EM CARTA AOS MEMBROS DO DEPARTAMENTO, ANA MARIA SIGAL [i] SE DESPEDE DA REPRESENTAÇÃO NO MOVIMENTO ARTICULAÇÃO
Prezados colegas,
Há 19 anos assumi a responsabilidade de representar o Departamento de Psicanálise frente a um novo grupo que estava se gerando, e fez sua primeira reunião no Hotel Glória do Rio de Janeiro, no ano 2000. O encontro foi convocado por um grupo de psicanalistas da Febrapsi, apoiada pelo Conselho Federal de Psicologia, o Conselho Federal de Medicina, com representação da Associação Brasileira de Psiquiatria e várias entidades que recobriam uma grande parte dos profissionais e instituições que se dedicavam seriamente ao estudo e à prática da psicanálise. Este grupo reagia às várias tentativas de regulamentação da psicanálise e, fundamentalmente a uma lei apresentada ao Congresso Nacional por um senador vinculado às igrejas evangélicas do país - Eber Silva -, que alegava ter 85 turmas já formadas de psicanalistas e mais de 3.000 psicanalistas espalhados pelo país. Este PL (Projeto de Lei) invocava a necessidade de controlar o exercício da psicanálise e apelava para a necessidade de proteção do exercício de uma profissão que deveria ser regulamentada pelo Estado.
Os psicanalistas que se reuniram naquele encontro achávamos que esta investida era uma tentativa de ampliar o poder de fiscalização da prática psicanalítica, e impulsionava a ideia da criação da psicanálise como profissão. Era também uma forma de obter o reconhecimento e a legalização desses profissionais que, ao nosso ver, estavam muito distantes de realizar uma formação em psicanálise seguindo o modelo reconhecido pelas instituições com largos anos de trabalho no campo e noções claras do que propõem o pensamento freudiano e seus seguidores.
Achou-se necessário criar um fórum que convocava as instituições de psicanalistas que se reconheciam entre si e criamos um movimento além das diferenças teóricas de escolas e das modalidades pelas quais cada grupo entendia que se obtinha a autorização ou o reconhecimento na formação de um analista.
O primeiro manifesto foi assinado por 68 instituições ou grupos ligados à psicanálise. Passado o primeiro momento de luta, quando começou a consolidar-se o movimento através de reuniões estáveis, dispôs-se que apenas as instituições de formação manter-se-iam ligadas ao movimento. Hoje são 18 instituições que permanecem na Articulação e se mantêm atentas às questões da regulamentação, fazendo uma luta acirrada para evitar todas as tentativas de promover uma lei que profissionalize o exercício da psicanálise. Muitas dessas instituições têm atuação em diferentes estados e cidades do Brasil, e abrigam um grande número de psicanalistas a nível nacional.
Ao longo desses anos, temos conseguido barrar várias tentativas de oficializar a psicanálise e temos nos mantido como fórum ativo que participa em questões nas quais está envolvida a regulamentação da psicanálise. No site do nosso Departamento há um apartado contendo muita informação sobre o que aconteceu na história nacional e internacional em relação a esta questão, assim como o manifesto do Movimento Articulação das Entidades Psicanaliticas Brasileiras.
Alguns colegas como Sandra Navarro, Cida Aidar e Heidi Tabacof me acompanharam durante algum tempo nas reuniões, mas por diversas razões não se mantiveram fixos.
A partir de então se realizam reuniões permanentes de frequência variável - no começo se faziam 4 vezes por ano e, no momento, são 2 anuais - intensificada nos momentos de luta mais intensa.
Muitos dos que começamos no ano 2000 permanecemos até hoje como representantes. Isto foi assim porque a condição de movimento favorecia a desmobilização e foi sempre a transmissão oral que acompanhou nossa história. Hoje em dia temos publicados dois livros (sou uma das organizadoras do último deles) defendendo a psicanálise como um ofício, e assentando as experiências e as posições dos diferentes grupos que formam parte do movimento. Nossa luta como movimento se dá sempre no campo institucional oficial, não respondendo nem denunciando cada grupo que se proclame como autorizado a formar psicanalistas, mesmo reconhecendo que estes deturpam os princípios fundamentais de nosso saber e crescem indiscriminadamente. Como movimento, queremos ser fiéis a nossa ideia de não nos transformarmos em fiscalizadores, se bem que, a nível individual, cada instituição possa arbitrar medidas de denúncia ou intervenções que levem a esclarecer situações de não reconhecimento de grupos que pretendam difundir-se em nome da psicanálise e se aproveitem do prestigio que a psicanálise tem no campo social. Aconselhamos nossos membros a não participarem de eventos ou administrarem cursos nesses grupos que, segundo nosso critério baseado na análise de seus princípios, difundem ideias contrárias à ética da psicanálise.
