PUBLICAÇÕES

    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    53 Abril 2020  
 
 
POLÍTICA DA PSICANÁLISE

ENTRE UNS E OUTROS, FICAMOS COM TODOS


EQUIPE EDITORIAL DO BOLETIM ONLINE



Em torno da intervenção de Paul Beatriz Preciado em sessão plenária da 49ª Jornada da Escola da Causa Freudiana, Paris, novembro de 2019 [1]

Deu o que falar a conferência pronunciada por Paul B. Preciado em 17 de novembro de 2019 na Escola da Causa Freudiana, por ocasião de sua 49ª Jornada, intitulada Mulheres na psicanálise.


Diatribe nunca antes pronunciada num congresso de Escola de Lacan, a ressoar uma nova conjuntura e novas conjecturas históricas (Maleval) que desafiam a vocação alteritária de nosso saber, de nossos saberes. Eis um dos sentidos possíveis do trajeto empreendido por Tania Rivera, que parte das trilhas freudo-lacanianas de subversão da lógica fálica para abordar anamorficamente o Manifesto contrassexual. No interesse de responder ao suposto anacronismo da psicanálise pela via do ato de distinguir clínica e militância, e advertida de nossa inelutável posição de encarceramento quando o assunto é a subjetivação, Denise Maurano encontra respiro no mais além do sexual, pelo qual se abre o campo do feminino. Sua atenção às ideologias nefastas que podem acompanhar uma epistemologia política do corpo, histórica e mutável, nos leva, por fim, à leitura das proposições de Alessandra Parente e Léa Silveira, que visam a adentrar a epistemologia mutante de Preciado.

Fica o convite para coletivizar a palavra, politizar o inconsciente (Preciado). Interessados nos dizeres subjacentes aos 5 escritos a seguir compilados, entre uns e outros ficamos com todos. Para seguir falando. Afinal, o potencial de verdade não pertence exclusivamente a ninguém.





UM APARTAMENTO EM URANO [2]



PAUL B. PRECIADO



Boa tarde,
Prezadas senhoras, prezados senhores da Escola de psicanalistas da França,

Senhoras e senhores da Escola da Causa Freudiana,

E não sei se vale a pena que eu também diga “boa tarde” a todos aqueles que não são nem senhoras nem senhores, porque acredito que não haja entre vocês alguém que tenha renunciado legal e publicamente à diferença sexual e que tenha sido aceito como psicanalista efetivo depois de ter conseguido fazer o passe e ser aprovado — falo, aqui, de um psicanalista trans ou não binário que tenha sido admitido entre vocês. Se existe, permitam-me enviar a esse mutante, desde já, o mais caloroso dos cumprimentos. [risos e aplausos]

También quiero saludar aquí a todos psicoanalistas hispanohablantes, de América Latina y de España [aplausos]: señoras, señores, y sobre todo otros (aquellos que no son señoras ni señores) [3]. [risos]

Em 1917, Franz Kafka escreveu Um relatório para uma Academia [4]. O narrador do texto é um macaco que, depois de ter aprendido as linguagens humanas, se apresenta perante uma Academia das mais altas autoridades científicas para explicar-lhes o que a evolução humana representou para ele. O macaco, que se chamava Pedro Vermelho, conta como foi capturado por uma expedição de caça organizada pelo circo Hagenbeck; como foi, em seguida, transportado para a Europa; e como foi que, em seguida, ele conseguiu se tornar um homem.

Pedro Vermelho conta como foi que ele aprendeu as linguagens humanas e como foi que, para fazer isso — e para entrar na sociedade da Europa do seu tempo —, ele teve de esquecer a sua vida de macaco e se tornar alcoólatra. Mas o mais interessante, no monólogo de Pedro Vermelho, é que Kafka não apresenta a sua história de humanização como uma história de libertação, mas sim como uma crítica do humanismo europeu. Uma vez capturado, o macaco diz não ter tido outra opção que não fosse ou morrer numa jaula, ou viver passando para a jaula da subjetividade humana. E é a partir dessa nova jaula da humanidade que ele se dirige à Academia científica.

Como o macaco Pedro Vermelho se dirigiu à Academia de cientistas, eu me dirijo hoje a vocês, acadêmicos da psicanálise, a partir da minha jaula de homem transexual: o meu corpo marcado pelo discurso médico e jurídico como transexual; caracterizado, na maior parte dos diagnósticos psicanalíticos de vocês, como sujeito de metamorfose impossível — segundo vosso colega Pierre-Henri Castel[5] —; estando, segundo a maior parte das teorias de vocês, para além da neurose; à beira, ou mesmo dentro, da psicose; tendo, segundo vocês, uma incapacidade de resolver corretamente um complexo de Édipo ou havendo sucumbido à inveja do pênis. Eu me dirijo a vocês como um macaco humano de uma nova era.

Eu, enquanto corpo trans, enquanto corpo não binário — a quem nem a medicina, nem o Direito, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de falar, nem a possibilidade de produzir um discurso uniforme de conhecimento sobre mim mesmo —; eu aprendi, como Pedro Vermelho, a linguagem do patriarcado colonial: a língua de vocês. Eu estou aqui para me dirigir a vocês.

Talvez vocês digam que estou recorrendo a um conto kafkiano para começar a falar-lhes, mas o colóquio de vocês me parece mais próximo da época do autor de A metamorfose [6] que da nossa. Vocês organizam um encontro para falar das “mulheres na psicanálise” em 2019 como se nós ainda estivéssemos em 1917 [burburinho], e como se esse tipo particular de animal — que vocês chamam, de forma condescendente e naturalizada, de “mulher” — ainda não tivesse um reconhecimento pleno enquanto sujeito político; como se ela fosse um anexo ou uma notinha de rodapé, uma criatura estranha e exótica entre as flores[7][risos], sobre a qual é preciso refletir, de quando em quando [aplausos], num colóquio em mesa-redonda.

Seria preciso, isso sim, organizar um encontro sobre os homens brancos heterossexuais e burgueses na psicanálise. [risos e aplausos]. A maioria dos discursos psicanalíticos gira em torno do poder discursivo e político desse tipo de animal necropolítico que vocês tendem a confundir com o humano universal, e que é — pelo menos até o momento — o sujeito da enunciação central no discurso das instituições psicanalíticas da modernidade colonial.

Eu não tenho — como vocês podem ver — grande coisa a dizer sobre as “mulheres na psicanálise”, a não ser que eu também sou, como Pedro Vermelho, um fugitivo; que eu também fui, um dia, uma “mulher na psicanálise”; que me designaram o sexo feminino. E, como o macaco mutante, eu também saí dessa jaula apertada. Talvez para entrar em outra jaula; mas, pelo menos dessa vez, com os meus próprios pés. Falo a vocês, hoje, a partir desta jaula — escolhida e redesenhada — de homem trans; do corpo, do gênero não binário: uma jaula política que é, em todo caso, melhor que a dos homens e das mulheres, pois ao menos reconhece o seu estatuto de jaula.

Gostaria de transmitir a vocês hoje pelo menos três ideias — se me permitirem — com a estranha liberdade que falar a partir de uma posição discursiva impossível me outorga. Pois enquanto homem trans, enquanto corpo de gênero não binário, mutante de uma humanidade binária e colonial que vocês representam, dediquei toda a minha vida a estudar os diferentes tipos de jaulas em que os humanos se confinam.

Antes de mais nada, gostaria de dizer que o regime da diferença sexual com o qual a psicanálise trabalha não é nem uma natureza, nem uma ordem simbólica, mas uma epistemologia política do corpo; e que, como tal, ele é histórico e é mutável.

Em segundo lugar, gostaria de lhes informar — caso vocês não saibam — que essa epistemologia binária e hierárquica está em crise desde os anos 1940. Não somente por causa da contestação exercida pelos movimentos políticos de minorias dissidentes, mas também por causa do surgimento de novos dados morfológicos, cromossômicos e bioquímicos que tornam impossível a atribuição sexual binária.

Em terceiro lugar, gostaria de dizer a vocês que, abalada por profundas mudanças, a epistemologia da diferença sexual está em mutação, e vai ceder lugar — provavelmente nos próximos 10 ou 20 anos — a uma nova epistemologia. O movimento transfeminista, queer, de denúncia da violência heteropatriarcal, mas também as novas práticas de filiação, de relação amorosa, de identificação de gênero, de desejo, da sexualidade e da nomeação não são outra coisa que não indícios dessa mutação.

Diante dessa transformação epistemológica em curso será preciso que vocês decidam, senhoras e senhores psicanalistas da França, da América Latina, da Europa, do mundo; será preciso que vocês decidam o que vão fazer, onde vão se colocar, em que jaula querem estar confinados, como vão jogar as suas cartas discursivas e clínicas num processo tão importante como esse.

Peço a vocês mais alguns minutos de atenção, caso ainda consigam escutar um corpo de gênero não binário e conceder a ele um potencial de razão e de verdade.

Antes de mais nada, senhoras e senhores e outros [risos], o regime da diferença sexual que vocês conhecem e consideram como universal — e quase metafísico — sobre o qual se assentam e se articulam todas as teorias psicanalíticas, não é uma realidade empírica, nem uma ordem simbólica fundadora do inconsciente. Não passa de uma epistemologia do ser vivo, uma cartografia anatômica, uma economia política do corpo e uma gestão coletiva das suas energias reprodutivas. Trata-se de uma epistemologia histórica que se constrói em relação com uma taxonomia racial, no período de desenvolvimento mercantil e colonial europeu, e que se cristaliza na segunda metade do século XIX.

Essa epistemologia, longe de ser a representação de uma realidade, é uma máquina performativa que produz e legitima uma ordem política e econômica específica: o patriarcado heterocolonial. Antes do século XIX, o corpo e a subjetividade feminina não eram reconhecidos como sujeitos políticos. A mulher, as mulheres não existiam — nem anatômica, nem politicamente — como subjetividade soberana antes do século XIX. No regime patriarcal, anterior ao século XIX, só o corpo masculino e a sexualidade masculina eram reconhecidos como soberanos. O corpo feminino e a sexualidade eram subalternos, dependentes e minoritários.

