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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    48 Novembro 2018  
 
 
MAL-ESTAR NA CIDADE

EM TORNO DO AUTORITARISMO LÍQUIDO NO SÉCULO XXI:
UMA CONVERSA COM PEDRO SERRANO [i]



CRISTINA BARCZINSKI

SÍLVIA NOGUEIRA DE CARVALHO [ii]




A partir de uma reunião da comunidade Sedes, convocada por ex-alunos e membros dos departamentos de psicanálise com o objetivo de pensar e agir contra o fascismo, estabeleceram-se algumas linhas de atuação, como a de criar formas de lidar com a violência no cotidiano. Pensando em iniciativas que instrumentalizassem nossa análise do fenômeno do autoritarismo no cenário político atual, o grupo barrar a violência entrou em contato com o jurista Pedro Serrano, que desde 2007 estuda as novas formas de autoritarismo no mundo e na América Latina, segundo ele de forma intuitiva, o que trouxe por parte do grupo o desejo de compartilhar este conhecimento por meio de uma roda de conversa ampliada.

Pedro Serrano agradeceu o convite e ressaltou o papel histórico do Sedes na construção de frentes de resistência. Disse que seu estudo reúne as teorias do Direito e do Estado e cita Norberto Bobbio, Boaventura Santos e Giorgio Agamben como autores que também vêm se dedicando ao estudo das novas formas de autoritarismo. Distingue períodos de governo de exceção, no século XX, entre 1851, com o 2º estado de sítio de Luis Bonaparte, até 1989, com a queda do muro de Berlim. Para ele, a modernidade criou como modelo de Estado não só o Estado de direito como também o Estado de exceção. O segundo estaria calcado numa visão originária dos séculos XVI e XVII de que o indivíduo deveria fazer prevalecer seus interesses sobre os da coletividade, um indivíduo que Serrano define como em constante guerra contra os outros. Garantir a segurança do homem contra o próprio homem seria a função do Estado e com este propósito o chefe de Estado não se submeteria ao contrato social. Já o modelo do liberalismo burguês baseou-se na afirmação de que todos são iguais perante a lei e apoia-se no pensamento protestante de que o soberano deve garantir os direitos, do contrário se transforma num tirano. Segundo esta visão, se os direitos estão garantidos, garante-se também a paz, e o valor principal do estado liberal não seria a liberdade, mas sim a igualdade. O pensador John Locke seria o principal representante desta secularização do pensamento protestante, ao afirmar que existem os direitos naturais dados aos homens por Deus: o direito à propriedade, à liberdade de consciência e de expressão. Se o soberano não garante estes direitos básicos, ele pode ser retirado do poder pelos legisladores em nome do povo, no direito à resistência. Segundo Locke, o contrato social antecederia o Estado e o soberano, tanto é que a função básica do Estado é a de garantir o contrato social.

Todo totalitarismo, seja de direita, seja de esquerda considera o Estado anterior ao contrato social, o Estado como uma substância anterior e diferente do Direito. No Estado democrático, ao contrário, o Estado é constituído pelo Direito, é um Estado constitucional. Se retiramos o poder das constituições, o que sobra do Estado é a violência organizada. Serrano exemplifica a visão autoritária com uma afirmação do juiz Sergio Moro de que é necessário ponderar a regra que garante a todos nós o direito de que só possamos ser condenados por provas lícitas, se esta regra colide com o interesse público. Existe aí o pressuposto de existência de um direito de punir do Estado que seria independente do próprio Direito. Porém segundo a lógica liberal a Constituição e os direitos constituem e definem o próprio poder do Estado. Portanto, neste tipo de fundamentação usado pelo juiz já aparecem elementos do autoritarismo. Poderíamos pensar também que a promessa feita com grande estardalhaço pelo presidente eleito de que irá obedecer a Constituição, como se isto fosse alguma concessão, leva à desconfiança de que esta desobediência seria considerada perfeitamente aceitável. De novo, um Estado anterior ao contrato social.

