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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    53 Abril 2020  
 
 
CRÔNICAS DA QUARENTENA

INÍCIO DE QUARENTENA [1]



Maria Carolina Accioly [2]



Quando escuto as pessoas falarem que estamos em guerra, me vem um frio na espinha ao pensar em quantas pessoas ainda vão morrer, pensar nos hospitais lotados de doentes, na decisão horrível que médicos precisarão tomar sobre aqueles que serão deixados para morrer e quais serão entubados, nos enterros esvaziados, no quanto a desigualdade social vai ficar ainda mais gritante e perversa.

Um vírus é uma forma de vida simples, não é bom ou mau, não tem moral, é uma forma de vida que apenas vive... e pode nos matar. O vírus nos mata porque somos também uma forma de vida (mais complexa e com ou sem moral) e podemos morrer, e ainda não descobrimos a vacina e a cura, provavelmente descobriremos em breve (com mais investimento no que importa).

Esse vírus nos coloca em contato com o Real da vida-morte, nos deixa mais humildes e quem sabe mais solidários. Ele nos mostra o óbvio - que armas letais e a bolsa de valores não respondem à vida e à ética e muitas vezes só agravam as lutas humanas. E nos mostra que governantes precisam ser competentes, sérios e dignos da posição que ocupam. Que mesmo uma sociedade liberal (neoliberal) precisa de um Estado forte em saúde, pesquisa, educação, cultura. Que essas são áreas sempre públicas (mesmo quando têm participação de instituições privadas, são áreas públicas, porque tratam do que é coletivo, do que engloba e afeta a todos).

E no meio de tanta tristeza encontramos poesia nos detalhes. Ontem depois de algumas horas de trabalho no quarto (na nova agenda de trabalho que todos tivemos que inventar) fui fazer almoço e ficar com as crianças e cuidados com a casa. E então as crianças me pediram ajuda numa lição que a escola enviou, e aí eu queimei a lentilha. Mas salvei o arroz o peixe e o espinafre e estava bom. E quando acabei de arrumar a cozinha já era a nossa hora de tomar sol, porque em apartamento temos que aproveitar o momento que bate sol na varanda. E agradecer a sorte de ter um cantinho de sol. E isso é triste. Mas também tem uma beleza. Uma beleza triste. E fomos ler na varanda, e alongar o corpo no sol. Sem pressa e sem cobranças.

E assim começamos a aprender juntos de fato algo que vamos lembrar e carregar no nosso corpo e alma para sempre, a viver mais no ritmo do encontro e do sol e menos no ritmo da produção e do mercado.

E que, para atravessar esse período, o caminho que estamos desenhando por aqui é nos conectar uns aos outros nesse outro ritmo. Vejo as pessoas tentando manter o mesmo ritmo, como se as plataformas on line pudessem substituir da mesma forma os encontros, as reuniões, os atendimentos, as aulas... mas não podem. Teremos perdas. E vamos aproveitar essas plataformas de todas as formas, para escutar os nossos pacientes, para trabalhar com os colegas, para aprender a coreografia de dança que as professoras lindas mandam gravadas, para fazer um drink com as amigas virtualmente, para as crianças verem os avós, sim, vamos aproveitar. Mas não é a mesma coisa. Porque precisaremos sair das telas e respirar, e observar a vida ao nosso redor. Será preciso um novo ritmo e - quem sabe - um novo pacto social a ser sonhado por nós.

E eu não vejo a hora de abraçar as outras pessoas que eu amo e não moram aqui comigo. E que sorte que tenho essas pessoas aqui para abraçar hoje.

Vamos nos cuidar uns dos outros e sermos mais solidários com os mais frágeis.





[1] Publicado originalmente no Facebook.

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante do GTEP (Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise).




 
 
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