É interessante pensar que a psicanálise freudiana, enquanto teoria e aparelho psíquico… perdão, do aparelho psíquico… e enquanto prática clínica, aparece precisamente no momento em que se cristalizam as noções centrais da epistemologia da diferença sexual: o homem e a mulher definidos como anatomicamente diferentes e complementares pelas suas potências reprodutivas, como figuras potencialmente paterna e materna, respectivamente, na instituição familiar colonial burguesa; mas também a heterossexualidade e a homossexualidade pensadas como normal ou patológica, respectivamente.

A psicanálise, vista do ângulo da história dos corpos abjetos, da história dos monstros da sexualidade normativa, é a ciência do inconsciente patriarcal e colonial. Peço que, por favor, não tentem negar a complexidade… perdão, a cumplicidade — a complexidade também… as duas, caso queiram —; a complexidade, então, e a cumplicidade da psicanálise com a epistemologia da diferença sexual heteronormativa.

Estou oferecendo a vocês a possibilidade de uma terapia política da instituição de vocês [risos e aplausos seguidos de agradecimento do conferencista], mas esse processo não pode ser feito sem uma análise exaustiva de seus pressupostos. Não os recalquem, não os neguem, não os reprimam, não os desloquem. Não venham me dizer que a diferença sexual não é crucial na explicação da estrutura do aparelho psíquico na psicanálise. Todo o edifício freudiano é pensado a partir da posição da masculinidade patriarcal do corpo masculino heterossexual, compreendido como um corpo com pênis eréctil, penetrante e ejaculatório. É por isso que as “mulheres na psicanálise” — esses animais estranhos entre as flores [risos], com útero reprodutor e clitóris — continuam sendo sempre um problema. É por isso que vocês precisam, em pleno 2019, de uma jornada para falar das “mulheres na psicanálise”. [risos e aplausos]

Não venham me dizer que a instituição psicanalítica não considerou, e não considera ainda hoje, a homossexualidade como um desvio em relação à norma. Caso contrário, como explicar o fato de que até bem pouco tempo atrás não havia psicanalistas podendo se identificar publicamente como homossexuais? Pergunto a vocês: quantos de vocês se definem hoje — bem aqui, nesta Escola da Causa Freudiana —, publicamente, como psicanalista homossexual? [silêncio geral seguido de risos; silêncio seguido de aplausos]

Eu não forço a revelação de posições subjetivas privadas [risos] — de toda forma, estou vendo que, se depender de vocês… [risos] … talvez não tenha, não tenha nenhum… —, o que lhes peço é o reconhecimento de uma posição de enunciação política, num regime de poder heteropatriarcal e colonial. Contrariamente ao que a psicanálise pensa, não acredito que a heterossexualidade seja uma prática sexual ou uma identidade sexual. Penso que é, isso sim, um regime político que reduz a totalidade do corpo humano vivo, e a sua energia psíquica, a um potencial reprodutivo; uma posição de poder discursiva e institucional.

A psicanálise é epistemológica e politicamente… perdão, os psicanalistas… epistemológica e politicamente ainda binários e heterossexuais, até que o contrário seja dito ou denunciado — e tivemos prova disso aqui hoje. Eu não estou pedindo que os psicanalistas homossexuais saiam do armário, ainda que eu ache que isso faria bem para vocês [risos]. São os psicanalistas heterossexuais — logo, vocês (todo este auditório) — os que devem sair, urgentemente, do armário da norma.

A psicanálise freudiana começou a funcionar, no final do século XIX, como uma tecnologia de gestão do aparelho psíquico confinada à epistemologia patriarcal e colonial da diferença sexual. Não há tentativa na psicanálise freudiana de superar essa epistemologia, mas sim de inventar uma tecnologia, um conjunto de práticas discursivas e terapêuticas que permitam normalizar as posições de “homem” e de “mulher”, e suas identificações sexuais e coloniais dominantes e desviantes.

Nessa epistemologia hegemônica os sujeitos patriarcais coloniais modernos utilizam a maior parte de sua energia psíquica para produzir a sua identidade normativa. Angústia, alucinação, melancolia, depressão, dissociação, opacidade e repetição não são mais que os custos gerados para a manutenção dessa epistemologia normativa. A psicologia não é uma crítica dessa epistemologia dominante, mas sim a terapia necessária para que o sujeito patriarcal-colonial continue funcionando, apesar dos custos psíquicos enormes da violência indescritível desse regime. Mas essa epistemologia da diferença sexual com a qual a psicanálise freudiana trabalha, e sem criticar, eu lhes digo, entrou em crise depois da Segunda Guerra Mundial. E talvez… não tenho certeza, na verdade… se vocês estão totalmente cientes de que essa epistemologia da diferença sexual com a qual vocês continuam trabalhando está hoje em crise. Está em uma profunda crise desde… — e é esse o caso, efetivamente — desde os anos 40.

A politização das subjetividades dos corpos considerados como abjetos nessa epistemologia, a organização de movimentos de luta pela soberania reprodutiva e política dos corpos das mulheres e pela despatologização da homossexualidade, bem como a invenção de novas técnicas de representação das estruturas bioquímicas do ser vivo vão levar a uma situação sem precedentes depois dos anos 40. Os discursos médicos e psiquiátricos parecem ter cada vez mais dificuldades — depois dos anos 40 do século passado — para enfrentar o surgimento de corpos aos quais não se pode designar, de imediato, “sexo feminino” ou “masculino” no nascimento.

Com as novas técnicas cromossômicas e endocrinológicas, e a expansão da medicalização do parto, cada vez mais bebês, chamados antigamente de “hermafroditas”, aparecem. Diante desses bebês, a comunidade médico-científica inventou uma nova taxonomia. O psiquiatra infantil John Money[8], trabalhando na Universidade John Hopkins de Nova York, deixa de lado a noção moderna de “sexo” — como realidade anatômica — e inventa a noção de “gênero” para falar da possibilidade de produzir tecnicamente a diferença sexual. As noções de “intersexualidade”, de “transexualidade”, aparecem também entre 1947 e 1960. Pela primeira vez a medicina e a psiquiatria se dão conta, com assombro, da existência de uma multiplicidade de corpos e de posições sexuais para além do binário. Mas, em lugar de mudar a epistemologia, a instituição médica, psiquiátrica, psicológica decide por modificar os corpos, por normalizar a sexualidade, por retificar as identificações.

Gostaria de compartilhar, hoje, com vocês, a hipótese segundo a qual toda a psicanálise lacaniana, que nasce precisamente depois dos anos 40 — a sua releitura de Freud, o seu desvio pela linguística —, já é uma primeira resposta a essa crise da epistemologia da diferença sexual. Penso ser possível dizer que Lacan tenta, como John Money, desnaturalizar a diferença sexual; mas que, como John Money, ele acaba produzindo um metassistema que é quase mais rígido que a noção moderna de “sexo” e de “diferença anatômica”.

No caso de John Money esse metassistema introduz a gramática do gênero, pensada como construção social e endocrinológica. Em Lacan, esse metassistema — e vocês sabem disso muito melhor que eu — também não é anatômico, mas sim aquele do inconsciente estruturado como uma linguagem. Porém, como no caso de John Money, trata-se de um sistema de diferenças que não escapa — infelizmente — do binarismo sexual e da genealogia patriarcal do sobrenome. A minha hipótese é que Lacan não conseguiu se desfazer do binarismo sexual por causa da sua afeição política pelo patriarcado heterossexual. A sua desnaturalização está conceitualmente em marcha; mas Lacan, ele próprio, não estava pronto.

A partir de 1960, com a comercialização da pílula anticoncepcional; depois, com a despatologização da homossexualidade, a epistemologia da diferença sexual entra num processo de questionamento e de mutação implacável. Hoje sabemos que, a cada 400 bebês, um é identificado como intersexual — não podendo ser reconhecido nos gêneros binários. No decorrer dos últimos 20 anos, as crianças que foram operadas ou tratadas como intersexuais organizaram-se para pedir o fim da mutilação genital e dos processos de redesignação forçada. Ao mesmo tempo, cada vez mais corpos começam a se identificar como não binários. Diferente dos Estados Unidos[9]… mas também na Argentina [10] — como vocês sabem — ou na Austrália[11] se reconhecem hoje em dia gêneros não binários como uma possibilidade política. Tenho também o prazer de anunciar a vocês que poucas semanas atrás a minha amiga e colega, Judith Butler, se inscreveu no registro civil da Califórnia como pessoa de gênero não binário.

As identificações de heterossexualidade e de homossexualidade, pensadas em relação à capacidade reprodutiva de dois corpos de sexo oposto, parecem cada vez mais obsoletas, diante de uma multiplicidade de técnicas de gestão da procriação assistida — não só pílula anticoncepcional ou pílula do dia seguinte, mas também paternidade transexual, PMA[12], gestação sub-rogada [13], exteriorização do útero etc. A epistemologia da diferença sexual está em plena mutação. Estamos assistindo a um processo de transformação na ordem da anatomia política e sexual comparável àquele que levou a passagem da epistemologia geocêntrica à epistemologia heliocêntrica, copernicana, entre 1510 e 1730.

Nos próximos anos, deveremos elaborar coletivamente uma epistemologia capaz de dar conta da multiplicidade radical de seres vivos, que não reduza os corpos a sua força reprodutiva heterossexual, e que não legitime a violência heteropatriarcal e colonial. Quando falo de uma nova epistemologia, estou me referindo a iniciar um processo de ampliação radical do horizonte democrático, para reconhecer como sujeitos políticos todo corpo humano vivo, sem que a designação sexual ou de gênero seja a condição de possibilidade desse reconhecimento social ou político.

Estamos vivendo um momento — vou transmitir isso a vocês hoje — de uma importância, uma importância histórica, sem precedentes. A violenta epistemologia da diferença sexual — posta em questão pelos movimentos feministas, homossexuais, intersexuais, transexuais (dizemos queer ) —, e igualmente sacudida pela confrontação com novos dados científicos, está mudando. Esse processo de mudança de paradigma científico e político levará ao reconhecimento, enquanto sujeitos políticos soberanos, de todo um conjunto de corpos que até agora haviam sido marcados como politicamente subalternos.

