivo como já morto, ou em vias de morrer, em todo caso, como objeto a ser destruído sem apelação, sem alternativa, sem outro projeto possível?

Ali onde “tudo o que era querido está reduzido a cinzas, e a civilização e a cultura voaram em um tempo recorde que pode se resumir a semanas...” (Chalámov), “o assunto principal é a sobrevivência do homem”, escreve A. Siniavski no prefácio à edição francesa de Kolymá [5], publicada em 1978.

De que recurso o psíquico dispõe, indivíduo por indivíduo, casca por casca, para se manter vivo?

A literatura concentracionária põe em evidência a existência de uma referência inconsciente que, nessas situações extremas, ganha a forma, consciente ou não, de que cada vida representa de maneira impessoal a vida humana, a condição humana, em seu conjunto. Ela testemunha a existência de uma referência inconsciente de inclusão indestrutível do indivíduo no devir do humano. Esse “pertencimento à espécie humana”, como a nomeou Robert Antelme, parece sobreviver à destruição de todos os marcos da civilização... A espécie humana, título terrível, inevitavelmente associado ao termo darwiniano de seleção das espécies, e extraindo os excessos do sentido novo destes termos: seleção, espécie.

5/ A identificação sobrevivente

Esse “pertencimento à espécie humana” parece designar a intuição freudiana: “a primeira e mais significativa identificação do indivíduo, aquela com o pai da pré-história pessoal. Esta não parece ser, à primeira vista, resultado ou consequência de um investimento objetal; é uma identificação direta, imediata, mais antiga que do qualquer investimento objetal”. [6]

Identificação sobrevivente no verdadeiro sentido da palavra, sobrevivente em relação ao desmoronamento do que a civilização supostamente deveria preservar, sobrevivente em relação ao homicídio individual e coletivo, referência presente, direta ou indireta, em toda a literatura concentracionária: alguma coisa do homem resiste, não perde a cabeça, não disjunta de sua inscrição na realidade humana, ainda que esta realidade, tal como se tornara pensável até então, deixe de ser inteligível segundo os termos legados pela história humana. Identificação profundamente enigmática, mas comprovada em sua verdade, na exatidão de sua hipótese, por essa literatura que confirma a intemporalidade e a impermeabilidade de sua inscrição em relação a tudo o que a contradiz e, portanto, desvela sua presença e sua função organizadora irredutível: o homem não cessa de ser um homem, não importa o que lhe aconteça, e não cessa de existir em relação a uma coletividade humana, inclusive na realidade bestial e mecânica. Ignorância da contradição e da intemporalidade: as características mestres de uma coisa inconsciente.

Cada um vive dessa certeza, mas todas as doenças do espírito humano não cessam de impedir que cada um esteja à altura das consequências dessa certeza.

Identificação sobrevivente: será que sua força advém precisamente do fato de sua extraterritorialidade, objetal e histórica? E por que Freud a refere, com tanta firmeza, ao pai da pré-história individual, a define como um referente paterno – ou parental, acrescenta Freud –, referente que podemos dizer anterior ao sexo, mas, então, anterior ao assassinato ou nascido do assassinato realizado?

Somente as referências à herança filogenética, à história da humanidade como parte intrínseca da história individual, podem dar conta da origem psíquica dessa identificação. Freud diz, em resumo, que nossa vida mental se organiza em torno de um polo: a referência paterna, a referência a um criador – representação de uma origem identificante impessoal, pré-histórica, pré-objetal. Fora da referência à construção freudiana da herança filogenética, somente uma causalidade religiosa, a de um criador divino, poderia dar conta da inscrição inconsciente desse traço comum. Longe de se tratar de especulação supérflua, a dimensão filogenética do inconsciente é indispensável para que se passe do registro do mistério revelado ao registro do questionamento da origem e das consequências dessa primeira identificação comum. E os próprios propulsores da evolução humana individual e coletiva, os próprios recursos de seu progresso eventual, são considerados de maneira radicalmente diferentes conforme se atribua a essa referência, a essa identificação, uma origem humana ou a uma origem divina.

Ao tratarmos do impacto psíquico do totalitarismo e do universo concentracionário no desenvolvimento possível da história humana, as categorias de Bem e de Mal estão inevitavelmente presentes. O ponto de vista religioso e o ponto de vista psicanalítico, para os quais o bem e o mal são intrinsecamente um assunto humano, não colocam as mesmas questões nem fornecem as mesmas respostas.

