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JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS |
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49 |
Abril 2019 |
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PSICANÁLISE E POLÍTICA
MEMÓRIA E SUBVERSÃO DA IDENTIDADE NO DISCURSO DE PESSOAS TRANS[i]
EDUARDO LEAL CUNHA [ii] Numa entrevista inicial de psicoterapia, no ambulatório de acolhimento a pessoas trans da minha universidade, localizado em uma cidade do interior, distante cerca de 100 Km da capital, uma usuária, autodefinida como mulher trans, de cerca de 40 anos e com uma aparência que pode perturbar aqueles muito afeitos à norma binária de sexo/gênero – trajes masculinos, cabelos curtos e seios já desenvolvidos –, me diz: “Eu preciso fazer um processo lento de mudança. Minha transição tem que ser compassado”.
Na frase, um pequeno deslize, talvez não por acaso um tropeço naquilo que chamamos concordância de gênero, e a transição lenta, compassada, se enuncia como uma mudança compassado.
Pouco tempo depois, um jovem homem trans, logo após dar início ao processo de retificação do registro civil para modificação do prenome e do sexo nos documentos de identificação, me diz durante uma sessão: “eu estou muito satisfeito com meu corpo, com a minha aparência, mas às vezes eu me olho no espelho e tenho medo que meu antigo rosto desapareça completamente.”
Escuto nessas falas que algo precisa ser preservado da velha existência, de uma existência que produzia sofrimento e que foi recusada. Dessa forma, aparece para mim, como traço comum na escuta de pacientes autodeclarados trans, algo que eu definiria como um trabalho, ou melhor, a relação cotidiana com um trabalho de memória, o qual se dá num equilíbrio delicado entre o rememorar e o esquecer; no qual, invertendo de certo modo a fórmula clássica freudiana, muitas vezes, é preciso antes esquecer para poder lembrar.
Trabalho que se dá sobre um corpo em permanente transformação. Afinal, oque testemunhamos é um trabalho de produção subjetiva, no qual um horizonte estável não se sustenta e a dita transição nunca acaba, configurando-se não como percurso de um polo a outro, mas, sim, como construção de um entre-lugar, um in-between, no qual o sujeito habita e para o qual não há tampouco ancoragem segura em um passado que possa ser compartilhado.
O que está, então, em jogo nesse trabalho de memória? Procurarei discutir isso brevemente, a partir de três significantes que se articulam diretamente – para além desse trabalho de memória que me parece um aspecto significativo e singular da experiência transidentitária – ao que teríamos de definidor em nossa experiência política contemporânea, sobretudo na medida em que tal experiência se define pela articulação necessária – retomando termos de Michel Foucault – entre dispositivos de poder, formas de governos e processos de subjetivação. Tais significantes são: identidade, corpo e intimidade.
Evidentemente o aspecto mais visível é aquele que se refere à construção identitária. Assim, uma pergunta com a qual as pessoas trans se defrontam, e que ganha materialidade na relação transferencial, é: como sustentar uma identidade marcada pela não totalização, por uma fragmentação necessária; e qual o trabalho de memória vinculado a tal sustentação, a qual implica, ainda, uma passagem entre o reconhecimento imaginário de uma totalidade corporal à sua contínua reconstrução simbólica?
O que parece aí se produzir cotidianamente é uma identidade não totalizável que, ao mesmo tempo, adere e resiste ao pertencimento grupal, que demanda a produção de formas de encontrar a mediação do grupo, sustentando, ao mesmo tempo, uma radical singularização.
Podemos ainda talvez ligar tal trabalho de memória ao próprio uso do termo transidentidades, destacando aí essa dimensão de entre-identidades, que se faz como uma série contínua de operações de identificação e desidentificação e pelo permanente esforço de rememoração e de esquecimento, que põe em suspenso a cronologia e permite a reconstrução recorrente do passado e, portanto, do presente.
Mas, para além das questões relativas à identidade, esse trabalho de memória também pode nos ensinar algumas coisas tanto sobre as formas contemporâneas de relação com o corpo quanto no que diz respeito à sobreposição entre o domínio da vida íntima e a esfera pública.
Em relação ao corpo, trata-se de um trabalho permanente de simbolização dos impactos da relação com a materialidade visível de um corpo em permanente transformação, mediada pela tecnologia química e cirúrgica. Ou seja, cabe a esse sujeito em transição a elaboração diária dos efeitos de sua inserção no dispositivo biopolítico, de um modo muito mais radical e evidente do que para nós, que ainda podemos nos imaginar fora do dispositivo ou imunes a ele.
Quando se trata dos limites entre o espaço da intimidade e a esfera da vida pública, seria preciso considerar que a recordação – da infância, por exemplo – se tece todo o tempo no limite entre certa memória não compartilhada de uma experiência de não conformidade e a busca de reconhecimento por parte, precisamente, do olhar do outro, aquele que em verdade, ao menos em princípio, nega tal experiência e impede sua partilha.
Em resumo, o trabalho de memória realizado por pessoas trans nos parece, assim, configurar uma forma paradigmática de subversão da identidade que torna visíveis aspectos cruciais da experiência política contemporânea, como o lugar estratégico do corpo e os laços entre o político e o íntimo.
