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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    55 Setembro 2020  
 
 
PSICANÁLISE E POLÍTICA

TRAUMA E CONTEMPORANEIDADE [1]



Um escrito que reflete sobre manejos clínicos de emergências psicológicas, considerando possibilidades de atenção precoce para que as situações traumáticas não se configurem necessariamente em neuroses traumáticas .

LUCÍA BARBERO FUKS [2]



Através de diversos caminhos ou encadeamentos causais, como a piora das condições de vida, o desemprego, o esvaecimento do futuro e de projetos coletivos e individuais, o pragmatismo e a exaltação das saídas imediatistas, a ruptura dos laços de solidariedade, a impunidade generalizada visível na cena pública, etc., tem se produzido um aumento generalizado da violência. Tal aumento une-se ao paradoxo de uma crescente sensação de desproteção, que, por sua vez, associa-se a uma certa banalização que faz com que as pessoas reajam com menos horror à situação de conjunto e com maior atenção aos episódios truculentos transmitidos por programas informativos sensacionalistas.

A vítima individual da situação de violência, ou cada vítima de um conjunto afetado, considerada isoladamente, tende frequentemente a viver a situação como um drama estritamente individual, considerando-se uma vítima do destino ou, pior ainda, de sua própria irresponsabilidade por ter saído de casa, ter-se exposto em excesso, etc. O trabalho de prevenção permite atuar de modo a desculpabilizar o indivíduo, à medida que torna possível uma consciência individual e coletiva do conjunto da problemática.

Os estudos sobre os lugares em que são frequentes os acidentes demonstram que esta frequência não é acidental. Convocam dessa maneira os diversos atores em jogo para encarar sua análise, e a consciência progressiva coletiva permite arbitrar as medidas de prevenção. O conhecimento dos efeitos traumáticos destas situações deveria incluir-se dentro dessa tomada de consciência para poder operar melhor o atendimento posterior.

Cada sociedade está acompanhada de sua própria cultura da violência. Os limites e as transgressões dentro de uma sociedade são interdependentes, influindo-se reciprocamente. Esta interdependência desempenha um papel importante na sexualidade, na criminalidade e nas formas de agressão permitidas ou rechaçadas.

A agressão é uma emoção ubíqua, independentemente do fato de que há tantas maneiras distintas para sua transformação, sua contenção ou sua realização pelas pessoas. Onde quer que seja que a agressão se transforme em violência, nela estão envolvidos, entre outras coisas, o ódio e as dificuldades para o processamento das diferenças associadas com a alteridade.

Quero referir-me aos efeitos traumáticos que ocorrem depois de situações de violência, imprevistas, que, como sabemos, passaram a fazer parte, cada vez mais, de nossa vida cotidiana. Em um contexto absolutamente corriqueiro (ir ao banco, sair do cinema à noite, de um supermercado, etc.) pode nos aguardar uma situação de violência que tem possibilidades de desencadear um processo de neurose traumática.

Em que isso consiste? Em síntese, consiste em confrontar-se com a morte de forma imprevista. A sensação de perigo e de impotência, misturada à falta de sentido da situação leva a uma crise egoica. Assinalo o sem sentido da situação porque, em outros contextos (guerra, guerrilha, defesa de lugares ocupados), o perigo também existe, mas, nestes casos, faz parte da lógica própria da situação, encontrando-se o psiquismo mais preparado para se defender.

Poderíamos falar de prevenção primária da situação traumática, considerando a possibilidade de inserção do indivíduo em uma sociedade mais justa e menos sujeita à violência. E também em prevenção secundária, uma vez que o indivíduo já passou pela situação traumática; esta consistiria em realizar uma intervenção o mais precocemente possível a fim de evitar que se estruture o quadro de “neurose traumática”, com sua sintomatologia repetitiva e invalidante.

Em 1918, no Congresso de Psicanálise de Budapeste, o conceito de neurose traumática tomou forma a partir da guerra e de sua relação com o traumatismo psíquico (Lafont, 1998, p. 18). Hoje está novamente atualizado, através das situações de catástrofe, dos acidentes da vida urbana, das agressões e da violência sexual. A neurose traumática de guerra não desapareceu.