Em O futuro de uma ilusão, em Mal-estar na cultura, em Mais além do princípio do prazer, Freud advertiu sobre a incompatibilidade entre os fins de conservação da espécie e os fins pulsionais egoístas do indivíduo. O acontecimento histórico dos totalitarismos e dos universos concentracionários desvela que o interesse da espécie pode constituir para o indivíduo uma razão de ser impessoal, uma fonte libidinal de investimento de si ou, em outros termos, uma fonte fundamental de amor de si que extrai sua força não do narcisismo egóico depositário da história individual das ligações objetais, mas de uma participação narcísica direta no investimento de um fim comum inquebrantável.

O investimento de uma continuidade e de um devir da espécie, enquanto humana, constitui uma ancoragem narcísica que resiste às diversas formas de negação da especificidade humana.

Justo retorno ao reconhecimento da função guardiã libidinal do inconsciente, à sua função de conservação de uma propriedade geral da espécie humana, dos traços que ela depositou nele: o inconsciente individual não existe como autorreferência, mas sim, primeiro, por sua referência à coletividade; da mesma maneira, a coletividade não existe sem o investimento e a coesão advindas das células que a constituem. O indivíduo massivamente encurralado pela morte investe, para além de sua própria morte, um devir que o ultrapassa e do qual, mesmo morto, ele não deixa de fazer parte. Por causa dessa identificação que se poderia chamar de indissoluvelmente mútua, do indivíduo com a coletividade, e da coletividade no indivíduo, a pior das realidades permanece capaz de investimento, de nomeação, de transmissão, ainda que, nem por isso, ela se torne compartilhável.

E não apenas essa pior das realidades só foi reconhecida como tal porque a ligação impessoal ao devir humano resistiu ao objetivo de destruição que o visava, e o visava para todos. Mas foi exatamente essa ligação impessoal de pertencimento à espécie precisamente humana que obrigou os representantes individuais, aqueles que morreram, e aqueles que sobreviveram, e aqueles que nasceram depois, a carregar consigo esse desastre, a fazê-lo entrar na história cognoscível, se não inteligível. Essa realidade não pode mais se retirar do conhecimento coletivo; consequentemente, ele não pode mais cessar de carregar efeitos.

Como pode ou como poderia a ligação impessoal, a identificação sobrevivente, o que dela é transmitido para as gerações seguintes, o que dela se transmitirá para as gerações futuras, não integrar esse novo dado? Está doravante inscrito na ordem dos possíveis que o homem pode cessar de ser um homem a seus próprios olhos e aos olhos de um outro. E isso pode se dar não numa catástrofe individual, íntima, patológica, excepcional; isso pode se produzir de forma geral: o indivíduo “geral”, não importa de que categoria, pode ingressar na designação de objeto apagável, de objeto sem importância, submetido sem alternativa ao funcionamento de uma organização global criminosa, legitimada como tal, como uma sociedade organizada de assassinos para os quais o assassinato oferece uma mais-valia narcísica que os coloca fora da lei comum.

6/ Documentos – Método

É isto um homem, de Primo Levi, produziu em mim um efeito semelhante ao de A espécie humana. Nenhum dos dois livros dirige o pensamento do leitor para uma ‘compreensão’ dos acontecimentos. Seria ao mesmo tempo vulgar e redutor designá-los como crônica dos campos ou literatura do ‘testemunho’. Aliás, a extrema precisão dos relatos não nos dispensa de ler as obras dos historiadores”. [7]

Como conferir a essa nova categoria de escrita toda sua força, como avaliar sua função de fermento na evolução do espírito humano? Como fazer os leitores que tomam contato com essa escrita apenas por ocasião dos eventos literários compreenderem seu caráter de revelação única? Para cada um, essa escrita fala de uma experiência da morte, da morte definitiva, física e moral, a sua e a do outro, e de uma transgressão desse homicídio e da ultrapassagem desse homicídio pela Kulturarbeit que essa literatura realiza. É nisso que ela é única e que concerne a cada um. Siniavski diz de Chalámov: “ele escreve como se estivesse morto”. O “como se”, por mais inimaginável que seja, é, na verdade, excessivo. Algo está morto, matado em cada um, e para todos. É com essa parte de cada um e dessa parte em cada um que essas obras falam. É pela Kulturarbeit que realizam e é por aquela a que convocam cada um que o resto, o indestrutível do pertencimento à realidade humana continua existindo.