Nesse contexto de transição epistêmica, honoráveis membros da Academia da Psicanálise da França e da Escola da Causa Freudiana, vocês têm uma enorme responsabilidade. Vocês é que sabem… e cabe a vocês saber… onde querem se colocar. Se querem permanecer do lado desse discurso patriarcal e colonial — e reafirmar a universalidade da diferença sexual e da reprodução sexual heterossexual —; ou entrar, conosco, os mutantes deste mundo, num processo crítico de invenção de novas epistemologias que permitem a redistribuição da soberania, o reconhecimento de outras formas de subjetividade política. [aplausos]

Vocês não podem — já, já termino… —, vocês não podem recorrer toda santa vez aos textos de Freud e de Lacan como se eles tivessem um valor universal, não situado historicamente; como se esses textos não tivessem sido escritos no interior dessa epistemologia patriarcal da diferença sexual. Fazer de Freud e de Lacan a lei é tão absurdo quanto teria sido pedir a Galileu que ele retornasse aos textos de Ptolomeu ou a Einstein que continuasse pensando com a física de Aristóteles.

Hoje os corpos antigamente excluídos do regime da diferença sexual falam e produzem um saber sobre eles mesmos. Os movimentos transfeministas, me too, ni una a menos operam uma transformação crucial. Vocês já não podem continuar falando do complexo de Édipo ou do Nome-do-Pai numa sociedade na qual as mulheres são objeto de feminicídios, onde as vítimas da violência patriarcal estão se expressando para denunciar seus pais, seus maridos, seus chefes, seus namorados; onde as mulheres denunciam a política institucionalizada do estupro; ou onde milhares de corpos saem às ruas para denunciar as agressões homofóbicas, e os assassinatos, quase cotidianos, de mulheres trans, assim como as formas institucionalizadas de racismo.

Vocês já não podem continuar afirmando a universalidade da diferença sexual e a estabilidade das identificações heterossexuais e homossexuais numa sociedade onde é legal mudar de sexo, onde é possível se identificar como pessoa de gênero não binário; numa sociedade em que já há milhares de crianças nascidas em famílias não heterossexuais e não binárias. Continuar praticando a psicanálise utilizando a noção de diferença sexual, e com instrumentos críticos como o complexo de Édipo, seria hoje tão aberrante como pretender continuar navegando pelo universo com um mapa geocêntrico ptolemaico, ou negando as mudanças climáticas, ou afirmando que a Terra é plana. [aplausos]

Hoje em dia… — eu sei, já vou terminar bem rapidinho —, hoje, meus amigos psicanalistas, é mais importante escutar os corpos excluídos pelos regimes patriarcais coloniais do que reler Freud e Lacan [burburinho]. Não se refugiem junto aos pais da psicanálise. A obrigação política de vocês [aplausos] é cuidar dos filhos, não legitimar a violência dos pais. Chegou a hora de botar o divã na praça e de coletivizar a palavra, de politizar o inconsciente.

Nós já estamos enfrentando uma nova aliança necropolítica do patriarcado colonial e de novas tecnologias farmacopornográficas. Sem dúvida nenhuma, já estamos confrontados a uma farmacolonização crescente das ditas patologias psiquiátricas, uma mercantilização das indústrias de cuidado.

[alguém chama: “Paul!”]

É, acho que é para eu parar.

[risos, aplausos]

Uma última coisa: eu penso que a tarefa que nos resta por fazer é começar um processo de despatriarcalização, deseterossexualização e descolonização da psicanálise [aplausos] (…) uma psicanálise mutante à altura dessa mutação de paradigma. Talvez somente este processo de transformação — por mais terrível e desmantelador que lhes possa parecer — mereça hoje, de novo, ser chamado de “psicanálise”.
[aplausos]



UMA RESPOSTA A PAUL B. PRECIADO [14]



DENISE MAURANO [15]



QUERIDOS SR. PAUL PRECIADO E SEUS APLAUDIDORES

Começo essa comunicação agradecendo o estímulo que me foi dado pela conferência do Sr. Paul Preciado ocorrida nas Jornadas da Escola da Causa Freudiana na França e difundida na internet, para tecer esses comentários que partilho agora com vocês.

Sinto informar que somos todos Pedro Vermelho, ou somos todos descendentes diretos desse macaco que como Sr. Preciado mencionou, é o personagem da história criada por Franz Kafka em 1917 para explicar às autoridades científicas quais danos lhe trouxeram sua captura e o consequente esquecimento de sua vida de animal, em prol de sua humanização e aprendizagem da linguagem. É verdade que de modo algum isso nos trouxe liberação, mas encarceramento. A humanização realmente não é uma história de liberação seja na Europa ou onde for. A subjetivação, com todas as identificações que ela comporta, sejam bem-vindas ou mau-vindas, é um enjaulamento. Portanto, é desse inelutável lugar de encarceramento que me dirijo a vocês. É num jogo de alienação e separação que vamos cavando espaço para respirar.

O regime da diferença sexual com o qual trabalha a psicanálise diz do modo como apreendemos simbolicamente o que vigora na natureza e que em última instância nos é inapreensível. É a constatação de diferenças que nos permite reconhecer o que há. Se algo jaz na mesmidade, nem o notamos, é indiferente para nós. Não causa pathos, espanto, não merecendo, portanto, nosso olhar. É pela comparação, inclusive dos corpos, que fazemos distinções e entramos no exercício de tentarmos nos situar, buscando referências que malgrado nos enjaulem, nos permitem ainda assim identificações protetivas, estratégias de invenção de sentido, onde no real não há sentido algum. Se há aí algo que possamos chamar nesse regime da diferença sexual de heteronormatividade, é importante que se saiba que esse hetero, caro sim à psicanálise, deve remontar à origem grega do termo. Ou seja, a psicanálise preserva o exercício da diferença, preserva a ideia do outro, do desigual, no centro de nossas reflexões e de nossa prática clínica. E isso não se dá, ou pelo menos, não deve se dar para privilegiar uma prática sexual em detrimento das outras, ou para determinar padrões de escolhas de objeto e muito menos para privilegiar um sexo em detrimento do outro.

Se acontece de fazerem isso, é porque se confundiu alhos com bugalhos. Ou porque se colocou a pobre da psicanálise a serviço da caretice conservadora que a descaracteriza completamente. Isso não faz jus à Freud, Lacan, ou qualquer um dos grandes.

Se a presença ou ausência de pênis, na comparação dos corpos põe, desde cedo, o psiquismo para trabalhar, tentando dar um sentido à diferença, e se diferentes culturas desde os seus primórdios relacionam a plena fertilidade da natureza com a ereção, isso talvez se justifique pela fascinação que faz com que o símbolo fálico, que enquanto tal não pertence a ninguém, funcione psiquicamente como unidade de medida de potência de um sujeito. Todos, homens, mulheres, e quem mais for, estamos em falta para com essa plena potência vital e cada um a ressignifica a seu modo. Nossa jaula humana é desaparelhada de falos, desaparelhada disso que falta para sermos supostamente plenos.

Não por acaso, Freud, para tentar figurar o que resta de insondável na configuração psíquica da diferença sexual, propõe a metáfora da atividade e passividade, relacionados respectivamente ao masculino e feminino. Desse modo, sendo todos nós homens e mulheres bissexuais potencialmente, podemos fruir da masculinidade ou da feminilidade na medida da assunção do que há de ativo ou passivo em nós no campo da sexualidade.

Nesse ponto, dando um passo além de Freud, Lacan aceita a provocação deste para pensar o que há de misterioso e de peculiar ao feminino que na disputa fálica, no âmbito imaginário poderia aparecer em desvantagem. É quando então, reconhecendo que o campo sexual é fundamental mas insuficiente para cernir o campo da existência, supõe, para além da dualidade do sexual que vigora em nós, há uma dualidade de gozos. Um, dito fálico, gozo da celebração da potência que pode tomar muitos sentidos, e dado a insuficiência desse gozo sexual, eu diria seccionado, ele supõe um outro, não fálico, ilimitado, alheio ao sentido. Gozo que ele nomeia como feminino, o avizinhando ao gozo místico, fora do sexual. Poderíamos dizer que em um se trata da possessão fálica, afirmação de si, da subjetividade, e diante do limite da subjetividade, advém a hipótese de um gozo Outro, gozo da entrega, gozo da existência, não seccionado, que pode tomar diversas vertentes, tanto celebrativas como na experiência da criação, quanto devastadoras, comparecendo como gozo do Outro invasivo e psicotizante.

Percebe Sr. Preciado, o Sr. tem razão, nem tudo é restrito à divisão sexual, binária ou não. Há uma dimensão de gozo, que transpõem em muito o que é da ordem da diferença. Mas aí, estamos num campo no qual a designação de feminino transpõe a fronteira entre os sexos. E é aí que o feminino, se apresenta como um conceito a ser melhor cernido em nosso campo, dado sua não obviedade. Por isso fazemos tantos Congressos sobre o tema do feminino, que inclusive me parece bem mais próprio do que o tema das mulheres. Mas é verdade, precisamos falar do masculino também, e das inúmeras variáveis através das quais tentamos cernir a vasta dimensão da sexualidade que extrapola em muito a dualidade sexual. Por isso é preciso que consideremos também um mais além, mais além do sexual.

Mas, voltando a questão do regime da diferença sexual, é verdade que ele também foi explorado em certos campos, e mesmo numa ampla perspectiva na cultura, como uma epistemologia política do corpo que realmente enquanto histórica e mutável, é acompanhada de ideologias diversas com múltiplas consequências muitas vezes, absolutamente nefastas e pervertidas. Uma coisa, não anula a outra. Uma diz respeito a um modo de pensar a organização psíquica sobretudo a partir das Consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, dentro da lente oferecida pela psicanálise para se ver o mundo e pensar acerca do conflito e do sofrimento humano, no exercício de fazer de si mesmo sua morada, propiciando meios de investigá-lo de modo a depreender efeitos, na melhor das hipóteses, terapêuticos.

Habitar esse estranho que é nosso corpo, não é tarefa fácil para ninguém. Não à toa o corpo, por mais que seja também fonte de prazer, é um dos fundamentos do mal-estar. Não apenas porque é sexuado, mas também porque não o escolhemos, adoece, envelhece e morre, a despeito do nosso controle. Nas estratégias para habitá-lo se descortinam, na atualidade, inúmeros recursos, dentre os quais cirúrgicos e farmacológicos. Enquanto psicanalistas não somos juízes para absolver ou condenar as opções tomadas pelo sujeito. E também nossas hipóteses diagnósticas como bem diz o nome, são hipóteses, não sentenças. E ainda, só podem ser levantadas no contexto de um processo psicanalítico em curso, servindo para que o analista, no caso, se oriente quanto ao seu modo de intervir. Isso serve a ele, não ao analisante. E é bom que se diga que para que o analista possa se emprestar a essa difícil função clínica, é preciso que ele pendure seu eu cheio de si, e de ”gênero”, na sala de espera, e compareça como “trans”, ou seja, suporte mutante de todas as investidas que o desejo inconsciente pode operar na contingência da trans-ferência.

