EM TORNO DO AUTORITARISMO LÍQUIDO NO SÉCULO XXI:
UMA CONVERSA COM PEDRO
SERRANO [i]
CRISTINA BARCZINSKI
SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO [ii]
A partir de uma reunião da comunidade Sedes, convocada por ex-alunos e
membros dos departamentos de psicanálise com o objetivo de pensar e agir
contra o fascismo, estabeleceram-se algumas linhas de atuação, como a de
criar formas de lidar com a violência no cotidiano. Pensando em iniciativas
que instrumentalizassem nossa análise do fenômeno do autoritarismo no
cenário político atual, o grupo barrar a violência entrou em
contato com o jurista Pedro Serrano, que desde 2007 estuda as novas formas
de autoritarismo no mundo e na América Latina, segundo ele de forma
intuitiva, o que trouxe por parte do grupo o desejo de compartilhar este
conhecimento por meio de uma roda de conversa ampliada.
Pedro Serrano agradeceu o convite e ressaltou o papel histórico do Sedes na
construção de frentes de resistência. Disse que seu estudo reúne as teorias
do Direito e do Estado e cita Norberto Bobbio, Boaventura Santos e Giorgio
Agamben como autores que também vêm se dedicando ao estudo das novas formas
de autoritarismo. Distingue períodos de governo de exceção, no século XX,
entre 1851, com o 2º estado de sítio de Luis Bonaparte, até 1989, com a
queda do muro de Berlim. Para ele, a modernidade criou como modelo de
Estado não só o Estado de direito como também o Estado de exceção. O segundo estaria calcado numa visão originária
dos séculos XVI e XVII de que o indivíduo deveria fazer prevalecer seus
interesses sobre os da coletividade, um indivíduo que Serrano define como
em constante guerra contra os outros. Garantir a segurança do homem contra
o próprio homem seria a função do Estado e com este propósito o chefe de
Estado não se submeteria ao contrato social. Já o modelo do liberalismo
burguês baseou-se na afirmação de que todos são iguais perante a lei e
apoia-se no pensamento protestante de que o soberano deve garantir os
direitos, do contrário se transforma num tirano. Segundo esta visão, se os
direitos estão garantidos, garante-se também a paz, e o valor principal do
estado liberal não seria a liberdade, mas sim a igualdade. O pensador John
Locke seria o principal representante desta secularização do pensamento
protestante, ao afirmar que existem os direitos naturais dados aos homens
por Deus: o direito à propriedade, à liberdade de consciência e de
expressão. Se o soberano não garante estes direitos básicos, ele pode ser
retirado do poder pelos legisladores em nome do povo, no direito à
resistência. Segundo Locke, o contrato social antecederia o Estado e o
soberano, tanto é que a função básica do Estado é a de garantir o contrato
social.
Todo totalitarismo, seja de direita, seja de esquerda considera o Estado
anterior ao contrato social, o Estado como uma substância anterior e
diferente do Direito. No Estado democrático, ao contrário, o Estado é
constituído pelo Direito, é um Estado constitucional. Se retiramos o poder
das constituições, o que sobra do Estado é a violência organizada. Serrano
exemplifica a visão autoritária com uma afirmação do juiz Sergio Moro de
que é necessário ponderar a regra que garante a todos nós o direito de que
só possamos ser condenados por provas lícitas, se esta regra colide com o
interesse público. Existe aí o pressuposto de existência de um direito de
punir do Estado que seria independente do próprio Direito. Porém segundo a
lógica liberal a Constituição e os direitos constituem e definem o próprio
poder do Estado. Portanto, neste tipo de fundamentação usado pelo juiz já
aparecem elementos do autoritarismo. Poderíamos pensar também que a
promessa feita com grande estardalhaço pelo presidente eleito de que irá
obedecer a Constituição, como se isto fosse alguma concessão, leva à
desconfiança de que esta desobediência seria considerada perfeitamente
aceitável. De novo, um Estado anterior ao contrato social.
