JANETE FROCHTENGARTEN[1]
“... que doce amargura dizer as coisas”...[2]
Pela primeira vez, ao menos na América Latina, um conjunto de psicanalistas reunidos em uma instituição, o nosso Departamento, realiza um evento para refletir sobre a potência destruidora da ditadura civil-militar em nosso país.
Assim aconteceu ...
No dia 30 de agosto grossas trevas desceram no auditório do número 1484 da rua Ministro de Godoy. Medo, expectativas tensas: nas cenas dramatizadas pelo grupo
Vagas Estrelas, fez-se a noite do dia 30 de março de 1964. Imerso na urgência das angústias reais vindas do mergulho ficcional, o público veio ao palco, co-encenou e re-encenou, emocionado e emocionando, no Psicodrama Público.
Entre intensidades, catarses e elaborações, inquietações engasgadas permanecem, à espera do outro encontro, convocado para saber se a Psicanálise teria o que dizer sobre os acontecimentos deste período e - se tivesse - o que diria.
Então...
Ao longo do dia 13 de setembro a Psicanálise, entre outras vozes,
disse.Memória e esquecimento foi o tema da mesa que constou de duas exposições; coordenando-a, escutei, junto a um público que, embora predominante
psi, também era composto por trabalhadores de centros públicos de atendimento em Saúde Mental.
Maria Cristina Ocariz, coordenadora da
Clínica do Testemunho no Instituto Sedes Sapientiae, iniciou sua fala inserindo o projeto destas clínicas no âmbito das iniciativas do Ministério da Justiça, através da Comissão da Anistia.
Caracterizando o específico deste trabalho clínico, Cristina diz: “escutar as pessoas que sofreram ou testemunharam as dores da ditadura; pessoas atingidas, direta ou indiretamente, pela violência cometida por quem deveria protegê-las: o Estado”. No eixo propriamente clínico[3] o que se busca, com o firme apoio no poder - alicerce da palavra, cerne ético da Psicanálise -, é que os que chegam para atendimento possam emergir da categoria de vítimas para serem considerados sujeitos, “sujeitos que dão
nome aos mortos, presos e desaparecidos”. E mais, que possam dar “significado às arbitrariedades catastróficas acontecidas durante a ditadura”. Clínica que busca restituir o que foi usurpado na escuridão das celas, na violência inominável da tortura: restituir a função simbólica da palavra. Clínica, portanto, que caminha na contramão do esquecimento, da apropriação da memória por aqueles que relatam a história oficial; clínica que investe na memória como o mais precioso recurso humano para se opor, resistindo, aos totalitarismos que insistem no esquecer.
Clínica, por último, que, em seu ineditismo, implica, com particular premência, que o psicanalista aceite o risco maior de ir criando e, criando, ir continuamente reconstituindo-se em sua escuta, em suas ações.
Moisés Rodrigues da Silva Junior, coordenador da Clínica do Testemunho do grupo dos
Projetos Terapêuticos, inaugura sua fala transportando-nos à nascente que desaguou em várias políticas públicas de resgate de memórias banidas pela ditadura; entre estas, a Clínica do Testemunho.... : “é a partir da compreensão do processo histórico político da anistia brasileira que a Comissão de Anistia promoveu uma ‘virada hermenêutica’ nas leituras usualmente feitas à lei de número 10.559/2002.....”. Qual o caráter desta virada? É o que resulta em duas premissas: a de que a anistia é concedida aos que foram perseguidos e não aos perseguidores, e, a outra, que reconhece o direito de resistência às arbitrariedades cometidas pelo Estado. Seguindo estas premissas, estão ações: as da Caravana da Anistia, que vem trazendo, em sessões públicas de julgamento, as vozes dos perseguidos; o Memorial da Anistia Política do Brasil, que guarda o relato das lutas, inscrevendo no social os legítimos ideais de toda uma geração, e as Clínicas do Testemunho, que buscam atender psicologicamente os afetados pela barbárie. Quais as sequelas mais encontradas que clamam por atenção? Índice mais significativo de psicoses; taxa de suicídios mais elevada; rupturas familiares frequentes, diminuição ou desaparecimento da capacidade laboral e doenças físicas graves. A considerar, também, a grandeza da dimensão do efeito transgeracional, pois o traumático impossibilita transmissão. Há muito e muitos a atender.
Na abordagem clínica do testemunho, Moisés privilegia os aportes de Ferenczi, psicanalista ímpar que nos legou riquezas incomensuráveis para a compreensão e para as possibilidades de tratamento do traumático. Neste legado, entre outras, Moisés considera especialmente a força destrutiva do
desmentido e, portanto, do destrutivo que é o não reconhecimento, pelo Estado perseguidor, de sua responsabilidade pelos sofrimentos atrozes que infligiu. “Reconhecimento, em primeiro lugar, é reconhecimento da vulnerabilidade, vulnerabilidade própria e na relação com o outro”.
A Clínica do testemunho: acolher o sujeito traumatizado, ajudá-lo a
se falar, é, assim, honrar o laço social, laço sem o qual nada somos.
“Quando eu soltar a minha voz, por favor, entendam
Que palavra por palavra eis aqui uma pessoa se entregando
Coração na boca, peito aberto, vou sangrando
São as lutas dessa vida que estou cantando...”[4]
Outubro/2014
______________________________
[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
[2] Fragmento do texto de Raduan Nassar em seu livro Lavoura Arcaica.
[3] pois há também o eixo da multiplicação/ capacitação de agentes executores e o eixo de pesquisa e formulação de referências teóricas para serem utilizadas por múltiplos profissionais.
[4] Parte da letra da canção Sangrando, de Gonzaguinha.