ADRIANA RANGEL[i]
Há quase três anos desenvolvemos um trabalho de clínica e pesquisa em psicanálise com pessoas em situação de rua na cidade de Cuiabá-MT, num ponto do Centro Histórico conhecido como Beco do Candeeiro. O local é uma ferida aberta na cidade. Nos arredores, três garotos foram chacinados em 1998 por um miliciano que fazia parte de um grupo de extermínio. A chacina foi encomendada para os meninos pobres que cometiam furtos e cheiravam cola na região. Fenômeno urbano comum nas grandes cidades do Brasil, há várias décadas verifica-se o encontro dos meninos pobres da periferia com o mercado da droga, vide as chacinas da Sé, em São Paulo, e da Candelária, no Rio de Janeiro, todas nessa mesma década. Odiados pelos comerciantes e habitantes locais, espremidos pelos traficantes, esses meninos vivem segregados, praticamente abandonados pelo Estado numa guerra sem fim.
Logo após a chacina, em 1998, um escultor, Jonas Correa, esculpiu a tragédia retratando os três meninos antes da morte, com seus olhos de horror. Em uma madrugada ele fundou essa escultura na entrada do Beco do Candeeiro, que é uma ruela que liga uma pequena praça a outra. É uma escultura praticamente invisível aos olhos da cidade. Uma escultura quase invisível de homens invisíveis. Ela fala com e dos passantes, tendo expressividade e importância para quem transita na madrugada. Por diversas vezes, presenciamos conversa de bêbados e drogados identificados com o sofrimento dessas crianças, uma realidade de abandono, fome e medo da morte, que ameaça de todos os lados, a polícia, a milícia, os traficantes, os loucos da madrugada.
O Beco do Candeeiro foi a primeira rua da capital e, por ficar às margens do Córrego do Coxipó, o local é conhecido como
Prainha; para os moradores antigos, foi local onde as crianças tomavam banho e os escravos lavavam roupas, despejavam dejetos, etc. Atualmente (2018) há uma laje que tampa o córrego já canalizado. No período do ouro em Mato Grosso, no início do séc. XIX, o ouro de aluvião brilhava às margens do rio. Após o garimpo de Sutil
[ii] o local ficou conhecido como “buracão”, por ocasião de ser “o” maior buraco dos muitos que a cidade apresentava. Esse território histórico tem as marcas da luta dos índios e negros massacrados pelos interesses do capital, sendo considerado lugar dos ancestrais tanto pelos índios, que tiveram ali seu cemitério, como pelos negros, que sofreram no trabalho escravo e que nesse chão fizeram sua existência, sua resistência.
Nesse território, há algumas décadas, vive um povo segregado fugindo do extermínio, refugiados de uma guerra às drogas, “invisível” para os habitantes da cidade que estão dentro do sistema. Esse povo está excluído de todos os direitos de cidadania. São vida nua, como bem disse Agamben, restos da produção do capitalismo que se avolumam e ficam circulando como lixo no espaço sideral. Como testemunhou uma moça: Tamo aí, sem saber o que fazer, sem saber o que vai dar. O que vai acontecer com ‘nóis’? Tamo largado prá morrer.
Quando chegávamos ao beco no nosso trabalho semanal e nos posicionávamos nas proximidades da Pastoral, o que se constituía eram dois campos distintos que estabeleceram um espaço de fronteira onde se davam nossos encontros. Num estreito trecho entre o interior da Igreja e o início do Beco estabelecia-se uma faixa onde trocávamos objetos e palavras. Essa dinâmica lembra muito a lógica das trocas interétnicas descritas nos relatos antropológicos. A antropologia, e particularmente a etnografia tem sido nossa parceira na pesquisa [iii]; aprendendo com a metodologia da observação participante, colhemos o testemunho de uma cidade outra, íntima e profundamente deles desde a infância.
Eles circulam entre nós, pegam o que querem e seguem um pouco para baixo no beco e ali mesmo compram, vendem e usam crack ao nosso lado. Isso configura no território um litoral: de um lado eles, os manos e minas da rua e de outro, nós, a equipe do projeto Psicanálise na rua. Eles vêm e vão como a água na areia, mistura e separa, configurando uma linha divisória como um litoral.