No século XIX, consolida-se a Revolução Burguesa, em processo ao longo de
três séculos; na Inglaterra, deu-se um acordo entre burguesia e
aristocracia e na França, a repressão aos levantes dos trabalhadores, que
em 1848 assumem pela primeira vez um papel político, e o estabelecimento do
Estado de sítio por Luis Bonaparte em 1851, suspendendo os direitos
políticos, usando como justificativa a situação de emergência. Serrano
afirma que o Estado de exceção está para a política como o milagre está
para a teologia, quando ocorre a afirmação do poder soberano de Deus por
meio de um rompimento do estado natural das coisas. O Estado de exceção se
consolida a partir de uma ideia de guerra, na qual um Estado ameaça a
existência e a integridade de outro, o que justifica a suspensão de
direitos, que é considerada natural. No entanto esta justificativa pode se
transferir para outras situações, tal como a relação entre Estado e
sociedade, totalitariamente pensada como pura, homogênea e ordenada,
sociedade de “povo forte”. Neste contexto, criam-se grupos em guerra dentro
de um mesmo Estado, buscando a eliminação dos inimigos, que são
desumanizados. Em campos de concentração na época da 2a Guerra,
por exemplo, os prisioneiros perdiam os nomes e passavam a ser numerados.
Durante o período ditatorial no Brasil, os prisioneiros políticos eram
submetidos à tortura, não como forma de investigação, mas como método para
desumanizá-los. Hoje os defensores do totalitarismo criticam os democratas
ou os partidos de esquerda afirmando que estes dividem a sociedade. Porém a
diversidade é um pressuposto da própria democracia, a sociedade é mesmo
dividida em interesses conflitantes e é desejável que assim seja. A
liberdade e a pluralidade são importantes, a relação com o adversário
considera pontos de vista divergentes e estes são legítimos. Na democracia
busca-se hegemonia, não homogeneidade, admite-se o conflito de circuitos
afetivos mas mantém-se a civilidade entre os adversários. Já o combate com
o inimigo admite que o indivíduo se animalize, se barbarize, pois a
existência do inimigo assim o exige, é uma lógica da guerra. Nas SS, por
exemplo, se desejava o profissional, não o perverso, alguém que faria
barbaridades apenas por conta de um combate ao inimigo.
Depois do pós-guerra, com a criação dos Direitos Humanos, se estabelece uma
visão internacionalista do que seria uma sociedade civilizada, não importa
qual seja o partido hegemônico. Embora estes direitos não tenham um efeito
legal sobre os Estados, representam um consenso amplo por parte da
comunidade internacional e exercem força moral no sentido de denunciar
medidas de exceção. Se nos remetermos à 2ª Guerra, por exemplo, após o
incêndio do Reichstag, Hitler acusa os comunistas pelo ataque e usa isto
como pretexto para decretar o Estado de exceção com aprovação do Parlamento
e apoio do Judiciário, sem revogar a constituição. E assim, paradoxalmente,
as instituições democráticas podem ser usadas para acabar com a democracia.
No século XXI aparecem novas formas de autoritarismo e de subjetividade. O
ser humano passa a ser visto como empresário de si e a linguagem
empresarial passa a dominar a vida psíquica, configurando o casamento e a
família como sociedade comercial. Este novo mundo gera um autoritarismo que
Serrano denomina líquido, que não é adensado na figura de um
ditador. Não é propriamente um Estado de exceção, mas são medidas de
exceção, com conteúdo tirânico, no interior de um Estado democrático. São
normalmente medidas legislativas que fortalecem o executivo e o judiciário
na relação suspensiva dos direitos. Assim, até mesmo a tortura seria
admitida como método de exceção, num excesso normativo que desnatura a
própria concepção do Estado democrático e de cidadania.
