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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    43 Setembro 2017  
 
 
HOMENAGEM

PARA ECLÉA BOSI (1936-2017)


THIAGO P. MAJOLO [1]


Ecléa Bosi sempre me acompanhou de um jeito peculiar. Nunca a conheci. Soube por outras pessoas das particularidades de suas aulas e da sua generosidade na transmissão do conhecimento. Vez ou outra aventei a ideia de ir conversar com ela ou até mesmo de propor um projeto de doutorado, o que não aconteceu. Mesmo assim, tenho hoje convicção de que foi uma das pessoas que mais ampliou a minha escuta. Por isso, quando soube de seu falecimento no dia 10 de julho deste ano, resolvi dedicar um tempo a falar dela.

Mas o que falar da obra tão vasta e seminal de Ecléa? Há cerca de dez anos, Marilena Chauí, ao ser convidada a falar da colega, perguntou-se a mesma coisa. Diante de uma vida tão rica e de uma pensadora do porte de Ecléa, ficou sem palavras por um momento. O mesmo ocorreu comigo. Precisei então recuperar o que ficou dentro de mim da passagem de Ecléa Bosi pelo mundo dos viventes.

Tenho que voltar para 2005. Eu havia sido contratado para trabalhar com História Oral para um projeto sobre a história do ambientalismo no Brasil. A primeira vez que me sentei na frente de alguém para entrevistá-lo não me pareceu nada demais. Eu sabia de quais informações o projeto precisava, quais produtos iam ser feitos com aquelas entrevistas. Os entrevistados estavam lá para me passar informações, e o roteiro de entrevista se baseava em ampla pesquisa. Nada fugia ao controle.

Mas meses depois parti para a primeira de muitas caravanas que fiz pelo Brasil para entrevistar pessoas do povo, em um projeto do instituto Museu da Pessoa que se chamava Memórias dos Brasileiros. Não havia um roteiro de perguntas prontas, não sabíamos bem o que queríamos a não ser constituir um acervo de memórias dos saberes e fazeres da nossa gente. Ao me sentar diante do primeiro entrevistado, fiquei perdido. O que seria escutar um outro completamente desconhecido? O que seria conversar de modo tão sem destino a ponto de ser possível, em certa altura, passar a refletir o mundo pelos olhos de outra pessoa?

Diante deste mistério, corri para ler livros e manuais de História Oral. O primeiro foi Paul Thompson, sociólogo britânico reconhecido por seus pensamentos e pela militância nessa área do conhecimento. É dele a definição de História Oral Antropológica, um conceito que busca codificar uma espécie de escuta implicada no devir da narrativa, uma escuta que, como um antropólogo, está atenta à fala alheia para nela se guiar, o que difere de uma História Oral política, que surge para dar voz àqueles marginalizados e para dar suporte humano às documentações oficiais. Paul Thompson me ajudou muito.

Depois fui ler Como ouvir, de Plutarco. Livro pouco comentado do filósofo, mas muito interessante sobre a ética da escuta e como ela é uma poderosa aliança com o saber do mundo e de si. Plutarco também me marcou.

Mas toda essa teoria ainda carecia de um aporte metodológico implicado, algo mais voltado a um fazer saber do que com um saber fazer. Foi quando conheci Memória e sociedade: lembranças de velhos, de Ecléa Bosi. Seu famoso livro de 1973, em que tece uma miríade de lembranças de velhos de São Paulo de modo tocante e fundamentalmente político.

A primeira coisa que me chamou atenção nesse livro é sua capacidade de transportar lembranças orais para o texto, de tal forma natural e verdadeiramente embrenhada pelo olhar alheio que por muito tempo acreditei que Ecléa Bosi já era ela também uma velha quando o escreveu. Não era jovem, mas tampouco idosa – se contabilizarmos o tempo de pesquisa, redação e posterior publicação, encontramos a autora por volta de 50 anos, no máximo.

Ecléa conseguira algo fenomenal: não escrevera um livro sobre velhos, mas escrevera o discurso deles. Pensava com outros. Ela mesma diz isso: “(...) não pretendi escrever uma obra sobre memória, tampouco sobre velhice. Fiquei na intersecção dessas realidades: colhi memórias de velhos”[2].

Trafegando principalmente entre as teorias de Bergson e Halbwachs sobre a memória, construiu uma teoria e uma metodologia própria sobre o campo individual e social da memória e fundou uma prática de escuta e representação dessa escuta dentro da Psicologia Social.

Se para Kierkegaard a lembrança é algo simplesmente automático e a recordação é a coroação revivida dos afetos, para Ecléa Bosi a lembrança pode ou não ser automática, dependendo de quem lembra e de quem escuta; ou seja, depende de encontrar no mundo espaço e tempos suficientes para a evocação de um pensar sobre si e sobre o mundo frente a novas realidades.

Ecléa Bosi me despertou para o trabalho de uma escuta que, mais que uma atenção, é o despertar de um sonhador. “O sonhador resiste ao enquadramento nos hábitos, que é peculiar ao homem de ação. Este, por sua vez, só relaxa os fios da tensão quando vencido pelo cansaço e pelo sono”.[3] Dizia, com razão, que só nos lembramos porque um outro nos faz lembrar. Daí uma ética de escuta que vai além da atenção, até a implicação.

Foi em 2002 que, junto à Universidade de São Paulo, auxiliou em um projeto de vagas destinadas à terceira idade onde velhos pudessem voltar a pensar sobre si e sobre o mundo, exercendo uma memória-trabalho, como conceituava, a fim de que seu campo de experiências ainda tivesse um lugar no mundo – e não fossem uma espécie nostálgica de tempo perdido.

Outros fatos curiosos ainda me marcaram. Mal sabia eu da sua militância, juntamente com seu marido Alfredo Bosi, contra as usinas nucleares; mal sabia do seu viés profundamente ambientalista (uma coincidência a que eu não atentara na época em que entrevistava pessoas ligadas ao movimento). E mais tarde, quando eu coordenava um projeto de memória da literatura infantil e juvenil brasileira, recebi a notícia de que um livro juvenil de sua autoria, chamado Velhos Amigos, havia recebido o prêmio FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil) em 2003 como o melhor do ano. Pensei em entrevistá-la, mas nossas agendas não bateram.

É claro que o trabalho de Ecléa Bosi, seus muitos livros e sua atuação acadêmica e pessoal não se resumiriam em poucas linhas. Queria deixar aqui apenas uma homenagem sincera a quem transformou minha escuta.

Agora, com sua morte, penso que ficarei, como muitos outros que se dedicarem a escutar pessoas, com uma companhia generosa e fecunda em minha memória. A lembrança de Ecléa Bosi promove trabalho e evoca a vontade de escutar como o outro.

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[1] Psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em História Social pela USP, membro da comissão de Debates da Revista Percurso. E-mail: tmajolo@gmail.com.
[2] BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.39.
[3] Idem, p. 49.




 
 
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