Freud (1920) diz que um impacto é traumático quando surpreende o sujeito, sem existir um estado de angústia prévia, apresentando-se uma vivência de pavor ou de susto ligado a um sentimento de impotência e de desamparo frente a um perigo que não poderá ser evitado ou dominado. A angústia, que estava ausente no sujeito no momento anterior, é concebida como tendo uma capacidade de antecipação; é a angústia “diante de” que prepara o sujeito para uma defesa. Nesse sentido, a ausência de angústia é ausência de preparo.

A primeira coisa que os pacientes tentam fazer para sair de um estado inicial de desorganização psíquica é estabelecer um sistema de nomes destinado a conter, regular e situar esse perigo indizível: “tenho medo de baratas, de exames, intranquilidade pelo funcionamento cardíaco”, etc. A reação não é só de um organismo, mas de um sujeito cujo sistema de representações e de linguagem deve ser considerado porque será o mediador indispensável de todo trabalho terapêutico.

A noção de acontecimento implica uma relação entre o fato e o sujeito ou a sociedade que se encontram confrontados entre si. São as consequências do acontecimento que lhe conferem suas qualidades, sendo a principal a de permanecer na memória. Um acontecimento tem dois períodos: o antes e o depois. Isso define um conjunto de posições subjetivas que vai desde o desencadeamento psicótico, no qual predomina a dimensão imaginária, até a patologia neurótica, na qual o acontecimento leva um significado simbólico.

O acontecimento, quando é traumático, não se situa em nenhuma dessas categorias. Nenhuma dá conta daquilo que o sujeito enfrenta de forma brutal: o encontro com a morte – sua morte – que escapa a toda representação. A eventualidade mais clássica é a presença de um acontecimento que ameaça brutalmente a vida do sujeito.

Um atentado, uma agressão ou o fato de ser tomado como refém são exemplos de acontecimentos cujo alcance traumático é intenso pela razão de virem a romper subitamente o curso habitual da existência e colocarem o sujeito frente a um perigo vital para o qual não tinha preparo algum.

A noção de surpresa é significativa da natureza traumática de um acontecimento. Devemos considerar também que, nas situações de guerra declarada, a “surpresa” pode não ser tanta. Entram em consideração fatores que não são exclusivamente externos. Estes representam uma oportunidade na qual se estabelece uma relação direta com a morte.

A surpresa se caracteriza, assim, por se estar frente a uma realidade que nenhuma representação permitia antecipar. O termo ruptura é o que melhor se aplica à violência disruptiva desse encontro.

Um mesmo acontecimento pode não comportar a mesma carga traumática para todos. As reações podem ser bem variadas, indo desde manifestações de pânico, ansiedade, reações depressivas e crises histeriformes, até estupor e manifestações psicossomáticas. Em alguns indivíduos verificam-se, entre as consequências imediatas ao acontecimento, certos transtornos agudos consideráveis.

A partir da clínica destes estados agudos inicia-se uma estratégia de ações no lugar do fato (desabamentos, catástrofes, acidentes, atentados, etc.) que vão se desenvolvendo cada vez mais. A assistência psicológica, associada à atenção de emergência no local, está se divulgando bastante. Os transtornos agudos vão regredindo e desaparecem depois de algumas semanas.

O fato de se chamar de latência este período não significa que ele seja totalmente silencioso. Os estados depressivos, a euforia paradoxal com hiperatividade e as somatizações são indícios disto. O que falta é a marca específica reconhecida como síndrome de repetição traumática (Lafont, 1998, p. 21). O período mudo já está marcado pela fixação ao acontecimento traumático. Nesta etapa são acionados dispositivos de investimentos de energia que se organizam em torno do traumatismo inicial.

Estes “paliativos” sustentam um equilíbrio que pode se desestabilizar. E a desestabilização, por sua vez, aparece quando o indivíduo é confrontado com uma situação que lembra, por analogia, seu próprio encontro traumático. Às vezes esta analogia é evidente.

Um outro traumatismo pode desempenhar essa função desencadeante: um luto ou situações atuais que impliquem fatos similares. A relação aparece mais indireta, menos objetiva, mais articulada com a história própria do sujeito quando se trata de um acontecimento de ressonância afetiva (separação, perda do trabalho ou até acontecimentos triviais).

Mas todos esses fatos têm algo em comum: remetem o indivíduo a uma experiência de ruptura, de fracasso ou de rejeição, e desestabilizam os dispositivos organizados ao redor do traumatismo, o que nos permite entender por que o tempo de latência é tão variável.