Nem ensaios históricos, nem documentos clínicos, nem relatos biográficos, nem obras romanescas, nem testemunhos no sentido de evidências de um crime, esses livros são uma obra exemplar da Kulturarbeit: a obra de um sujeito, de um autor, tocante nas palavras, sem trair as mortes que viveu, em sua própria carne e na carne dos outros, e colocando-as no nível de um pedaço de realidade comum dado a conhecer coletivamente. E esse conhecer, por sua vez, toca cada um em seu foro íntimo mais singular.

“Os Contos são minha alma, um olhar sobre cada coisa que me é inteiramente pessoal e, nesse sentido, única”. “Pois os Contos esboçam indivíduos em uma situação extrema que nenhum escritor jamais descreveu: aquela do homem nas fronteiras do transumano”. “E minha prosa fixa esse nada de humano que permanece no homem nesse estado”. [8] Nada mais de humano permanece, e um nada permanece, que é o mais humano.

Essa reflexão de Chalámov vale para cada uma das obras dessa literatura. Todas elas registram a existência desse nada de humano que permanece no homem de sua humanidade.

Uma exigência, uma imposição comuns ditam o estatuto particular dessa criação: que ela não traia os campos, o anonimato, a morte. E essa exigência leva à seguinte designação comum: o nada do homem resta indissoluvelmente relacionado com esse todo da humanidade, na medida em que condensa o passado e o futuro desse todo.

Esse nada que permanece do homem no homem, esse resto de relacional, é mantido vivo pela função impessoal da linguagem, capital libidinal constituído pela coletividade humana e que a constitui. “O escritor escreve na língua daqueles em nome dos quais ele escreve”, os mortos, “sob o risco de não ser compreendido por aqueles para os quais ele escreve”, os vivos.

Nesse nada do homem reside a “possibilidade de se apoiar em outras forças que não a esperança”.[9] É assim que essa literatura coloca “em evidência novas leis psicológicas no comportamento de um homem ou de indivíduos vivendo em condições inteiramente novas (ainda permanecerão humanos? Onde é a fronteira entre o homem e o animal?)”.[10]

“Estas leis psicológicas são irreversíveis, da mesma maneira que são irreversíveis os congelamentos de terceiro e quarto grau”. [11]

Certamente: “Não há História, o humano não acrescenta mais humano para si” (V. Grossmann). Sim, ele não se acrescenta, não se amplia; mas ele se escava. E essa raspagem de sentimentalismo e de fantasmatização literários faz aparecer, ao mesmo tempo, a desolação integral, a ferida irreversível – e algo mais, um algo vitalmente incrustado na existência do inconsciente.

“Através do objeto de delito da investigação (realizada pela literatura concentracionária), a nova prosa fala de esqueletos e de foras da lei nas fronteiras da existência, onde o único, o último sentimento, aquele que, segundo Chalámov, é o mais próximo dos ossos, é a maldade”. [12]

“Não há nada nos Contos que não seja triunfo do bem e vitória sobre o mal”.[13]

“Todo relato é um documento, um documento sobre o autor e, provavelmente, é essa qualidade que faz dos Contos de Kolymá uma vitória do bem sobre o mal e não o contrário”. [14] O avanço, a transformação, a vitória, se realizam pelo exercício do mais subjetivo obrigando-se a se tornar inteligível para outrem.

Avanço de citação literal em citação literal, propositalmente, para destacar, na reflexão que Chalámov faz de sua obra, seus pontos de articulação contraditórios, como convém, no relato de um sonho, quando se escuta com atenção igual e literal todos os pontos de vista do autor do relato. Sabemos que é no nó das contradições que se encontram, condensados, os diferentes movimentos dos pensamentos em vias de elucidação. Chalámov diz que “para o homem, o campo é uma experiência inteiramente negativa da primeira à última hora... O campo é uma escola de decomposição para todos”. [15] E, entretanto, ele diz que uma vitória do bem sobre o mal, uma travessia através do mal, ocorre pelo exercício ativo de um olhar, de uma fala inteiramente pessoais, que levam a experiência – única – do sujeito a um grau de verdade impessoal.