Lidamos justamente com a dimensão traumática do sexual. Essa comparece para quem quer que seja, homo, hetero, bi, trans, e todas combinatórias possíveis. Não há sexuação que repouse sobre um jardim de rosas. Trata-se aí de secção, corte, ruptura com uma natureza na qual a harmonia ficou perdida. Daí a pertinência do conceito de castração que bem assume sua dimensão simbólica, encobrindo a dimensão radical da privação que nos toca a todos de diferentes maneiras.

Você denuncia a violência hetero-patriarcal colonialista, e é extremamente justo que o faça, sobretudo no momento dessa onda de retrocesso mundial a um conservadorismo nefasto que justamente pretende anular e penalizar as diferenças, as minorias, e pasteurizar comportamentos padrões. Assim, um discurso de militância, sobretudo agora é extremamente bem-vindo. Por isso sua coragem, sua provocação, são inspiradoras. Ainda que caiba também a ressalva de que essa militância deve ser consciente o suficiente para que não alimente a voracidade capitalista que na ânsia de alimentar a indústria farmacológica e faturar cirurgias, promova um modismo inadvertido provocando danos irreversíveis com tais manipulações do corpo, prometendo uma felicidade que enquanto humanos só a desfrutamos parcial e momentaneamente, seja qual for nossa posição sexual.

Mas é preciso que façamos uma diferença entre o que diz respeito à teoria e a clinica psicanalítica e o que diz respeito à militância política na reivindicação de reconhecimento social, jurídico, médico… relativa à liberdade de escolher dentro do possível o que cada um, “maior de idade”, pode fazer com seu corpo, seu modo de habitá-lo e de fruir dele.

É verdade que talvez a grande maioria dos psicanalistas tenham ficado tempo demais apartados da cena pública e da intervenção política. Porém, no momento que falamos enquanto psicanalistas, creio que é preciso diferenciar o que vem a ser um discurso psicanalítico imbuído de uma política própria que é afeita à singularidade da ética da psicanálise, de um discurso de militância. O discurso psicanalítico destoando inclusive de muitos ideais da cultura, é sobremaneira, prevenido quanto à fragilidade de todas as certezas, por isso trabalhamos tanto com as representações e com o que resta de irrepresentável. Um discurso de militância tem uma verdade própria a ser defendida e difundida. Cada um desses discursos tem suas pertinências e contextos específicos.

Penso, sr. Preciado, que seu discurso é bastante pertinente do ponto de vista da militância política, e reconheço nele seu valor, porém, na visão que constituí a partir de minha formação psicanalítica, o que implica minha própria análise, minha prática clinica e os estudos nesse campo, me permito dizer que sua intervenção é um desserviço à psicanálise. Ou seja, revela um desconhecimento em situar a que veio a psicanálise. É injusto para com a potência revolucionária que ela tem desde sua invenção, até os dias de hoje.





SUBVERSÕES DA LÓGICA FÁLICA - FREUD, LACAN, PRECIADO [16]



Tania Rivera [17]



Em vez de se traduzirem necessariamente em falocentrismo e normatização, não apontariam as teorias freudiana e lacaniana – especialmente com a questão da feminilidade ou da mulher – também a possibilidade de estratégias de subversão da lógica fálica?

Retomar hoje a questão da castração e do falo é necessário e urgente, mas com ela se trata, como sabemos, de elaborações extremamente complexas, que exigiriam uma releitura detida de textos fundamentais e sempre abertos à apropriação encarnada e historicamente situada de cada pesquisador. Tenho que renunciar a fazê-lo neste breve ensaio, é óbvio, e deixá-lo para um escrito mais longo. Mas arriscarei traçar aqui, no calor da polêmica lançada por Paul Preciado em Jornada recente da École de la Cause Freudienne, um rápido caminho transversal, para defender a ideia de que em Freud encontramos uma vigorosa relativização da anatomia que reduziria as questões de gênero à posse ou não-posse de um órgão, e em Lacan o convite para que se busquem modelos não-todos fálicos ou de subversão da lógica fálica.

Neste desafio, começarei relembrando algumas afirmações freudianas que podem soar surpreendentes frente a uma certa simplificação didática e normativa da teoria – ainda frequente entre nós, infelizmente – que essencializa a referência fálica de modo a reforçar o discurso hegemônico sobre a diferença entre “os sexos” e repudiar, ou mesmo patologizar, questões de gênero.

Em primeiro lugar, quero lembrar que antes de Simone de Beauvoir dizer, em 1949, que “não se nasce mulher, torna-se mulher”, em 1932 Freud afirmava que não se tratava para ele de “descrever o que é a mulher”, mas sim de “examinar como ela se torna mulher”, a partir da criança bissexual (Freud, 1961/1932, p. 124). Como bem sabemos, em psicanálise a anatomia não basta. Para ser mais exata, Freud chega a desconfiar dela, a relativizá-la e mesmo subvertê-la de modo bastante radical, como no trecho em que afirma que a própria biologia apontaria para o fato de que “partes do aparelho sexual masculino encontram-se também no corpo da mulher, ainda que em estado atrofiado” e vice-versa, e isso indicaria a existência de uma “dupla sexuação (Zwiegeschlechtigkeit), uma bissexualidade, como se o indivíduo não fosse homem ou mulher, mas os dois a cada vez, ainda que ele tenha muito mais de um do que de outro” (Ibid., p. 121).

Sem nos esquecermos que a teorização freudiana está marcada pelo momento histórico em que se inscreve, e portanto não deixa de ecoar alguns estereótipos de gênero vitorianos, talvez devamos mesmo considerar a psicanálise, sem exagero ou benevolência, como a primeira teoria a subverter com vigor o determinismo biológico, especialmente na esfera da vida sexual e da própria concessão de sexualidade. Se a anatomia toma nela papel importante e Freud chega a parafrasear Napoleão para afirmar que ela “é o destino”, é como terreno de equivocidade, mobilidade e construção processual. Masculinidade e feminilidade estão nela apresentadas como problemas, e sua distinção não se resolve pelo recurso literal à anatomia, nem pela adesão cega às “convenções”, aos estereótipos que supostamente as caracterizaria do ponto de vista psicológico (Ibid., p. 122).

Não surpreende, portanto, que o psicanalista considere que “masculino e feminino se misturam (vermengt) no ser individual” e o modo como o fazem “está submetido a flutuações consideráveis” (Ibid., p. 121). Tais flutuações não se referem apenas à proporção de cada um desses fatores (em si tão mal delimitados) em cada indivíduo, mas também à possibilidade de que esta se altere ao longo da vida. Freud termina tais argumentos concluindo, taxativo, que “o que determina a masculinidade ou a feminilidade é um caráter desconhecido, que a anatomia não pode apreender” (Ibidem).

Não se trata, assim, de conceder de saída ao pênis – ausente ou presente – o lugar de fator determinante para caracterizar “masculinidade” e “feminilidade”. As elaborações freudianas desestabilizam qualquer naturalização das posições de gênero, e quando lidam diretamente com “a diferença anatômica entre os sexos”, não hesitam em misturar as cartas, ao falar, por exemplo, de uma “posição feminina” ocupada pelo menino em relação ao pai. Trata-se sempre de pôr em jogo e em flutuação esses significantes, e não a ceder à simples equação entre posse do pênis e masculinidade (Freud, 1961/1924). Aliás, Freud ataca o próprio postulado da distinção entre os sexos com a ideia de mistura ou confusão ( Vermengung) apresentada no trecho acima citado, e dá seu golpe final com a postulação de uma “bissexualidade” constitutiva e universal. Apesar de a ideia de “bissexualidade” hoje soar bem mais restrita, creio que devemos levá-la a sério em seu caráter de indeterminação, de abertura de um leque infinito de possibilidades de “flutuação” e “mistura” – ou seja, de construção sexual e de gênero – para cada um de nós.

Do corpo anatômico, de fato, a teoria freudiana de saída desloca-se para o “grande enigma da sexualidade”, como Freud o nomeia em 1937, articulando-o aliás a um “repúdio da feminidade” que seria um dos principais obstáculos ao término de uma análise (Freud, 1961/1937, p. 99). Mas tal enigma está presente desde cedo em sua teoria, e pode ser caracterizado como aquilo que a fala e o corpo dos outros – seu gozo – transmite e ressoa no corpo da criança, levando-a a fazer das pulsões, outra coisa: narrativas, ficções estruturantes, fantasias. Tomada por sua pulsação a criança age, inventando teorias sexuais infantis que a conformam ao oferecer as linhas de força do desejo (Freud, 1961/1908). Uma dentre estas teorias – apenas uma, no meio de outras, como a teoria cloacal e diversas variantes para como se dá o coito, a concepção e o nascimento dos bebês – é a da posse universal do pênis. E é como desdobramento desta que virá se inscrever outra: nada menos do que a castração, ou melhor, que leva ao temor de vir a perder este órgão particularmente investido pelo narcisismo (Freud, 1961/1925), que se apresenta como apêndice virtualmente destacável e possui a curiosa propriedade de ganhar e perder volume.

Diante do enigma do sexual – ou melhor, habitados por ele – somos tomados pela tarefa de inventar teorias sexuais, fazendo do corpo, pensamento. O livre curso de tal transformação do gozo em teoria é inclusive, segundo Freud, a condição para que se possa pensar, ao longo da vida, e sobretudo pensar inventivamente, com autonomia. Ele não deixa de ser, portanto, o motor da própria teoria psicanalítica, assim como, e em igual medida, das teorias biológicas a respeito da diferença anatômica.