Certa noite estávamos no Beco, quase indo embora, quando uma das meninas nos interpelou. Ela pedia socorro por ocasião de uma queimadura extensa que atravessava toda a extensão da perna e há dois dias estava sem socorro, emburacada [iv], abanando as moscas que insistiam em pousar em seu machucado durante a noite. Como agravamento do quadro, ela não conseguia dormir com medo de pegar um berne e com muita dor. Ela nos pediu um socorro e dissemos que íamos levá-la no hospital. Ela disse-nos que não ia adiantar, que não iríamos conseguir entrar porque ela não tinha documentos. Insistimos e a levamos para o Hospital.
Nós fomos e entramos sem problemas. Passamos por cada triagem e, pelo bom uso da língua, fomos bem atendidos no padrão SUS [v] do momento. Depois de duas horas estávamos retornando para o Beco. Ela recebeu assistência de curativos no mesmo hospital por duas semanas e seguiu bem sua vida dura. Mas refletíamos depois o quanto funcionamos como chave para fazer o SUS funcionar, a moça se acalmar e entender o que estava acontecendo. Dispositivo de leitura e tradução, intérprete bilíngue, impedindo que a moça fugisse de medo ou agredisse a equipe de assistência por entender que estava sendo maltratada e ajudando a equipe do hospital a entender o que estava acontecendo. Existia um abismo de comunicação, uma incompreensão radical no que é a leitura do que o outro fala: uma dificuldade da ordem da língua.
Diante do guarda, na porta do Pronto Socorro Municipal, a moça travou e quis recuar, teve um medo congelante, ela estava diante de um discurso sem palavras, como disse Lacan, que a impedia de entrar. Lá dentro ela ficava sempre lendo na realidade o descaso que havia com ela, que as pessoas não a queriam atender, mesmo que a realidade dissesse o contrário. Ela foi atendida, recebida, classificada com um grau alto de urgência e logo foi acolhida dentro da sala de emergência. É importante dizer que essa mulher não é paranoica, é uma moça enrolada com o crack, mas estava sóbria. O acúmulo de trabalho da equipe clínica diante de muitos casos graves sendo cuidados na mesma sala, muita emergência e superlotação, a exemplo de um hospital de guerra, faziam com que ela tivesse que esperar para ser atendida. Nós funcionamos como intérprete da cena dos dois lados, possibilitando a fluência do atendimento.
Sim, estamos há muito nos perguntando por que essa população não é atendida pelo SUS, onde reside a dificuldade se ele está aberto para todos, por que essa população de rua não chega - ou quando chega não é atendida - nos pontos de assistência, hospitais, CAPS? Dizemos de um grau de exclusão social que formou um outro povo. Se há uma diferença dedialeto ou sotaques entre as classes, há uma diferença de línguas com relação à miséria. Os trocadilhos deles não existem em nossa língua, mesmo que vizinha.
Trata-se de uma dificuldade da ordem do signo linguístico, um elemento material, um Real que atravessa a nossa relação com essa população. Em diversos momentos não entendíamos o que os sujeitos nos diziam durante as conversas, às vezes até longas, e até repetidas, que tivemos. A forma como dizem, os significantes que usam refletem categorias de espaço, tempo, classificações do mundo distintas, constituindo todo um outro ethos. Com o tempo de trabalho no Beco e nas ruas, chegamos a uma clareza radical: estamos diante de uma língua estrangeira.
Sabemos, com Saussure, que o signo linguístico é artificial, é invenção, remonta a uma relação arbitrária entre o significante e o significado. O signo linguístico é formativo da relação entre um conceito e sua imagem sonora. Imagem sonora e conceitos são entidades mentais, a impressão psíquica dos sons produz uma reverberação de significados. Nessa teia de linguagem, a língua define um coletivo que fala, sente e vê o mundo a partir de sua cultura. Existe uma cultura da rua, existe uma língua da rua que está na nossa cara e não conseguimos ver, esse povo fala outra língua e entendem mal a nossa. Podemos nos comunicar com eles, sim, claro, mas é uma experiência impressionante ouvir o que eles falam, muitas vezes ficamos como quem não entendeu a piada. Quando falam entre si, bom aí foi feito para que nós não entendamos nada mesmo, fala cifrada e no corre da droga sob o comando do tráfico, ninguém fala duas vezes.