A transfiguração realizada pelos processos de criação, de Kulturarbeit, faz do documento-veredicto que testemunha a destruição um documento de ressurreição. No conto de Chalámov, Sententsia, esta palavra vinda de longe, de outra época, de outra cultura, jorra dos conteúdos coletivos do inconsciente, esta palavra sententsia interpreta o universo concentracionário de acordo com o que ele é, universo fora da lei e, literalmente, retira o sujeito do conto de seu estado de inconsciência, de morte já presente, devolve à vida o homem em quem surgiu esta palavra, recoloca-o em um universo humano regido pelas leis.

Essa forma de literatura realiza, através da obra única de cada autor, Robert Antelme, Charlotte Delbo, Primo Levi, Hermann Langbein, Varlam Chalámov, Evguénia S. Guinsbourg, uma interpretação violenta indispensável. Essa forma de literatura tem a força, a violência, a exatidão de uma interpretação. Ela introduz esse modo de realidade humana única e a apresenta ao capital filogenético comum. Age sobre esse capital comum como uma interpretação que, durante uma análise, faz os conteúdos do sistema inconsciente se encontrarem com os conteúdos pensáveis pelo Eu, através do que uns e outros se modificam.

7/ A vergonha

No fundo do homem: “a vergonha bem nossa conhecida”, “a que o justo sente perante o pecado cometido por outrem, e o atormenta que exista, que tenha sido introduzido irrevogavelmente no mundo das coisas que existem, e que a sua boa vontade tenha sido nula ou escassa, e por isso não valeria a pena defendê-la”.[16]

A vergonha é o efeito da violação infligida à figuração do homem aos olhos de cada um.

É uma forma de dor da qual ninguém escapa, quer saiba, quer ignore, quer se defenda disto, quer a projete para além de suas fronteiras sobre outros malditos. Essa dor da destruição da figura humana, essa derrisão feita das marcas narcísicas, esse estatuto de matéria impunemente degradável atribuída ao humano, a existência desse modo de ferocidade indiferente, fazem parte da história íntima de cada um.

Cada um ficou sem cara[17] e a coletividade humana ficou sem cara. A vergonha é o justo termo para dar conta dessa dor.

Ficar sem cara é uma dimensão de sofrimento da vida psíquica que não pode ser pensado exclusivamente como um evento “pessoal”, como um atentado identitário individual. Depende inevitavelmente das identificações inconscientes que a coletividade atribui ao individual; depende da maneira como a coletividade trata cada um e da maneira como essa coletividade é considerada e desconsiderada por cada um. A vergonha é uma ofensa de que ninguém pode se levantar sozinho. Por maior que seja o preço de cuidar, de pensar por si mesmo e pela coletividade, de dar a conhecer a extensão do acontecimento individual/coletivo, esse preço pago individualmente não é suficiente. A transformação da ferida pela obra individual levada ao conhecimento público exige da coletividade que ela também realize uma transformação coletiva. Bruno Bettelheim, Primo Levi se suicidaram, apesar de suas obras. A vida de Varlam Chalámov após seu “retorno” do gulag, quando se irritava e rompia cada vez mais com seus interlocutores, poetas e romancistas mais próximos, quando escondia debaixo de seu travesseiro as provisões que lhe traziam anos depois do fim de sua deportação, são fatos que testemunham que não há “retorno”, não há apaziguamento, e que uma ferida narcísica dessa natureza – infligida a cada um nas ligações que pode e não pode mais manter com os outros – não se cura individualmente. Num certo nível, em determinado registro, o sofrimento narcísico, todo sofrimento narcísico exige ser cuidado no indivíduo e, ao mesmo tempo, pela coletividade. A reparação desse dano depende necessariamente da obra solitária realizada por escritores, historiadores, defensores de direitos e juristas, compelidos a criar novos conceitos, como o de crime contra a humanidade. Mas é necessário ser mais exato: o trabalho realizado por aqueles que mudam alguma coisa na cena do mundo transformando o que lhes causou dano, este trabalho não pode ser tarefa apenas desses representantes individuais. Nem pode ser tarefa de uma entidade coletiva particular: dos alemães, de Israel, dos russos ou dos judeus. Esse trabalho é, ao mesmo tempo, aquilo que diz respeito a cada um na sua maior privacy e o que depende da evolução da coletividade.