Tal trabalho coloca ainda em primeiro plano o tema da verdade e da percepção, o qual se faz presente como a interrogação em torno da certeza de que algo foi efetivamente vivido - sobretudo quando certas vivências são ocultadas, omitidas ou mesmo desmentidas, no sentido psicanalítico do termo, por aqueles que as testemunharam e lhes deveriam dar suporte no plano das trocas simbólicas e de construção de uma memória coletiva.
A partir dessa articulação cotidiana e, ao mesmo tempo, radical entre memória, identidade e corpo que testemunhamos na escuta psicanalítica de pessoas trans, penso podermos explorar a possibilidade de uma antropologia clínica da experiência política contemporânea, fundada, nos termos de Foucault, na vinculação direta entre dispositivos de poder e processos de subjetivação, e marcada, como consequência, pela submissão da experiência subjetiva ao registro da biopolítica.
Tomo a ideia de antropologia clínica do trabalho de Phillipe Van Haute, construído a partir da noção de Patoanálise, proposta por Jacques Shotte. Sua finalidade é, com essa noção de antropologia clínica, dar conta de uma leitura da prática analítica que recuse qualquer perspectiva normativa das formas de sofrimento psíquico. Assim, com essa noção, se procura pensar as formas do sofrimento psíquico, a histeria, por exemplo, como exacerbações, formas extremas de experiência dos conflitos próprios à existência humana em determinado tempo histórico.
Dessa maneira, no que se refere à histeria tratada por Freud no final do século XIX, teríamos o enfrentamento da questão dos limites e modos de relação entre o corpo e a mente; o trabalho de construção de uma identidade de gênero, que toma forma de uma interrogação sobre o feminino; o conflito entre o plano da razão e o plano das paixões; e, finalmente, o próprio enfrentamento pelo eu de certa exterioridade em relação a seus próprios desejos.
Deslocando-nos pouco mais de cem anos na história, penso ser possível utilizar as ideias de patoanálise e de antropologia clínica para compreender o lugar central das transidentidades na clínica contemporânea e em nossos debates teóricos, respeitando evidentemente as diferenças produzidas por contextos sócio-históricos específicos e sem supor qualquer universalidade metapsicológica ou estrutural.
Minha hipótese é que nós podemos, então, identificar no discurso e na experiência vivida por pessoas trans, e sobretudo nesse trabalho de memória que me parece ocupar lugar central em suas análises e terapias, a exacerbação e colocação em ato das principais questões que marcariam a subjetividade de nossa época.
Tais marcas seriam, em poucas palavras, a redução da experiência da corporeidade ao registro do organismo manipulável pela tecnociência, a redução da experiência subjetiva à forma do indivíduo proprietário como matriz de uma forma de reconhecimento ancorada na racionalidade identitária e, por fim, a redução da política à esfera da intimidade, produzida para além da personalização da política e da submissão dos valores e ideais que regulam a luta política ao registro do eu e sua afecções.
Assim, ainda que se possa pensar que esse trabalho de memória seja algo que marca qualquer experiência de análise, o que me parece singular na experiência de escuta das transidentidades é não apenas a sua centralidade, mas a radicalidade de seus efeitos, o que se deve talvez justamente a que tais experiências possam ser tomadas como materialização exemplar dos conflitos intrapsíquicos e intersubjetivos que marcam nosso tempo histórico.
É também ao considerar a importância de tal trabalho de memória, e da necessidade de criar abertura para que ele aconteça no espaço das análises, que ratificamos a necessidade de uma escuta não patologizante e não normativa das experiências de dissidência de gênero, o que infelizmente não é a regra em vigor, posto que grande parte dos psicanalistas, senão a maioria, ainda se encontram instalados no conforto da classificação psicodiagnóstica que amarra as experiências transidentitárias a figuras anacrônicas, como o dito transexual verdadeiro descrito por Stoller, e aprisiona os analistas em uma concepção totalizante e universalizante, além de inevitavelmente normativa, dos processos de constituição subjetiva.
Dito isso, o passo seguinte será inevitavelmente nos perguntarmos a que condições a psicanálise precisa atender, que tipo de autocrítica precisa fazer, para que possa efetivamente escutar as transidentidades e dar suporte a esse trabalho de memória que tem, como eu procurei indicar, fortes ressonâncias políticas. Trabalhando com essa interrogação encontraremos, mesmo acidentalmente, pistas sobre os modos de inscrição da psicanálise no debate político, como possível instrumento ou agente de transformação das formas hegemônicas de regulação dos nossos modos contemporâneos de viver juntos. [i] Esta é uma versão (extremamente) reduzida e condensada de duas conferências ministradas recentemente, ambas no quadro de discussões sobre os laços entre psicanálise e política. A primeira no Encontro Preparatório da Rede Interamericana de Pesquisas em Psicanálise e Política, realizado no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em setembro de 2018. A segunda ministrada em outubro do mesmo ano no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Paris, na abertura da temporada 2018/2019 do Ciclo de Conferências Psicanálise e Política da Universidade de Paris Cité Sorbonne. [ii] Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, Pesquisador Associado do Centre de Recherches Psychanalyse Médecine et Société da Universidade de Paris VII – Diderot.
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