Na década de 1980, aumenta o consumo de cocaína nos EUA, tendo México e
Brasil como distribuidores. O mecanismo adotado pelo Brasil foi o da guerra
às drogas, com o encarceramento em massa. Quanto mais se aprisiona, porém,
mais se fortalece o crime organizado. Os pequenos traficantes têm de aderir
ao crime para serem protegidos durante o tempo de prisão e assim a
violência aumenta cada vez mais. O crime organizado começa na década de
1970 como uma forma de defender os direitos dos presos, mas na década de
1990 adquire uma enorme força com o aprisionamento em massa. Os mecanismos
de defesa do acusado ficam muito fragilizados com o processo penal de
exceção no qual, por exemplo, a palavra do policial prevalece contra o
acusado num flagrante de posse de droga, o que não existia antes.
Atualmente temos a polícia que mais mata e morre no mundo e nossa taxa de
encarceramento vem subindo por volta de 7% ao ano, com uma proporção
crescente de jovens mulheres negras. Estas medidas mais intensas
desumanizam estas pessoas, que são vistas como bandidos e perdem os
direitos civis. Outras criminalidades passam a ser alvo destas medidas de
exceção e, embora os acusados passem por um processo que reproduz o Estado
democrático, com juiz, advogado, recurso, etc, na verdade todo mundo sabe
qual será o resultado. As investigações de exceção vão se expandindo para
todas as categorias e chegam às lideranças políticas e empresariais,
gerando uma onda de conservadorismo. Ocorre a produção de notas
sancionatórias através do uso de uma linguagem vaga, genérica, sem
segurança jurídica, de modo que aquilo que não era crime passa a ser.
Serrano analisa tecnicamente o processo de Lula, afirmando que não tem o
menor sentido, há apenas uma roupagem de processo penal mas com conteúdo
tirânico, comparável aos processos de Moscou do período stalinista. Todo o
processo fere questões mínimas de Direito e isto é reconhecido por
respeitados juristas estrangeiros. O que era aplicado àqueles que não
servem ao mercado, nem como exército de mão de obra de reserva e que a
necropolítica[iii] já vinha
eliminando, seja pela morte ou pelo aprisionamento do jovem negro pobre da
periferia, agora também pode ser aplicado aos políticos. Países desiguais
produzem mais violência e nisto o Brasil é acompanhado pelo México. O
Brasil não só é desigual, mas desenvolveu uma política de Estado que
aumentou enormemente a violência, há vinte anos. O processo autoritário já
vinha se formando, as pré-condições já estavam presentes, das quais o
fenômeno Bolsonaro é apenas uma densificação. Nossa sociedade está surda
para a ameaça representada pela intensificação do autoritarismo que se
anuncia, até mesmo os partidos de extrema direita no exterior lhe fazem
críticas e se defendem da acusação de fascistas afirmando que fascista é o Bolsonaro do Brasil. A mídia internacional também
alerta que a eleição Bolsonaro cria um paradigma que é uma ameaça ao mundo.
Embora possamos não ter uma ditadura como a do século XX, teremos um
aumento cada vez maior de medidas de exceção e de autoritarismo líquido.
Agora já se anunciam restrições ao direito de reunião, de expressão, de
manifestação política. Bolsonaro vai praticar o máximo de totalitarismo que
a política lhe permitir, a resistência coletiva é a única forma de impedir
o avanço deste processo. Pedro Serrano concluiu reafirmando que este
processo não é novo, a sociedade não acordou a tempo de barrar o
esvaziamento do Direito do processo penal que começou em relação ao
traficante e acabou se expandindo, desaguando numa onda autoritária. A luta
anti-corrupção resultante não extinguiu a corrupção e não passou de uma
estratégia perversa para eliminar opositores políticos, como em tantos
momentos passados na nossa história.
[ii]
Pela equipe editorial deste Boletim.
[iii]
No ensaio Necropolítica (Espanha: Melusina, 2011), Achille
Mbembe pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em
grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e
quem deve morrer. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a
mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de
poder.