A relação dos pacientes com seus sintomas é complexa. Para algumas pessoas, ter sintomas pode ser uma consequência “natural” depois das experiências vividas, enquanto, para outras, representa a expressão de uma vulnerabilidade que pensavam não ter. A última posição é frequente entre aqueles que trabalham em grupos de excelência (Cruz Vermelha, socorristas profissionais, combatentes em missões especiais, etc.). Eles trazem para nós a “face oculta” do traumatismo, desvelada no momento em que um socorrista pode ficar estupefato a ponto de ver-se impedido de atuar com eficácia e salvar uma vida.

O traumatismo significa o indizível, o irrepresentável, a vergonha e a culpabilidade. Por isso, a consulta muitas vezes se produz por motivos tangenciais. Em muitos desses pacientes coexiste um estado de exceção, que pesa sobre eles em razão da frequente inscrição destes acontecimentos na atualidade “midiática”. Em um primeiro tempo privilegiam a versão jornalística, conhecida por todos, na qual toda referência e experiências pessoais estão ausentes.

No início o trabalho terapêutico com esses pacientes consistirá na formulação dessa experiência pessoal e, além disso, na formulação das modalidades de inscrição do traumatismo dentro da história pessoal. A reticência do paciente pode se encontrar com a resistência do terapeuta para ouvir o horror. Depois, é o fascínio deste último junto com o do paciente o que constitui uma das maiores dificuldades, que pode fixar a relação na repetição indefinida do mesmo relato.

O sonho de repetição traumática reproduz o acontecimento nas mesmas condições de local, pessoas e situações, e perturba o sono, mergulhando o paciente em um estado de angústia. Mais do que uma reprodução, trata-se de uma repetição, ou seja, de “reviver” a cena inicial, não só no plano perceptivo, mas também no afetivo. Podem-se observar verdadeiras suspensões do estado de consciência, os chamados flashbacks, durante os quais as imagens da cena traumática impõem-se ao sujeito, acompanhadas por seu conteúdo afetivo.

A ruptura traumática é produzida pelo susto, às vezes de forma muito breve (décimos de segundos), às vezes de forma prolongada (estado de petrificação, de estupefação, de dissociação). O estresse e a angústia invadem o sujeito só de forma secundária e tornam-se, nesse caso, a manifestação clínica mais evidente das consequências pós-imediatas do traumatismo.

Devemos considerar três etapas da ação psicológica características deste quadro:
1. o horror do acontecimento invade a consciência de um sujeito completamente desconcertado;
2. desenvolve-se uma reação psíquica contra este “corpo estranho interno” e se coloca o problema de saber o que fará com ele, o “traumatizado”;
3. quando está constituída a neurose, trata-se de dar ao sujeito a oportunidade e a possibilidade de questionar o “acerto” com o qual consegue satisfação, apesar do seu sofrimento, e de afastar-se da fascinação que exerce sobre ele a imagem traumática.

A atenção imediata

É interessante, sempre que se faz possível, intervir nos minutos ou nas horas que seguem ao traumatismo. É mais fácil que o atendimento se dê desta maneira nas situações de guerras, acidentes ferroviários, colisões entre veículos, etc. É menos fácil na vida civil, embora na França tenham sido implementadas, em 1995, as “células de emergência médico--psicológica” (Lebigot, 1998, p. 62), por meio das quais essas intervenções imediatas começaram a se organizar. Este dispositivo de emergência originou-se com atendimentos após atentados na rede de metrô de Paris.

O mais importante nesta prática é estabelecer com a vítima um vínculo de fala, propondo-lhe que ponha em palavras a experiência que acaba de viver. Falar com alguém nesse momento já implica tomar um pouco de distância das imagens de horror que produziram marcas no aparelho psíquico. Falar com alguém é, também, segurar-se no mundo dos humanos – a “comunidade dos vivos” – e escapar, dentro do possível, ao poder de atração do horror e da morte.

A atenção imediata sempre é útil: por um lado atenua o sofrimento atual e pode prevenir comportamentos que agravariam a depressão como, por exemplo, isolar-se e abandonar-se em um estado de total desamparo. Por outro lado, permite ativar um movimento de evasão que, a partir de então, ajuda o sujeito a não se constituir totalmente em prisioneiro da cena de horror que acaba de viver.

A experiência mostra que este primeiro encontro, no lugar do acontecimento, facilita os passos terapêuticos subsequentes. Indica também que a vítima, ainda que pareça ter-se recuperado rapidamente do choque imediato, procurará, nos dias seguintes, o terapeuta que viu naquele momento.