Todas as teorias sexuais – e de gênero – são portanto ficções, fantasias no sentido forte que a psicanálise dá à palavra: o de conformações do desejo que constroem realidade, e não o de inverdades, ilusões que a esta se oporiam. E a recíproca é verdadeira: toda teoria, toda reflexão, é sexual, na medida em que repõe em jogo a linguagem, para inscrever nela o gozo do corpo. Toda reflexão é sexuada e encarnada, no sentido em que nela o teórico ocupa um lugar singular, fornecendo apenas um ponto de vista no contexto de uma cena complexa, na qual outros lugares podem ser ocupados de modo a conformar outras perspectivas. Mas não se trata de defender, com isso, um mero relativismo, ou um jogo de alternância entre posições complementares, mas sim de tentar analisar – ou seja, quebrar – construções que tendem a se apresentar na teoria como universais. Pois, como ensina a arte e a literatura, toda cena é estruturada pela marcação de um ponto de vista e de um ponto de fuga que fornece os alicerces simbólicos de sua montagem imaginária, e o deslocamento de tais posições altera significativamente a própria cena. Podemos, nesta linha, apostar no delineamento de diversos “pontos de vista” ocultos sob a montagem hegemônica e inscritos em linhas de força que se entrecruzam e se põem em jogo entre nós.

A teoria da castração o mostra muito bem: nela a posição de Freud é sobretudo aquela do menino que, tomado pela fantasia da posse universal do pênis, aguarda o encontro com o corpo feminino como revelação da castração. É em suas elaborações sobre o fetichismo que encontramos a descrição mais exata dessa cena, na qual é dado à mulher o lugar de território da inscrição da falta (Freud, 1961/1927); ou melhor, de efetivação da ameaça de castração, na medida em que a relação do menino com seu pênis biológico é marcada, de saída, por uma descontinuidade: “o membro que ele tem em tão alta estima não vai necessariamente junto com o corpo”, como diz o psicanalista (Freud, 1961/1932, p. 133).

Se o menino se assegura de sua posse de um pênis (da propalada “diferença sexual”) diante do corpo supostamente castrado da mulher, é justo na medida em que se confirma que ele pode vir a perdê-lo – ou seja, que não o possui plena e indubitavelmente. Mesmo assim, ele pode aferrar-se à ideia de que o teria, confundindo o concreto com o simbólico, e buscar reafirmá-lo, ao longo da vida, apoiando-se imaginariamente em significantes fálicos oferecidos culturalmente – e, eventualmente, em certa misoginia. Essa teoria seria, grosso modo, aquela do chamado falocentrismo.

Mas devo acrescentar que, além de encarnação da falta, o lugar que tal ponto de vista dá à mulher possui uma outra face, um outro lado da mesma moeda: a ereção do corpo feminino em fetiche. Parte deste corpo, ou ele inteiro, pode tomar o papel de substituto do pênis que falta. Tal objetificação da mulher implica uma forte idealização segundo parâmetros oferecidos culturalmente, é claro, mas sua outra face é aquela da agressão, da violência, como bem apontam os pés mutilados das mulheres chinesas trazido por Freud como exemplo de fetiche.

Esta cena é organizada segundo um esquema perspectivo no qual ao ponto de vista do menino, diante da imagem, corresponde linearmente o sexo da mulher como ponto de fuga. Esta linearidade seria a estrutura de base da lógica fálica, ao estabelecer uma relação direta e centralizada entre o ponto de vista encarnado pelo menino e aquele encarnado pela mãe. Nesta organização simbólico-imaginária da fantasia, cabe à mulher ocupar o lugar da mãe “castrada” e/ou erigida em fetiche, ou assumir tal lugar como “seu” ponto de vista – mas apenas para complementar, tomada pela estrutura fálica, aquele do menino, confirmando a suposta posse masculina do pênis. Só lhe resta então invejá-la e reivindicá-la, ou para ela buscar substitutos como um bebê, a posse vicariante do órgão de seu homem ou de seu filho, etc.

Mas não se poderia pensar em outras estruturações desta mesma cena? Em outras possibilidades de localização do ponto de vista e do ponto de fuga? Vou avançar aqui o que me parece ser uma dessas possibilidades: posicionar o ponto de vista não em centralidade, como o do menino, mas lateralmente, como faz a construção anamórfica do quadro de Holbein comentado por Lacan no Seminário XI. Ao nos posicionarmos no ponto diante desta cena, vemos algo de contorno fálico a flutuar, mas se nos deslocarmos lateralmente e o olhamos transversalmente, ele revelará uma quimera que busca revestir de poder a castração – a morte, em última instância – a que estamos todos submetidos. Por este engenhoso dispositivo de representação, subverte-se e critica-se a própria cena dos embaixadores vestidos e circundados de símbolos de poder. Esta montagem simbólico-imaginária corresponderia, assim, àquela que, diante do corpo da mãe, em vez de erigir apesar de tudo o pênis em significante maior (apto a sustentar a “metáfora paterna”, para Lacan) e elevá-lo a uma “magnificação” (Hochschätzung é o termo usado por Freud em uma pouco conhecida conferência de 1909 sobre o fetiche (Freud, 1992/1909, p. 13)) imaginária, desconfia de sua potência e põe em questão a possibilidade de o pênis representar o falo e inscrever a relação à lei.

Aqui, a revelação não seria a da castração do corpo feminino, a sustentar a fantasia de que algum outro corpo não esteja por ela marcado, mas a do próprio órgão como mero apêndice destacável, destinado a cair ou ao menos a se desinflar, e portanto inapto para encarnar concretamente o falo – restando-lhe apenas a possibilidade de representá-lo por uma espécie de artifício, de jogo de linguagem, de metáfora. Nesta vertente, tal metáfora não se sutura (como uma catacrese), mas mostra seu caráter mal-ajambrado, um tanto forçado (como em sua redefinição por Lautréamont como o encontro entre um ferro de passar e um guarda-chuva, cara aos surrealistas que tanto influenciaram Lacan). Ainda como no quadro de Holbein, a revelação consiste no desvelamento dos símbolos fálicos como ridículos, vãos. E a cena do fetiche revira-se, de confirmação metafórica do falo em seu poder de fazer a partilha da humanidade entre aqueles que teriam e aqueles a quem falta algo, em paródia na qual se revela o artifício da postulação de tal medida universal.

O que pode faltar (e portanto sempre falta, em alguma medida) seria, segundo esta lógica, uma espécie de um pênis falso – um dildo, como propõe Paul Preciado em seu Manifesto Contrassexual.

(…) O dildo ocupa um lugar estratégico entre o falo e o pênis. Ele age como um filtro e denuncia a pretensão do pênis de se fazer passar pelo falo (Preciado, 2014, p. 75).

É inegável que as elaborações freudianas, em especial a ideia de descontinuidade entre corpo e pênis, abrem caminho nesta direção. Mas apenas o admirável Manifesto de Preciado vem, na atualidade, nos fazer salientar a possibilidade de o falo se dar como construção paródica, e não literal ou metafórica. Aliás, este livro consegue a façanha de fazer da teoria, em algumas de suas proposições “práticas”, uma construção paródica fiel a seu “objeto” (Preciado, 2014). Devo notar, contudo, de passagem, que considero equivocada sua tendência a assimilar as relações sexuais heterossexuais a um esquema hegemônico que as reduziria, em última instância, à domesticação do gozo para fins de procriação. Pois o sexual, como bem mostra a psicanálise, é sempre “perverso polimorfo”, ou seja: transgressivo.

Não tenho aqui tempo nem fôlego para pôr a proposta da parodização do falo em discussão rigorosa e consequente com a teoria lacaniana; gostaria apenas, neste rápido ensaio, de propor a ideia de que haja outras possibilidades de sexuação, outras conformações simbólicas possíveis a se explorar/modelizar, sejam elas irônicas, paradoxais etc., segundo a declinação de figuras que a linguagem nos oferece para que forjemos nela algo distinto de uma mera descrição de “fatos”, e nesta construção possamos ter lugar (ou nos movimentar entre alguns lugares).

Trata-se nesta busca, para mim, neste momento, de forjar a entrada da menina (ou, para ser mais exata: do não-menino) como ponto de vista. De tentar ativamente transformar, manipular a cena, revelando (ou melhor, construindo) outras linhas de força em seu desenho, para não se restringir às posições pré-assignadas à mulher na organização fálica. Elas são basicamente duas, e eles parecem-me delimitar (e portanto limitar) as elaborações de Freud e Lacan sobre a feminilidade.

Um desses lugares destinados à menina seria aquele ao lado do menino, a reconhecer nele uma não-ausência e na mulher (que ela deve vir a se tornar) a marca de uma ausência à qual ela pode contrapor substitutos ou procurar apagar em uma guerra entre os sexos e reinvindicações sem fim. O outro seria o de buscar encarnar o corpo da mãe, com as duas faces de objetificação que ele implica e que são descritos por Freud no final de Fetichismo: tentar salvar-se da castração ao corresponder a uma imagem idealizada e tão fálica quanto um belo carro de corrida, ou submeter-se docilmente à castração – e à agressão que a atualiza. As duas possibilidades são como duas faces da mesma moeda, as duas vertentes de uma mesma posição sacrificial na qual reverência e violência se alternam como no “costume chinês de mutilar o pé feminino e, depois disso, reverenciá-lo como um fetiche”. É como se o homem chinês, conclui Freud, “quisesse agradecer à mulher por se ter submetido a ser castrada” (Freud, 1961/1927, p. 317). Sim, devemos reconhecê-lo: na configuração do “menino”, o lugar da mulher é por princípio aquele da castração, e seu papel é o de assegurar com seu corpo, por contraste, a fantasia de que ele pode não ser castrado.