Guardadas as devidas proporções, introduzir na linguagem cotidiana a designação de uma categoria de população segregada da convivência comum através de siglas como “recebendo benefício” ou “sem-teto” é sintoma de uma doença narcísica coletiva, de uma sociedade que só pensa em termos econômicos, que não resolve o que ela engendra e isola dos corpos estranhos, estrangeiros. Passar do registro de um conceito geral, de justiça ou de direito à saúde, para o registro do assistencialismo estatal ou associativo, testemunha uma regressão e a passagem do exercício de um princípio geral para o de condescendência humanitária. Como esse sintoma coletivo poderia se resolver através de ações exclusivamente isoladas? Mas como esse sintoma coletivo poderia ser tratado se ele permanece suprimido e ausente da relação de cada um consigo mesmo?

A resolução possível de um dano narcísico infligido pela coletividade a cada um não depende apenas dos recursos de cada um, depende do patamar alcançado (no caso, não alcançado) pela coletividade.

“O que poderíamos ter feito?” diziam as populações passivas submetidas ao totalitarismo.

O narcisismo primário não é de ordem identitária autorreferida, se autorreferindo. A raiz, a fonte pulsional do narcisismo primário está na identificação inconsciente, conteúdo coletivo, “propriedade geral dos seres humanos”, que se transmite, se enriquece, ou sofre com a história geral da humanidade. Esse narcisismo se nutre dos sentidos que essa história se dá a si mesma.

Podem desaprovar o fato de eu ter saltado, sem justificativas, da vergonha – que pertence ao registro de Eros – para a ferida narcísica. É exato e intencional. O destaque dado à dimensão narcísica, originária, sublinha que os fenômenos totalitários e concentracionários não dizem respeito, nem em suas origens, nem em seus efeitos, à colocação em cena dos avatares de Eros. Esses fenômenos se inscrevem em uma nova cena, para a qual as leis do funcionamento psíquico governado, ligado por organizações fantasmáticas inconscientes são impotentes e incapazes de dar inteligibilidade. Essa nova cena só pode ser esclarecida apelando a uma metapsicologia construída a partir do ponto de vista de Tânatos, que visa matar a ligação do humano com o humano.

É sabido que, em sua busca da psicogênese de certos modos do pensar psicótico, Piera Aulagnier foi levada a postular a existência de um registro do funcionamento psíquico, que ela chamou de originário, em que os eventos corporais-psíquicos se autointerpretam, sem referência a uma intencionalidade desejante terceira, diretamente, seja em pictogramas de fusão sob o signo de Eros-prazer, seja em pictogramas de rejeição sob o signo de Tânatos e do desprazer.

Evidentemente, não é para dar conta do universo totalitário que evoco essa concepção de originário de Aulagnier. A imensa utilidade dessa referência é a de tornar pensável o funcionamento de uma atividade pulsional de vida e de morte fora da ligação com a atividade fantasmática inconsciente, fora da interpretação em termos de organizações sadomasoquistas.

O universo totalitário e o universo concentracionário são formas de organização do instinto de morte. A violência da quebra realizada por essa época não consiste na vocação assassina potencial que se revelou para cada um. Nenhum regime de terror detém o poder absoluto de impor uma escolha obrigatória sobre aquele que se torna SS, torturador, assassino indiferente. Além disso, a criminalidade não está apenas no assassinato, e sim na invenção do que o assassinato e o terror pretendem realizar sobre o humano. A violência da quebra não revela uma criminalidade geral de que todos seriam potencialmente capazes e, por consequência, culpáveis. Cometemos um erro, um erro pesado a meu ver, quando consideramos a elaboração desse trauma em termos de culpa e de expiação. Isso seria fazer desses fenômenos um episódio de guerra particularmente feroz. Mas não é disso que se trata, ainda que se trate também de pulsões assassinas.

Não, essa violência é o dano causado à identificação constitutiva da coletividade humana, aquela que está dada, a cada um de seus representantes, como uma aquisição resultante do progresso obtido com uma enorme luta ao longo da evolução da história humana. É uma ferida que atinge o fundamento mesmo do narcisismo, lá onde o amor de si, Selbstgefülh, o sentimento de si, dependem vitalmente do valor libidinal que o humano como coletividade tem para si mesmo e que, por isso, ele pode oferecer como valor a ser investido no indivíduo.