A atenção pós-imediata

A atenção pós-imediata é a etapa decisiva no tratamento, prova de que a precocidade da atenção é o principal elemento que determina seu êxito. Em geral, três, quatro entrevistas, ou mais, permitem que o sujeito se livre do domínio da repetição, presente ou por vir, e veja diminuir a sua angústia. Esta atenção tem lugar entre 1 a 5 dias subsequentes ao acontecimento. Às vezes, quando os transtornos aparecem de forma diferenciada, pode-se tentar fazer um trabalho similar no caso de surgir a síndrome de repetição. O acontecimento é o primordial, e seja de modo privado, seja durante um trabalho de elaboração coletivo, deve-se tentar voltar a percorrer com o paciente todo o desenvolvimento dos fatos, as emoções sentidas e os pensamentos que surgiram

em determinados momentos. Nada deve permanecer na sombra, visto que aquilo que se tem que desvendar não é o “real”, mas o que o sujeito fez com “isto”.

As digressões que o paciente faz são valiosas, à medida que demonstram que o processo associativo está em marcha e que a imagem traumática traduzida por “esse corpo estranho interno” começa a estabelecer vínculo com as representações do inconsciente.

Quando o traumatismo não foi demasiadamente maciço, violento ou prolongado e o sujeito não se encontra muito desestabilizado, algumas entrevistas podem ser suficientes para liberá-lo do domínio do trauma. Este não será esquecido: apenas terá as características de uma lembrança. Em alguns casos deve-se realizar um trabalho mais longo e difícil, que não se diferencia de qualquer psicoterapia de um sujeito neurótico.

O simples fato de “desculpabilizar” os sujeitos não serve de nada, podendo, inclusive, favorecer o estabelecimento de um silêncio. Esse “sentimento de culpa” deve poder ser expresso, o que é uma boa forma de aliviá-lo. E, se se dá início a trabalho terapêutico, veremos que é graças a ele que a vítima poderá sair desses traumas (Lebigot, 1998, p. 64). Frequentemente o sonho que fecha o tratamento de uma neurose traumática é um sonho de tribunal, em que o sujeito aparece como culpado. No decorrer do trabalho surgem, ainda, sonhos nos quais não aparecem mais imagens da cena: esta aparece relatada por algum personagem.

A atenção tardia

A atenção tardia, em geral, é mais complicada. A neurose traumática já está instalada, e a fascinação pelo trauma vence o horror. O que o paciente pretende, nesse momento, é encontrar uma ajuda para viver “com isso”.

Trabalhando como supervisora no Ambulatório do Estado de São Paulo, na cidade de Diadema, verifiquei que frequentemente surgiam, no grupo de profissionais, discussões referentes ao papel do psiquiatra e do psicólogo frente às situações de emergência. Ficava claro, então, que, tanto para o psiquiatra quanto para o pessoal administrativo, era fácil determinar o conceito de emergência psiquiátrica (surto, crise de violência, alcoolismo agudo), mas, quando se pensava na emergência psicológica, tudo parecia mais difícil. Daí a queixa dos psiquiatras frente aos colegas psicólogos de que, para os últimos, tudo era mais fácil, visto que sempre tinham o trabalho agendado.

Começamos a pensar, então, na formulação do conceito equivalente de emergência psicológica, a partir da pressuposição de que tal conceito poderia ajudar a implementar os atendimentos. A ideia, em síntese, seria a de poder ajudar a população que vive em situação de risco, aumentando suas potencialidades para lidar com a mesma, além de propiciar o reconhecimento de limitações que inibam a procura de ajuda, como certas autoexigências restritivas tais como “lidar com coragem”, “não se deixar vencer pelo medo”, etc.

Toda situação traumática deve poder implicar os outros, envolvendo instâncias coletivas de diversos tipos. Isso tem sido enfatizado por todos os que se enveredaram por este tema. E, para nós, adquire hoje um valor especial, não como utopia, mas como horizonte desejável e possível pela gratificação resultante de uma luta comum e solidária contra múltiplas adversidades, algumas delas incrementadas e agudizadas ao máximo pelo mundo neoliberal.





[1] Apresentado no II Fórum Social Mundial (Porto Alegre, 31 de janeiro a 5 de fevereiro de 2002). Publicado em Narcisismo e vínculos (Casa do Psicólogo).

[2] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde é professora do Curso de Psicanálise e co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.




 
 
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