Pergunto-me se não há algo de tal “reverência” na posição de Freud diante do “enigma da feminilidade” (Freud, 1961/1932, p.120). Fazer da mulher um enigma não deixa de ser uma estratégia de circunscrição do enigma do sexual, mas ao encarná-lo na teoria, a mulher é automaticamente posicionada como a mãe cujo corpo misterioso o menino (o psicanalista) perscruta, fascinado como na cena do fetiche. Jacques Lacan, por sua vez, não parece menos perturbado diante do êxtase de Santa Teresa na escultura de Bernini, a ponto de chegar a equacionar A Mulher e A Verdade e a se colocar subitamente em cena, em seu desejo:

Eu não sei como lidar, por que não dizê-lo, com a verdade – não mais do que com a mulher. Eu disse que uma e outra, ao menos para o homem, são a mesma coisa. Isso causa o mesmo embaraço. Acontece este acidente que eu tenho gosto tanto por uma quanto pela outra, apesar de tudo que se diz. (Lacan, 1975, p. 108)

Apesar de irremediavelmente situado no lugar do menino diante d’A Verdade cifrada no corpo da mãe, Lacan reconhece que a mulher não estaria totalmente tomada pela lógica fálica, e declina tal ideia em fórmulas que põem em jogo, apesar disso, a castração: ela estaria/seria “não-toda na função fálica” (Ibid., p. 69)). Contudo, em seguida ele não deixa de “magnificá-la” de certa maneira, ao fazer dela o Outro, equacionando-a à ex-sistência e chegando no limite do misticismo ao dizer: “e por que não interpretar uma face do Outro, a face de Deus, como suportada pelo gozo feminino?” (Ibid., p. 71). A própria noção de Gozo Outro, de gozo suplementar, para além do falo, não deixa de carregar o risco de reverberar, assim, a fetichização da mulher, que inclusive implica em uma despossessão de sua própria experiência: sobre o que a faz gozar, como os místicos, ela nada saberia e portanto nada poderia dizer, segundo Lacan.

Por esta via, quase se perde algo que me parece muito mais importante: a possibilidade aberta pelo psicanalista de que a mulher possa “abordar” o falo, e não apenas ser posicionada na abordagem fálica, e que possa fazê-lo de diversas maneiras:

(…) toda a questão está aí, ela (a mulher) tem diversos modos de abordá-lo, o falo, e de guardá-lo para si. Não é porque ela está não-toda na função fálica que ela não está em absoluto nela. Ela nela está não não-toda. Ela está nela a fundo.” (Ibid., p. 69)

E quais seriam os “diversos modos” de abordar o falo? Cabe às mulheres e a todxs, hoje, a tarefa – teórica e política – de construir pensamento sobre outras lógicas possíveis – irônicas, paradóxicas, antitéticas, eufemísticas etc. –, dentre as quais a paródia ou satírica talvez sejam especialmente interessantes. E parece-me urgente que nós, psicanalistas, possamos fazê-lo de modo singular e encarnado, indo além da ideia de um Falo que reifica caladamente a Lei imutável, bem como de um misterioso e silencioso gozo Outro a cortar-nos a voz e a escrita.

BIBLIOGRAFIA
Preciado, B. (2014). Manifesto Contrassexual. Práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n – 1.
Freud, S. (1961/1908). “Über infantile Sexualtheorien”. In Sigm. Freud Gesammelte Werke. Londres/ Frankfurt: Imago/ S. Fischer, vol. VII.
_______ (1961/1925). “Einige psychische Folgen des anatomischen Geschlechtsunterschieds”. In Sigm. Freud Gesammelte Werke, op. cit., vol. XIV.

_______ (1961/1927). “Fetischismus”. In Sigm. Freud Gesammelte Werke, op. cit., vol. XIV.
_______ (1961/1932). “Neue Folge der Vorlesungen zur Einfürung in die Psychoanalyse”. In Sigm. Freud Gesammelte Werke, op. cit., vol. XV.
_______ (1961/1937). “Die endliche und die unendliche Analyse”. In Sigm. Freud Gesammelte Werke, op. cit., vol. XVI.
_______ (1992/1909). “Zur Genese des Fetischismus”. In Federn, E. & Wittenberger, G. (orgs.) Aus dem Kreis um Sigmund Freud. Frankfurt: Fischer.
Lacan, J. (1975). Le Séminaire livre XX. Encore. Paris: Seuil: 1975.







PAUL B. PRECIADO E SUA EPISTEMOLOGIA MUTANTE [18]



ALESSANDRA MARTINS PARENTE [19]
LÉA SILVEIRA [20]



Mutante é um significante central para refletir sobre o mote que orientou o discurso de Paul B. Preciado em sua conferência de abertura naÉcole de la Cause Freudienne (recentemente publicada na Lacuna – uma revista de psicanálise). Antes de mais nada, é fundamental reconhecer o vigor da instituição que lhe fez o convite. Notar que a escolha implicava criar zonas de tensões e intensos atritos, sempre bem-vindos quando a perspectiva é a de ir mais longe afetiva e intelectualmente. Não era um(a) psicanalista da casa a dirigir-se à plateia, alguém que reiterasse o conhecido feijão com arroz do vocabulário psicanalítico em belas composições gramaticais, capazes de reapresentar conhecidas posições – o que também, diga-se, não é de todo dispensável, pois num momento politicamente difícil como o que estamos vivendo globalmente, temos de rememorar e reinscrever frequentemente o que orienta eticamente a prática e a escuta psicanalíticas e o pensamento articulável em torno delas. Em todo caso, a decisão de convidar Paul B. Preciado demonstra a força a partir da qual a psicanálise se faz viva e aberta aos desdobramentos simbólicos e históricos que exigem uma reelaboração teórica contínua do ofício a que se presta. A presença de Paul B. Preciado naquele contexto implicava colocar o arsenal psicanalítico à prova, reconhecer limites de seu repertório conceitual, conceder lugar de escuta ao Outro, estrangeiro ao campo e capaz de dar corpo ao que se mantém latente ou quase abafado entre nós. Tratou-se, em suma, de uma escolha distanciada de moldes narcísicos.

Por isso, a excelente escolha de convidá-lo deveria ser levada até suas últimas consequências. Invalidar subsequentemente o que Paul B. Preciado trouxe de embaraçoso para a comunidade psicanalítica é gesto menor, pouco suscetível ao que faz borrar a imagem especular das instituições e que poderia abrir importantes veredas clínicas e teóricas para todos nós. Reativar todo o repertório gramatical psicanalítico só para atacar a verdade – sempre não-toda, vale frisar – daquele dizer é, então, perder oportunidade valiosa. Sim, pois colher a verdade que porta um discurso implica estar aberto aos efeitos que ele promove, por mais incômodos que estes possam ser. Algumas mais virulentas, outras mais ponderadas, as respostas dadas por psicanalistas à crítica feita por Preciado apresentaram alguns bons argumentos. Entretanto, o que ressoa também, em grande parte delas, é um certo tom defensivo e da pior espécie. Compreendidos aqui psicanaliticamente, os mecanismos defensivos, não nos esqueçamos, são quase sempre conservadores. Revelam, como se sabe, uma insistência em velhas soluções de compromisso, ineficazes para abarcar o que vibra de inédito nos percursos desejantes.

Pedro Vermelho, o macaco kafkiano, é um mutante. É com ele que Paul B. Preciado se identifica ao performar sua posição diante da plateia de membros da École de la Cause Freudienne, espirituosamente comparada à “Academia das mais altas autoridades científicas”, que aparece no conto escrito em 1917 pelo autor tcheco. Como avatar, Paul B. Preciado mostra os ranços normativos que ainda pairam na abordagem psicanalítica da sexualidade e, por conseguinte, da própria subjetividade. Sua verdade emerge encarnada na metamorfose visível de seu corpo-linguagem. Seu desejo não está apenas impresso nos significantes que emprega, mas no caráter mutante que assume seu corpo-linguagem.

É certo que sempre existirá o argumento da materialidade ou corporeidade da linguagem ou da inexistência de um corpo que esteja destituído das marcas linguísticas. Não se trata de acionar, por conseguinte, a dicotomia corpo/linguagem ou natureza/cultura. Trata-se, isso sim, de escutar as bases sobre as quais se sustentam sua linguagem. A célebre frase de Lacan em Aturdito, “que se diga fica esquecido por trás do que se diz naquilo que se ouve”, aponta já para o fato de que o dizer, demonstrável por escapar ao dito que se ouve, tem a capacidade de complexificar e enriquecer a noção mais contemporânea de “lugar de fala” . O real que comanda a verdade da enunciação de Preciado não foi colonizado pelos moldes identitários, como muitos psicanalistas insistiram em sugerir. O real de seu dizer está entranhado em cada pedaço de sua carne tecnológica e farmacologicamente modificada, em cada órgão transfigurado, em cada palavra vociferada pelos efeitos fármaco-hormonais. Trata-se de um dizer trans não apenas pelo fato de o portador daquelas palavras ser concretamente um homem trans, mas pelo fato de que sua transmutação subjetiva é ela mesma uma incisão cirúrgica de caráter revolucionário em termos políticos e epistemológicos. Uma política interseccional que emanará de uma conjunção de vozes oprimidas até transfigurar o colorido, o tom, a forma e a estrutura de todas as bases nas quais ainda nos apoiamos. Sim, pois – e agora voltamo-nos à crítica feita por ele à psicanálise – ainda apelamos ao universal e operamos pela sua lógica que, como disse Lacan, sempre se nega em cada expressão singular. O contorno universal – pensado tradicionalmente pelas vias da Lei paterna – é o que dará condições ao sujeito de assumir uma expressão singular, que escapará daquela universalidade, mas que só a partir dela se constituirá.

Embora a tensão dialética entre universal e singular também se faça presente no discurso de Paul B. Preciado, toda sua estrutura materialmente mutante propõe outra lógica. Sua voz metamorfoseada vibra para compor-se com outras vozes mutantes, mostrando que o dito e o dizer do inconsciente podem mais do que Freud ou Lacan pensaram. Embora suas críticas tenham sido contundentes, Paul B. Preciado não fez da crítica à Lei que orienta as instituições de psicanálise seu alvo principal. Seu dizer emanado de seu corpo trans já carrega novas ferramentas, concede corpo a outra epistemologia. Não é uma provocação sobre a falta de democracia das instituições psicanalíticas que está em jogo quando ele afirma: “não sei se vale a pena que se diga também bom dia a todos aqueles que não são nem damas nem cavalheiros, porque creio que não há entre vocês alguém que haja renunciado legal e publicamente à diferença sexual e que tenha sido aceito como psicanalista”. Fosse este o caso, bastaria proceder a um programa de inclusão de minorias. Entretanto, o que a ausência completa de corpos trans ou queer numa plateia inteira de psicanalistas revela é a inexistência de ferramentas hoje imprescindíveis para pensar rumos civilizatórios alternativos aos estabelecidos pelos pilares patriarcal-heteronormativo e colonizador-europeu. Tais ferramentas não são trazidas apenas numa liberdade discursiva do desejo. É necessário que o corpo que se movimenta por este mundo e a linguagem que atravessa a carne do sujeito também estejam impregnadas de tais transfigurações.