Somos contrários ao pertencimento a quaisquer órgãos que sindicalizem nosso ofício (Sindicato de psicanalistas) e em nome deles arrecadem fundos e prometam vantagens, assim como de instituições que sejam respaldadas pela Sociedade Psicanalítica Ortodoxa Brasileira (SPOB), que responde a grupos evangélicos. Não concordamos com as instituições que se dizem autorizadas pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases) ou pelo CBO (Código Brasileiro de Educação), já que qualquer profissão pode se filiar a estas leis e tem direito a ter um sindicato.
Hoje entendo que é chegado o momento de transferir a delegação e sermos representados por outros colegas, dado que nosso lugar no movimento está mais do que afirmado, que existem dois livros que condensam as experiências e normas de funcionamento que garantem uma continuação estável. As discussões sempre foram muito ricas e surgiram da necessidade de sustentar posições que respondiam à forma pela qual cada instituição mostrava sua marca no campo. Sendo delegada de nosso Departamento no grupo, sempre tive autonomia e respaldo do Departamento para tomar decisões. Foi a primeira experiência permanente na qual o Departamento de Psicanálise se inseriu num espaço mais amplo, fora das fronteiras do Sedes, criando vínculos exogâmicos.
Este espaço constituiu uma experiência única para mim, pelo fato de compartilhar uma luta comum com instituições vindas de modelos de formação e teóricos bem diferentes, na qual conseguíamos manter a união, sem que nenhum daqueles modelos tenha se transformado numa imposição, nem que se tenha priorizado o poder de um grupo em relação aos outros. Também conseguimos evitar as fraturas e, na discussão, sempre encontrar uma saída. Isto não estava dado, significou um árduo trabalho no qual todos nos empenhamos. Posso dizer que a participação neste grupo só me ensinou a aprofundar o desenvolvimento da teoria psicanalítica, da política na psicanálise e da política interinstitucional. Tenho um agradecimento ímpar aos colegas com que compartilhei tanto tempo trabalhando e com os quais criamos uma simpatia e uma amizade que dura tantos anos. Quero agradecer também ao Departamento pela confiança em mim depositada e pela liberdade que me outorgou para levar em frente meu trabalho.
Sei que me afasto num momento muito difícil. Novamente há no Congresso dois projetos de lei para a regulamentação das psicoterapias: o PL 174, no qual a psicanálise está incluída entre numerosas psicoterapias que nada têm a ver com o modelo epistemológico no qual nos baseamos, e do qual pedimos simplesmente que se retire a psicanálise, que está junto com florais de Bach e cromoterapias; o PL 101, de Cesário Mota (podem consultar na internet), ainda mais complicado, pois pretende regulamentar só a psicanálise .
Já foram a Brasília representantes do movimento Articulação para falar no Senado e temos todos os contatos possíveis ativados, entregamos nossos livros e cartas aos diferentes relatores do projeto e estamos à espera do que vai acontecer. Também por trás dessa tentativa de regulamentação está a bancada evangélica e, no momento atual, de uma política nacional que atende pouco às reivindicações dos diferentes grupos e quer ordenar, regular e fiscalizar a existência das diferentes vozes, nossos esforços têm que ser maiores e se corre mais risco de não sermos ouvidos.
Ficam agora, como novos delegados, nossos experientes colegas Nelson da Silva Júnior e Paulo Jerônymo Carvalho que, a partir da reunião do dia 3 de agosto de 2019, começaram a exercer suas funções. Eu me disponho a continuar trabalhando, fazendo parte de um grupo de apoio para orientar as diversas questões que têm a ver com a história. Agradeço a eles pela disponibilidade para continuar esta luta, que considero vital para a sobrevivência da psicanálise segundo uma ética que sempre tem nos orientado. E que possibilita, ao mesmo tempo, compartilhar e fazer conhecer nossos princípios, para manter nosso Departamento com uma inserção interinstitucional de alta representatividade do que acontece no campo psicanalítico.
Ana Maria Sigal
Texto da lei PL 101, contra a qual estamos lutando no Senado
Regulamenta a profissão de psicanalista.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Art. 1º Esta Lei regulamenta o exercício da profissão de psicanalista.
Art. 2º O exercício da profissão de psicanalista é livre em todo o território nacional, observadas as disposições desta Lei.