No século XIX, consolida-se a Revolução Burguesa, em processo ao longo de três séculos; na Inglaterra, deu-se um acordo entre burguesia e aristocracia e na França, a repressão aos levantes dos trabalhadores, que em 1848 assumem pela primeira vez um papel político, e o estabelecimento do Estado de sítio por Luis Bonaparte em 1851, suspendendo os direitos políticos, usando como justificativa a situação de emergência. Serrano afirma que o Estado de exceção está para a política como o milagre está para a teologia, quando ocorre a afirmação do poder soberano de Deus por meio de um rompimento do estado natural das coisas. O Estado de exceção se consolida a partir de uma ideia de guerra, na qual um Estado ameaça a existência e a integridade de outro, o que justifica a suspensão de direitos, que é considerada natural. No entanto esta justificativa pode se transferir para outras situações, tal como a relação entre Estado e sociedade, totalitariamente pensada como pura, homogênea e ordenada, sociedade de “povo forte”. Neste contexto, criam-se grupos em guerra dentro de um mesmo Estado, buscando a eliminação dos inimigos, que são desumanizados. Em campos de concentração na época da 2a Guerra, por exemplo, os prisioneiros perdiam os nomes e passavam a ser numerados. Durante o período ditatorial no Brasil, os prisioneiros políticos eram submetidos à tortura, não como forma de investigação, mas como método para desumanizá-los. Hoje os defensores do totalitarismo criticam os democratas ou os partidos de esquerda afirmando que estes dividem a sociedade. Porém a diversidade é um pressuposto da própria democracia, a sociedade é mesmo dividida em interesses conflitantes e é desejável que assim seja. A liberdade e a pluralidade são importantes, a relação com o adversário considera pontos de vista divergentes e estes são legítimos. Na democracia busca-se hegemonia, não homogeneidade, admite-se o conflito de circuitos afetivos mas mantém-se a civilidade entre os adversários. Já o combate com o inimigo admite que o indivíduo se animalize, se barbarize, pois a existência do inimigo assim o exige, é uma lógica da guerra. Nas SS, por exemplo, se desejava o profissional, não o perverso, alguém que faria barbaridades apenas por conta de um combate ao inimigo.

Depois do pós-guerra, com a criação dos Direitos Humanos, se estabelece uma visão internacionalista do que seria uma sociedade civilizada, não importa qual seja o partido hegemônico. Embora estes direitos não tenham um efeito legal sobre os Estados, representam um consenso amplo por parte da comunidade internacional e exercem força moral no sentido de denunciar medidas de exceção. Se nos remetermos à 2ª Guerra, por exemplo, após o incêndio do Reichstag, Hitler acusa os comunistas pelo ataque e usa isto como pretexto para decretar o Estado de exceção com aprovação do Parlamento e apoio do Judiciário, sem revogar a constituição. E assim, paradoxalmente, as instituições democráticas podem ser usadas para acabar com a democracia.

No século XXI aparecem novas formas de autoritarismo e de subjetividade. O ser humano passa a ser visto como empresário de si e a linguagem empresarial passa a dominar a vida psíquica, configurando o casamento e a família como sociedade comercial. Este novo mundo gera um autoritarismo que Serrano denomina líquido, que não é adensado na figura de um ditador. Não é propriamente um Estado de exceção, mas são medidas de exceção, com conteúdo tirânico, no interior de um Estado democrático. São normalmente medidas legislativas que fortalecem o executivo e o judiciário na relação suspensiva dos direitos. Assim, até mesmo a tortura seria admitida como método de exceção, num excesso normativo que desnatura a própria concepção do Estado democrático e de cidadania.