Ainda que a psicanálise seja um saber que coloque em suspensão alguns fundamentos patriarcais, não seria muito honesto negar que a epistemologia psicanalítica se rende a tais rudimentos carcomidos. O pensamento em torno da noção de complexo de Édipo possui, de fato, em Freud, fortes conotações patriarcais. É ao dado anatômico que Freud remete a possibilidade de fazer uma travessia do complexo de Édipo que seja compatível com as tarefas éticas e estéticas implicadas na cultura e, por conseguinte, no campo do que pode ser tomado como público. Não é, contudo, à perpetuação do patriarcado que se resume o pensamento envolvido no complexo de Édipo. Em seu coração situa-se o desejo diante do caráter traumático da sexualidade, da ruptura inerente ao fato de que falamos e da necessidade, experimentada pela criança, de tomar alguma distância com relação a seus primeiros objetos de amor, construídos e apropriados numa profunda relação de dependência. Ao estruturalizar o Édipo e pensar funções em vez de indivíduos, Lacan avança em relação a uma desnaturalização da experiência que não apenas é mais coerente com a forma pela qual narramos nossos desejos, mas também mais rica do ponto de vista político. Trata-se de algo que também lhe permite reconhecer a interdição como um expediente de que nos valemos para lidar com o desamparo que marca a situação de vida na qual somos lançadas. Porém, o que Lacan permitiu enxergar ainda não é suficiente porque, ao caracterizar um certo gozo como masculino e outro como feminino [21] , ele preserva a equivalência entre cultura e masculinidade [22] . E é nesse sentido e nesse lugar preciso de convocar à destituição dessa equivalência – convocação que, lembremos, Preciado não é o primeiro a fazer – que, para nós, se situa a força de sua fala.

É certo que a equivalência entre cultura e masculinidade precisaria ser desdobrada. Aqui, porém, basta dizer que, para Lacan, ninguém tem o falo, exceto a cultura. Ou seja, a cultura, ela mesma, é sempre lida pelo registro fálico. Isso se expressa de modo central nas fórmulas da sexuação, propostas pelo psicanalista francês em 1973, no Seminário 20.

Se nos referimos apenas ao primeiro nível de sua escrita, vemos que elas trazem, de cada lado (lado Homem e lado Mulher), uma proposição quantificada existencialmente e outra quantificada universalmente. As universais trazem os seguintes conteúdos, respectivamente: para todo x, x é Φ (a letra grega escreve aqui a função predicativa “… ser submetido à castração”); do lado mulher: não todo x é Φ. Seguindo o léxico da lógica, tem-se, portanto, que as universais “para todo x, x é submetido à castração”; “não todo x é submetido à castração” (Lacan altera aqui o modo de usar a negação com o universal). São essas proposições universais que fazem parte, então, da distinção entre Gozo fálico (Homem) e Gozo Outro (Mulher).

Vale lembrar que, de acordo com Lacan, não há realidade pré-discursiva e, por conseguinte, os significantes ali empregados – Homem e Mulher – cumpririam funções de semblante, isto é, tais substantivos não teriam quaisquer correspondências com a anatomia ou algum tipo de caráter essencialista dos sujeitos. Grosso modo, essas formulações lógicas podem ser traduzidas nos seguintes termos comuns: a articulação do homem se dá, de um lado, pela exclusividade do Gozo fálico e, de outro, pelo conjunto de todos os homens castrados. O conjunto de todos os homens equiparáveis em sua condição de castração só pode se moldar por uma exceção à regra, isto é, por alguém que emerge num lugar fora e dentro do conjunto categorial universal – um homem não-castrado. Na psicanálise, a figura não-castrada é mítica e, portanto, inexistente. Trata-se do Pai Primevo da horda primitiva, tal como pensada por Freud em Totem e tabu [23] .

Na composição lógica da mulher, não se trataria mais do Gozo fálico, mas sim do Gozo Outro ou Gozo feminino. Foge-se aqui da lógica dialética entre conjunto ou classe categorial de todos os homens castrados (universal) e a exceção de um Pai Primevo não-castrado em seu Gozo (particular). O Gozo Outro seria, então, não-todo e giraria em torno do falo, significante primordial. Com tal articulação, Lacan supõe estremecer a noção de mulher, afirmando que “Ⱥ mulher não existe”. Para ele, tal axioma busca evidenciar o fato de que não haveria como falar d’A mulher no interior de um modelo universal, tal como vimos na formulação do conjunto de homens equivalentes na condição castrada. No caso da mulher, haveria apenas a singularidade, capaz de organizar o feminino a cada vez. Se o homem deposita na mulher uma função de objeto causa do desejo (objeto a), aquilo que o fisga e o convoca, a mulher tomaria o homem no lugar de falo. Daí advir o outro axioma lacaniano, segundo o qual, “a relação sexual não existe” – nesse desajuste não há encontro que esteja apto a formar Um.

Seria possível desmontar de diferentes modos esses preceitos que congelam logicamente certos problemas históricos e ideologicamente complicados para os atuais debates em torno da questão de gênero. A crítica mais óbvia e imediata que poderia ser formulada é: como o psicanalista francês, que concedeu lugar central à linguagem e ao impacto dos significantes para o sujeito do desejo, pode utilizar do evasivo argumento de que emprega os significantes Homem e Mulher quase aleatoriamente, visando tratar de diferentes posições do sujeito? De todo modo, independentemente de quem as viva – Homem, Mulher, Trans, Bissexual, Intersexo, Queer, Gay, Lésbica –, ambas as modalidades de Gozo – o fálico e o Outro – são formulações abstratas que reiteram, sim, a subdivisão binária do patriarcado. A crítica de Preciado não atinge, por conseguinte, apenas corpos héteros, mas a reprodução dos velhos moldes de poder e de Gozo que ocorrem dentro desses registros lógicos nas mais variegadas formas de semblantes. Seguindo por aí, outra crítica incontornável é a já mencionada correspondência entre falo e cultura ou, em termos mais precisos, o fato de que, para Lacan, só a cultura tem o falo. Ora, não existe aí outro fundamento para a articulação que ele faz entre o falo, pela via da castração, e o termo “todo” a não ser o próprio fato contingente (que, portanto, não se deduz) da prevalência histórica do patriarcado. As coisas se passam aqui como se Lacan transformasse uma contingência histórica em necessidade lógica.

Por isso, é decisivo para a psicanálise, hoje, conseguir enxergar e encontrar formas de lidar com a tarefa que Preciado nomeou como “despatriarcalização”. De um lado, disso depende sua sobrevivência. De outro, essa sobrevivência é fundamental porque fazer de conta que a divisão da subjetividade não existe corresponde talvez aos piores dados de partida e às mais indesejáveis formas de fazê-la operar.

Alheio a esse engessamento lógico que reitera modelos patriarcais e à ideia de que a inexistência de realidade pré-discursiva implique necessariamente a ausência de corpo-carne, todo ele, entranhado de linguagem e técnica, Preciado carrega na materialidade transfigurada discursiva e tecnologicamente nem um homem, nem uma mulher, mas sua condição mutante ou trans, portando uma verdade Outra, que escapa às regras daquela lógica constantemente torcida para manter alguns de nossos velhos lugares.







RESPOSTA À INTERVENÇÃO DE PAUL B. PRECIADO [24]



JEAN-CLAUDE MALEVAL



Um longo comentário criticando a psicanálise, acusada de obsolescência, nunca havia ressoado na tribuna de um congresso de uma escola de Lacan antes do dia 17 de novembro de 2019. Não podemos duvidar que a diatribe de Paul B. Preciado vem testemunhar uma nova conjectura histórica.

Ele rejeita a binaridade dos sexos, considerada patriarcal, em nome de um construtivismo do gênero, que supostamente estaria mais comprometido com a modernidade. Ele ignora que a abordagem lacaniana da sexuação não é essencialista. Ela se afirma tão construtivista quanto a sua abordagem: não consideramos que o devir sexual seja determinado pela fisiologia [25]. Existem fortes identificações contrárias ao sexo biológico entre os neuróticos. E existem suplências que passam pela transexualização.

No entanto, segundo Lacan, a escolha do sexo não está aberta à infinita diversidade de gêneros. Ele a concebe como sendo determinada por uma fixação de gozo em um sintoma, ao qual ele reduz a função fálica: fixação feita “toda” pelo dito homem, e não-toda pela dita mulher. Este é um dado histórico? É o patriarcado que gera o primado da referência fálica? A hipótese de Lacan[26] o relaciona a um efeito de linguagem sobre o falasser. Mortificando o vivente, o significante produz um limite que se impõe ao gozo de cada um - parcialmente, totalmente ou de modo algum (ele pode falhar). A conexão do gozo com a linguagem, que une a perda traumática do vivente (a) e sua cifragem significante (S1), constitui o que Lacan designa como a função fálica em seu último ensino [27]. Embora de maneira diferente, ela vale tanto para o homem como para uma mulher. Ela é própria ao falasser qualquer que seja a conjuntura social na qual é construída[28]. No entanto, ela leva a abordar o gozo, destaca Jacques-Alain Miller, "pelo lado onde ele é interditado"[29]; enquanto P. B. Preciado o gostaria ilimitado.

Considerando que "a pornografia diz a verdade da sexualidade" [30], P. B. Preciado postula, escreve Sophie Marret-Maleval, um corpo gozante "capaz de escapar da influência do significante", que o leva a "visar a correlação entre verdade e gozo", na busca pela "desalienação total" [31]. A existência de um corpo biológico natural, não tocado pela linguagem, está no início de suas hipóteses; a partir de então, ele o concebe aberto a todas as construções possíveis. Na sua perspectiva, ele mesmo, hoje Paul, Beatriz ontem, o gozo é mal limitado por escolhas identitárias, voluntárias, temporárias, reversíveis e estendidas ao infinito. Por outro lado, segundo Lacan, existe um limite com o qual é preciso compor. Na época do Outro que não existe, fica claro que esse limite não é determinado por uma ordem simbólica. O modo de gozo, para a maioria dos sujeitos, se encontra restrito e limitado por uma captura contingente e singular a um significante. Disso resulta uma constatação: um modo de gozo próprio a cada um. Uma das conclusões mais seguras do passe, já esclarecida por Lacan, revela a produção de "esparsos disparatados"[32] e desfaz a ilusão de uma travessia comum.

