HELENA FONTES [1]
A primeira aula aconteceu em 10/03/2020, como esperado, no auditório do Sedes Sapientiae e reuniu duas turmas do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea, uma estava começando o 2ª ano, outra, começava o 1º ano. Até aqui, as coisas seguiam o rumo projetado.
Uma semana depois, algo também esperado, porém muito indesejado, aconteceu: a contagem crescente de pacientes e mortos pela COVID-19 paralisou o andamento do curso. As inquietações rapidamente ocuparam o lugar das expectativas e o cronograma de aulas foi substituído por um grande ponto de interrogação.
Claro, não apenas o curso, mas os planos e a rotina de cada uma das pessoas que se reencontraram ou se conheceram no auditório do Sedes dias antes, foram bem afetados.
Dias depois, chegou a notícia de que seguiríamos o curso por meio de uma plataforma digital e a interrogação: será que continuamos? foi trocada por outra: será que isto vai dar certo?
Depois destes dois acontecimentos externos, veio a vez de um acontecimento interno: aula a aula fui sendo contagiada – não pelo coronavírus – mas pela receptividade do grupo à nova situação. Era um grupo formado por pessoas que eu desconhecia, mas que apoiaram a iniciativa do Sedes com entusiasmo e demostraram fortemente o desejo de seguirem juntas.
Além do mais, várias outras formas de convívio social estavam substituindo espaços reais e tridimensionais ocupados por corpos pelos espaços virtuais e planos ocupados por imagens. Por que não aproveitar o momento para experimentar esta outra maneira de estudar em grupo? De aprender novos conhecimentos e, simultaneamente, aprender novas dinâmicas de aprendizagem?
Aula a aula, a dúvida e a inquietação foram cedendo território para a confiança. Semana a semana, os rostos e/ou os nomes escritos em um quadrado preto, entravam em minha casa e, na tela do computador, formavam uma espécie de gibi eletrônico.
Mas as personagens foram saindo do gibi e – não sei precisar quando – elas ganharam veracidade; seus nomes e rostos deixaram de ser ficções. Elas se materializaram como pessoas e, vejam só: cada uma delas tinha muitas histórias para trocar com as outras! Tudo se passou como se um sonho de criança virasse realidade.
Bem, algumas coisas fazem falta, por exemplo, os cochichos ou bilhetinhos trocados com colegas, para mim, perdem sabor quando trocados no chat privado ou público. As conversas na chegada e no intervalo...
Muitas vezes, nos sentimos próximos da exaustão por estarmos obrigados a horas seguidas numa cadeira diante de uma tela, dia após dia. É a nova rotina com suas exigências e dificuldades.
Outras coisas irritam: as recorrentes quedas ou falhas de conexão roubam a força de minha paciência.
Nas horas de desânimo – que certamente também existem nas atividades presenciais – busco no deus tempo ajuda para resolver a situação. É preciso tempo para dominar os recursos tecnológicos, para acostumar-se a ver o próprio rosto na tela (às vezes não dá para ocultá-lo), para aquietar ansiedades, para descobrir como criar e manter novas amizades etc.
É aconselhável dar ao tempo, tempo para que as frustrações e as incompreensões que mudanças abruptas sempre trazem à tona sejam metamorfoseadas em esperanças e obras dignas da existência e dos esforços humanos.
Ao longo destes meses, as pessoas do grupo – agora uma verdadeira turma – foram se apresentando, revelando seus gostos musicais, cinema, artigos de opiniões, indicações de literatura...
E as lives! Sim as lives! Elas viraram um ponto de encontro e de socialização. Ah encontrei [...] na live do Daniel Kupermann, [...] na de Fernando Urribarri, [...] na do Arnaldo Chuster e...
E houve, entre outras, uma noite especial trazida por professoras/es; nela refletimos sobre os efeitos da COVID-19, o momento sociopolítico e coisas assim. Aos poucos, os sentimentos de cada uma/um, ocuparam o espaço – não da tela – mas aquele que efetivamente reunia as duas turmas (1º e 2º anos) novamente.
Assim ajuntados, pudemos nos conhecer um pouco melhor. As turmas, os professores e o coordenador que se encontraram no auditório do Sedes em 10/03/2020 estavam novamente reunidos. O Zoom nos possibilitou um zum-zum-zum memorável, bem agradável e acolhedor.
Estou na turma do 1º ano e aproveitei para conhecer um pouco mais a turma do 2º ano. Me lembrei dos tempos em que, menina, sentia curiosidade de conhecer as/os alunas/os dos cursos mais adiantados – o que será que eles estão estudando etc. Senti que, de fato, formávamos turmas universitárias, preocupadas com o que está acontecendo, desenhando soluções possíveis e algumas utópicas.
Juntas/os lembramos que humanos, demasiadamente humanos, somos vulneráveis às vicissitudes e que, não raro, o controle de si e das circunstâncias escapa de nossas mãos.
Durante as reflexões desta noite sobre a COVID-19 e cia., recordamos que o medo da morte está sempre conosco e nos perguntamos: o que fazemos para enfrentá-lo? O que podemos fazer para atenuar a dor que vemos neste cenário caótico de pandemia e de quase horror na política?
O que podemos fazer para seguir em frente, apesar das nossas próprias insuficiências e limitações? Para não chorar antes de apagar as luzes para dormir?
Um dos artifícios mais usados por toda gente é viver um dia de cada vez: anestesiando a percepção da dor ou do fracasso; encobrindo a angústia com uma ingenuidade forçada ou em um processo de vitimização; criando sensações de vitória diante do simbólico “pequeno medo de morrer” que mascara o medo real da morte concreta.
De repente, Lenine “aparece” cantando Paciência e o sentimento de comunhão veio com a música; alguns “dançaram” em suas cadeiras. Foi bonito de ver e gostoso de participar.
Sai com a sensação de que estamos aproveitando bem a oportunidade criada pelo curso de nos conhecermos e estudarmos junta/os certas coisas que são importantes para aplicarmos na clínica e onde mais pudermos.
Como em outras vezes em minha vida, sinto-me aconchegada na visão que Spinoza tem da realidade: todas as coisas lutam para persistir em sua própria existência.
Este modo de compreender a existência sugerida pelo filósofo nos ajuda a enfrentar com criatividade, coragem e humanidade as consequências da pandemia que, ao que tudo indica – ainda estão longe de acabar.
O conceito espinosano de conatus - expresso acima - nos faz enxergar uma potência que atua no âmago de cada pessoa e que a capacita a lidar com infortúnios, entre eles, a inevitabilidade da morte – que a COVID-19 trouxe à tona.
Até agora, oito meses foram dados ao tempo; diversas transformações ocorreram dentro e fora de mim e, creio, de toda gente.
Afortunadamente, outros meses ainda virão e – sem abandonarmos o gibi acima –quero também reencontrar a todas/os nas salas de aula, na cantina, nos corredores e na biblioteca do Sedes.
Por obra do conatus, novas turmas sempre existirão e, nelas, as pessoas se abraçarão e abraçarão causas benfazejas – afinal, é para isso que as escolas servem.
[1] Psicóloga e psicanalista, aluna do 1º ano do curso Psicopatologia Psicanalítica e Clínica Contemporânea.