Na década de 1980, aumenta o consumo de cocaína nos EUA, tendo México e Brasil como distribuidores. O mecanismo adotado pelo Brasil foi o da guerra às drogas, com o encarceramento em massa. Quanto mais se aprisiona, porém, mais se fortalece o crime organizado. Os pequenos traficantes têm de aderir ao crime para serem protegidos durante o tempo de prisão e assim a violência aumenta cada vez mais. O crime organizado começa na década de 1970 como uma forma de defender os direitos dos presos, mas na década de 1990 adquire uma enorme força com o aprisionamento em massa. Os mecanismos de defesa do acusado ficam muito fragilizados com o processo penal de exceção no qual, por exemplo, a palavra do policial prevalece contra o acusado num flagrante de posse de droga, o que não existia antes. Atualmente temos a polícia que mais mata e morre no mundo e nossa taxa de encarceramento vem subindo por volta de 7% ao ano, com uma proporção crescente de jovens mulheres negras. Estas medidas mais intensas desumanizam estas pessoas, que são vistas como bandidos e perdem os direitos civis. Outras criminalidades passam a ser alvo destas medidas de exceção e, embora os acusados passem por um processo que reproduz o Estado democrático, com juiz, advogado, recurso, etc, na verdade todo mundo sabe qual será o resultado. As investigações de exceção vão se expandindo para todas as categorias e chegam às lideranças políticas e empresariais, gerando uma onda de conservadorismo. Ocorre a produção de notas sancionatórias através do uso de uma linguagem vaga, genérica, sem segurança jurídica, de modo que aquilo que não era crime passa a ser.

Serrano analisa tecnicamente o processo de Lula, afirmando que não tem o menor sentido, há apenas uma roupagem de processo penal mas com conteúdo tirânico, comparável aos processos de Moscou do período stalinista. Todo o processo fere questões mínimas de Direito e isto é reconhecido por respeitados juristas estrangeiros. O que era aplicado àqueles que não servem ao mercado, nem como exército de mão de obra de reserva e que a necropolítica[iii] já vinha eliminando, seja pela morte ou pelo aprisionamento do jovem negro pobre da periferia, agora também pode ser aplicado aos políticos. Países desiguais produzem mais violência e nisto o Brasil é acompanhado pelo México. O Brasil não só é desigual, mas desenvolveu uma política de Estado que aumentou enormemente a violência, há vinte anos. O processo autoritário já vinha se formando, as pré-condições já estavam presentes, das quais o fenômeno Bolsonaro é apenas uma densificação. Nossa sociedade está surda para a ameaça representada pela intensificação do autoritarismo que se anuncia, até mesmo os partidos de extrema direita no exterior lhe fazem críticas e se defendem da acusação de fascistas afirmando que fascista é o Bolsonaro do Brasil. A mídia internacional também alerta que a eleição Bolsonaro cria um paradigma que é uma ameaça ao mundo.

Embora possamos não ter uma ditadura como a do século XX, teremos um aumento cada vez maior de medidas de exceção e de autoritarismo líquido. Agora já se anunciam restrições ao direito de reunião, de expressão, de manifestação política. Bolsonaro vai praticar o máximo de totalitarismo que a política lhe permitir, a resistência coletiva é a única forma de impedir o avanço deste processo. Pedro Serrano concluiu reafirmando que este processo não é novo, a sociedade não acordou a tempo de barrar o esvaziamento do Direito do processo penal que começou em relação ao traficante e acabou se expandindo, desaguando numa onda autoritária. A luta anti-corrupção resultante não extinguiu a corrupção e não passou de uma estratégia perversa para eliminar opositores políticos, como em tantos momentos passados na nossa história.



[i] Esta fala está reproduzida integralmente em vídeo no site do Departamento de Psicanálise no link: http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/index.php?mpg=07.08.03&acao=ver&id=100&pg=

[ii] Pela equipe editorial deste Boletim.

[iii] No ensaio Necropolítica (Espanha: Melusina, 2011), Achille Mbembe pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.




 
 
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