Vergonha de quê? Não é nem a vergonha do exterminado, e por ele, nem a vergonha pelo exterminador que habitaria cada um de nós. Contudo, é a ferida infligida pelo próprio fato de que esses protagonistas tenham existido, qualquer que seja o lugar que tenham ocupado, vergonha da qual nem mesmo o lugar de vítima está isenta.

Essa vergonha é o signo manifesto, o signo revelador disso que os inclui em mim, disso que me inclui neles, do que atinge cada um por causa de uma ligação inconsciente com os outros, uma ligação de fato, uma ligação de base, e não uma aquisição moral secundária, uma aquisição de instâncias superegóicas.

Essa vergonha é um índice de sofrimento normal.

É também um sintoma que sinaliza a existência de um corpo estrangeiro, aquele do ódio assassino transformado em compromisso fracassado entre sua ultrapassagem e sua não transformação.

É o índice de que o humano continua doente de suas vontades de morte, do outro e de si.

É também índice da obrigação para com a tarefa psíquica a realizar, da exigência de evoluir.

Não são o recalcamento, a denegação, o revisionismo, a negação, todos estes processos defensivos existentes, que podem trazer alívio para a vergonha. Nem a expiação, o perdão, o esquecimento, as tentativas de reparação. Certamente, as vias religiosas, assim como todas aquelas que foram traçadas pela herança cultural anterior, fornecem vias de amparo, individuais e coletivos. Mas, considerando essas vias já traçadas, o acontecimento dessa forma de dano à figura humana exige, a meu ver, um tratamento ainda diferente.

Meu empenho foi o de conferir um estatuto e uma função para o que pode cuidar do dano – e não curá-lo, no sentido de anulá-lo: a obra individual-coletiva que realiza a Kulturarbeit por sua força de transformação da realidade humana.





[1] Zaltzman, N., De la guérison psychanalytique, capítulo 1. Paris, Ed. PUF, 1999, pg. 13-31.

[2] Freud, S., O mal-estar na civilização (1930) in Obras Completas, vol. 18. São Paulo, Ed. Cia. das Letras, 2010, p. 74.

[3] Freud, S., “Moisés y la religión monoteísta” (1939), in Obras Completas, vol. 23. Buenos Aires, Ed. Amorrortu, 1986, p. 127.Moisés e o monoteísmo” (1939), in Obras Completas, vol. 19. São Paulo, Ed. Cia das Letras, 2010, p. 181.

[4] Chalámov, V., “A chuva”, in Contos de Kolymá. São Paulo, Ed. 34, 2015, p. 57.

[5] Chalámov, V., Kolymá. Paris, Ed. Maspero, 1980.

[6] Freud, S., “O Eu e o Id” (1923), in Obras Completas, vol. 16. São Paulo, Ed. Cia das Letras, 2011, p. 28.

[7] Dominique, F., “Nous sommes libres...”, in Robert Antelme. Paris, Ed. Gallimard, 1996, p. 206.

[8] Chalámov, V., Tout ou rien. Paris, Ed. Verdier, 1993, p. 48.

[9] Ibid., p. 37.

[10] Ibid., p. 38.

[11] Ibid., p. 39.

[12] Loré, C., Prefácio a Chalámov, V., Tout ou rien. Paris, Ed. Verdier, 1993, p. 16.

[13] Ibid., p. 30.

[14] Ibid., p. 30.

[15] Loré, C., Prefácio a Chalámov, V., Tout ou rien. Paris, Ed. Verdier, 1993, p. 32.

[16] Levi, P., A trégua. Alfragide, Ed. Teorema, 2010, p. 13.

[17] Esta expressão não corriqueira em português, “ficar sem cara”, surgiu no século XIX, na língua francesa (perdre la face) e na língua inglesa (lose face), por uma tradução literal da expressão chinesa “tiu lien” que define a situação de ser ridicularizado e envergonhar-se, de ser apartado do grupo ou ser humilhado publicamente. Nesta situação vergonhosa, a polidez chinesa impele que se evite ou se esconda o rubor da face; eventualmente, que se “salve a cara”. (N. T.)




 
 
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