Art. 3º Considera-se Psicanalista o profissional habilitado em:
I - curso superior de graduação em psicanálise ofertado por instituição de ensino superior no Brasil autorizado pelo Ministério da Educação, ou por instituição de ensino superior no exterior desde que validado no Brasil, nos termos do regulamento;
II – curso superior de graduação no Brasil ou no exterior, desde que validado no Brasil, com especialização em psicanálise ou ciência afim, nos termos do regulamento;
III – o profissional que possua prévia formação em psicanálise e que comprove o exercício da profissão há pelo menos três anos, contados da data de entrada em vigor desta Lei, terá assegurado o direito ao exercício da profissão, na forma estabelecida em regulamento.
Parágrafo único. Entende-se por especialização em psicanálise os profissionais graduados com:
I – especialização stricto sensu a nível de mestrado ou doutorado;
II - especialização lato sensu em psicanálise em cursos com o mínimo de trezentos e sessenta horas aula;
III - especialização em cursos livres de psicanálise desenvolvidos e ministrados por entidades de notório saber na área da psicanálise, com carga horária mínima de trezentos e sessenta horas aula, nos termos do regulamento.
Art. 4° Competirá ao Psicanalista:
I - a responsabilidade técnica exclusiva ou compartilhada pelos cursos de especialização lato sensu e os cursos livres a que se referem os incisos II e III do parágrafo único do art. 3º, desde que com especialização nesta área;
II - o ensino de disciplinas práticas relativas aos cursos referidos no inciso anterior;
III - a elaboração de laudos, pareceres técnico-científicos, estudos, trabalhos e pesquisas relativos à psicanálise;
IV – o exercício da profissão de psicanalista que compreenderá, dentre outras atividades, as seguintes:
a) o estudo, pesquisa e avaliação do desenvolvimento emocional e os processos mentais e sociais de indivíduos, grupos e instituições, com a finalidade de análise, tratamento, orientação e educação;
b) o diagnóstico e avaliação dos distúrbios emocionais e mentais e de adaptação social, elucidando conflitos;
c) acompanhar os pacientes durante o processo de tratamento;
d) a investigação dos fatores inconscientes do comportamento individual e grupal, tornando-os conscientes;
e) desenvolver pesquisas experimentais, teóricas e clínicas e coordenar equipes e atividades da área e afins.
Art. 5º O exercício da profissão de psicanalista zelará:
I – por princípios éticos;
II - pela relação de transparência com o paciente e seus familiares ou responsáveis, prestando-lhes as informações adequadas;
III - pela segurança do paciente e demais pessoas envolvidas no atendimento, evitando sua exposição a riscos.
Art. 6º Competirá ao Ministério do Trabalho e Emprego a fiscalização do exercício da profissão de psicanalista.
Art. 7º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Justificação
No Brasil e no mundo, a psicanálise é exercida livremente. No Brasil é uma profissão reconhecida, mas não regulamentada.
Assim, a psicanálise é uma profissão livre, reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (CBO – código 2515.50), amparada pelo Decreto nº 2.208 de 17 de abril de 1997, que estabelece Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei nº 9.394, de 1996, e pela Constituição Federal, nos arts. 5º incisos II e XIII, podendo ser exercida em todo o País.
Atualmente o Psicanalista tem sua profissão classificada na CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) no Ministério do Trabalho
– Portaria nº 397, do Ministério do Trabalho e Emprego de 9 de outubro de 2002, sob o nº 2515.50, podendo exercer sua profissão em todo o Brasil.
O Psicanalista é um profissional que até hoje exerce sua profissão sem uma fiscalização mínima, que entendemos necessária em face do possível exercício por profissionais sem a habilitação necessária para tal mister.
O exercício da psicanálise é livre e não está restrito a médicos e psicólogos atualmente, uma vez que essas profissões são regulamentadas e tem suas atribuições definidas em lei própria.
Mantivemos essa liberdade, desde que haja uma formação a nível de especialização de pelo menos trezentos e sessenta horas para profissionais de nível superior, resguardando assim o exercício da profissão com um mínimo de formação acadêmica.
O presente projeto de lei tem por objetivo estimular a discussão sobre o exercício desta profissão e fixar uma regulamentação mínima, que resguarde os interesses da sociedade e dos profissionais regularmente habilitados.
Esperamos, assim, contar a apoio dos nossos Pares para a aprovação e o aperfeiçoamento desta proposição.
Sala das Sessões,
Senador TELMÁRIO MOTA
SF/18258.78545
[i] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professora do curso de Psicanálise, co-coordenadora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma e, até agosto de 2019, representante do Departamento junto à Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.