O picuá, que matou a nega, demoramos de entender. Quando chegamos ela estava passando muito mal, entre eles boatos de comida envenenada, outro havia morrido no porto e o beco estava agitado. Alguns próximos a ela disseram para nós que “ela morreu porque pegou um picuá com o pai e não vendeu nada, fumou tudo”. Conseguimos ajuda do SAMU [vi], mas ela faleceu no hospital. Depois, ouvindo mais, entendemos que picuá é uma medida de quantidade de crack, uma medida grande para ser vendida por uma pessoa em um turno. Morte por overdose, “preferiu morrer de droga do que de tiro do pai”, comentou uma irmã de rua.
Um analista não pode ser estrangeiro à língua do sujeito que trata, é importante tomar o valor desse impedimento real da língua própria do povo da rua para uma intervenção bem dirigida. Língua ligada aos seus meios e seus modos de laço social. Reconhecemos que estamos diante dessa aprendizagem, diante desse esforço de tradução e de comunicação e que a riqueza dos arranjos da língua desse povo, no que é a tessitura de suas relações significantes, ainda não possuímos. Ficamos sempre diante de uma opacidade compreensiva, de uma miopia no campo do que é a leitura de um analista dos significantes do sintoma de um sujeito.
Lacan refere-se à língua no Seminário 3, trilhando freudianamente os caminhos do inconsciente:
“Um sistema de significante, uma língua, tem certas particularidades que especificam as sílabas, os empregos das palavras, as locuções nas quais elas se agrupam, e isso condiciona, até na sua trama mais original, o que se passa no inconsciente. Se o inconsciente é tal como Freud nos descreveu, um trocadilho pode ser em si mesmo a cavilha que sustenta um sintoma, trocadilho que não existe numa língua vizinha”. (LACAN, 2002, p. 140).
É profunda, radical, a relação do sujeito com a língua, “um trocadilho pode ser a cavilha que sustenta um sintoma”, é assim, com o barro da língua, com lalíngua, como Lacan refere-se no final de seu ensino, que o sujeito comparece no sintoma, nos sonhos e na transferência.
Não basta a transferência de amor estar estabelecida, é preciso que um analista possa, a partir da escuta, conhecer o modo como esse sujeito constitui seu sintoma a partir dos significantes fundamentais de sua língua. Como sem o bom domínio da língua poderíamos manejar o sujeito a se fazer a pergunta fundamental que o levará para dentro da cena da análise, a saber: - O que tenho a ver com isso?
[i] Psicanalista, membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise, mestre pela PUCSP e doutora pela UERJ, professora da UFMT desde 1996 e coordenadora do trabalho de Clínica e Pesquisa em Psicanálise com pessoas em situação de rua.
[ii] Miguel Sutil foi um agricultor que veio para a região do Coxipó no início do século XVIII pela “febre do ouro”. Por ocasião do destino um indígena “preado” a seu serviço encontrou uma grande pepita de ouro. O local mostrou ser uma mina muito rentável da qual retirou-se mais de quatro toneladas no primeiro mês de escavação. Esse fato foi o que desencadeou o interesse da coroa portuguesa pela localidade, elevando Cuiabá ao status de vila. O local tornou-se o sítio fundacional da cidade.
[iii] Principalmente com as pesquisas de Taniele Rui (2014) e demais desenvolvimentos onde apresenta as “Novas Faces da vida nas Ruas” junto com outros antropólogos. Cristina Cunha (2013) também foi fundamental para nos fazer refletir sobre a costura do tráfico com a religião na periferia formadora de um ethos particular. Além disso, as categorias antropológicas têm nos sido importantes no aprendizado de desnaturalizar as relações sociais e compreendê-las a partir de uma arbitrariedade de língua.
[iv] Emburacada é uma gíria usada por eles que significa “recolhida”, “em casa há dias” e a qual estão relacionados um “estado de sítio” ou uma debilidade (física ou emocional).
[v] SUS – Sistema Único de Saúde que atende gratuitamente a todos os cidadãos brasileiros.
[vi] Serviço de Atendimento Móvel de Urgência oferecido pelo SUS.