A diatribe de P. B. Preciado certamente se baseou em uma leitura rápida de Lacan, que tendia a congelar sua abordagem em um binário da sexuação; no entanto, sua inserção em 2019, em um congresso de psicanálise, não pode ser considerada um evento menor. Os aplausos que pontuaram positivamente seus comentários várias vezes atestam que eles não deixaram de ecoar em um grande público. Por mais questionável que nos pareça seu discurso, ele não deixa de ter uma grande repercussão sobre os sujeitos cada vez mais numerosos que aderem a ele: ele modifica alguns de seus comportamentos e às vezes transforma voluntariamente seus corpos.

B. Preciado iniciou sua intervenção formulando questões que não devemos negligenciar muito rapidamente: quantos analistas da Escola (AE)[33] são homossexuais [34]? Quantos AEs são transexuais[35] ou transgêneros? É certo que o passe implica uma desidentificação que exclui se apresentar sob esses significantes, mas é ele compatível com esses modos de gozo? Como um analista que conhece hoje seu nó subjetivo não borromeano pode abordar o passe? Como nenhum EA até agora se apresentou assim, a escolha se reduziria para ele, em renunciar a se introduzir na experiência ou em dar uma forma neurótica ao seu testemunho? Nos dois casos, a investigação de Lacan sobre se tornar um analista sofre um abalo. Não há dúvida, porém, que no século XXI os gozos que determinam a passagem ao analista demonstram uma diversidade que vai muito além dos modos de gozo do século passado. Por que, por exemplo, uma substituição não poderia levar a isso?

A referência continuinista certamente forneceria uma solução fácil: seria suficiente no passe destacar o S1 do sinthoma sem se preocupar com as diferenças de funcionamento subjetivo. No entanto, trata-se de não ignorar a distinção entre o sinthoma "desabonado do inconsciente" [36] e aquele que, ao contrário, está articulado a ele. Até então, os passes parecem tratar apenas os últimos.

Além disso, uma discussão sobre a relevância do conceito desinthome no autismo poderia ser evocada [37]. O que o autismo tem a ver com o passe? Lembremo-nos de Jacqueline Léger, convidada da Primeira Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Autismo (CERA) [38]. Ela nos disse que, após uma longa análise, trabalhou por muitos anos como psicóloga clínica de formação analítica. Certamente ela não deu o passo para se tornar uma analista. Mas outras pessoas autistas o farão, se já não o tiverem feito. Quanto a saber se a prática de analistas não neuróticos irá se deparar com limites, a questão merece ser levantada. Seria muito ilusório, no entanto, supor que os analistas neuróticos nunca iriam se deparar com limites - se eles fossem bem analisados.

P. B. Preciado chamou nossa atenção para a estreiteza do modelo no qual o passe seria baseado. Devemos afirmar, contra a experiência, que a prática analítica é reservada aos neuróticos? Isso é pouco provável, exceto para retornar ao ato de Lacan que institui uma autorização que se baseia em uma decisão do analista. Portanto, por que limitar a investigação desejada por Lacan sobre tornar-se analista? Suas modalidades de ontem ainda são as de hoje? Não se costuma dizer que o passe não pode ser a verificação de qualquer conformidade? Levar Lacan a sério quando ele convida quem recorre à psicanálise a "alcançar em seu horizonte a subjetividade de seu tempo" [39] não implica uma renovação contínua do passe? - à semelhança por exemplo de um posicionamento acolhedor do casamento para todos. Certamente, nada proíbe um homossexual, um transexual, um transgênero, ou um autista de se apresentar a um passe, mas na prática eles não passam por ele, não o atravessam ou mesmo não o declaram. Pois o AE ainda não está obrigado a aderir a uma parte da ordem simbólica?

Uma dificuldade, no entanto, P. B. Preciado não deixou de enfatizar: os entrelaçamentos sempre persistentes da teoria psicanalítica com o discurso da psiquiatria. Como apresentar-se ao passe dando a entender que se é psicótico, perverso ou autista? Obviamente, o processo é dificultado por esses significantes. A ampliação do passe leva então à premissa de uma mutação da denominação dos funcionamentos subjetivos? Deveríamos falar de estrutura repressiva ou substitutiva? [40] Talvez seja melhor, para produzir uma ruptura mais radical, distinguir apenas entre o nó borromeano, o nó não borromeano e o nó pela borda?

Todas essas questões complexas sobre o passe e nossa terminologia hoje estão surgindo com maior força. Ainda é muito cedo para levantá-las? Mas quando chegará o momento certo? Devemos temer que elas abram um abismo? Ou devemos tentar entender melhor uma mutação já em andamento? A escolha que nos é oferecida é de sufocá-las, o que não as impediria de surgir, ou acompanhar seu progresso, sem deixar de considerá-las. Temos que ter cuidado para não deixar de ouvir a intervenção de P. B. Preciado: ele veio lembrar a psicanálise da necessidade de evolução permanente. Os modos de gozo são tributários das mudanças sociais. Também Lacan nunca para de apontar que "o inconsciente é política" [41]!





[1] Link da intervenção de Paul B. Preciado na Jornada da Escola da Causa Freudiana, França: https://www.youtube.com/watch?v=vqNJbZR_QZ4&feature=youtu.be

[2] PRECIADO, Paul B. (2019) Um apartamento em Urano (Conferência) [Trad. C. Q. Kushiner & P. S. Souza Jr.]. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -8, p. 12, 2019. Disponível em: < https://revistalacuna.com/2019/12/08/n-8-12/ >.

[3] “Também quero cumprimentar aqui todos os psicanalistas falantes de espanhol, da América Latina e da Espanha. Senhoras, senhores e, sobretudo, outros — aqueles que não são senhores nem senhores”. (N. do R., como todas as notas inseridas neste texto)

[4] KAFKA, Franz (1917) “Um relatório para uma Academia”. In: Um médico rural, 3ª ed. Trad. M. Carone. São Paulo: Brasiliense, 1994; pp. 57-67.

[5] Referência ao livro do parisiense Pierre-Henri Castel (1963-) intitulado “A metamorfose impensável: ensaio sobre o transexualismo e a identidade pessoal”. O autor, filósofo e historiador das ciências, é membro da Associação Lacaniana Internacional – ALI, e exerce a psicanálise em Paris. Cf. CASTEL, Pierre-Henri (2003) La métamorphose impensable: Essai sur le transsexualisme et l’identité personnelle . Paris: Gallimard, 2003.

[6] KAFKA, Franz (1915) A metamorfose. Trad. M. Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[7] Referência à imagem que consta no material de divulgação do evento. Cf. < www.femmesenpsychanalyse.com

[8] John William Money (1921-2006) foi um psicólogo e sexólogo neozelandês que emigrou para os Estados Unidos em 1947. Os estudos que realizou na década de 1950 foram os primeiros a oferecer subsídio científico para a hipótese de que a diferença entre homens e mulheres é uma construção social, e não algo biológico.

[9] Embora os Estados Unidos, como federação, não reconheçam os gêneros não binários, alguns de seus estados o fazem. Oregon foi o primeiro (“Huge validation: Oregon becomes first state to allow official third gender option”. Disponível em: < www.theguardian.com/us-news/2017/jun/15/oregon-third-gender-option-identity-law >), seguido por outros — como Washington, Califórnia, Nova Jersey, dentre outros.

[10] “Argentina emite por primera vez identificación sin especificar género”. Disponível em: < https://cnnespanol.cnn.com/2018/11/06/argentina-emite-por-primera-vez-identificacion-sin-especificar-genero/ >.

[11] “Australia is first to recognise ‘non-specified’ gender”. Disponível em: >

[12] Procriação (ou Reprodução) Medicamente Assistida.

[13] Conhecida vulgarmente como “barriga de aluguel”.

[14] Originalmente publicado na revista Psicanálise & Barroco. Disponível em: http://www.seer.unirio.br/index.php/psicanalise-barroco/announcement/view/145

[15] Psicanalista, escritora, membro do Corpo Freudiano (RJ), correspondente da Association Insistance (Paris) e integrante do Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras.

[16] Originalmente publicado no site Psicanalistas pela democracia, 24 de dezembro de 2019. Disponível em: https://psicanalisedemocracia.com.br/2019/12/subversoes-da-logica-falica-freud-lacan-preciado-por-tania-rivera/

[17] Psicanalista, ensaísta, professora na Universidade Federal Fluminense.

[18] Originalmente publicado na Revista Cult, 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/paul-b-preciado-psicanalise/

[19] Psicanalista, doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Ex-aluna do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

[20] Professora de Filosofia na UFLA e doutora em Filosofia pela UFsCar.

[21] https://revistacult.uol.com.br/home/libido-nao-tem-genero/

[22] https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-cartografias-da-masculinidade/

[23] https://revistacult.uol.com.br/home/totem-cartas-e-tabu/

[24] Tradução para o português por Arryson Zenith Jr.

[25] São os psicanalistas que dizem se referir a Lacan tendo uma abordagem essencialista da sexuação que fazem com que a transexualidade seja considerada “uma loucura”: segundo Frignet: “é impossível não ser um homem ou uma mulher. A essa primeira impossibilidade, se soma uma segunda: a transformação exterior e o desejo pessoal do sujeito, é impossível modificar esse pertencimento. Somente a aparência será mudada, o sujeito, queira ou não, será para ele mesmo e para os outros, um homem ou uma mulher” (Frignet H., Le transsexualisme, Paris, Desclée de Brouwer, 200, p.149 & 128).

[26] A abordagem lacaniana da sexuação, como qualquer teoria, se baseia em hipóteses indemonstráveis, isso vale também para a teoria de gênero. Invocar a experiência analítica em favor de uma, ao invés da outra, seria recorrer ao que Lacan chamou de “carta marcada da clínica” (Escritos, p. 815).

[27] “O falo é a conjunção do que chamei de esse parasita, ou seja, o pedacinho de pau em questão, com a função da fala”. (Seminário 23, p.16).

[28] Ganharíamos no século XX em acentuar a abordagem lógica da função fálicas, que a reduz a uma barra sobre o gozo operado por uma cifragem significante, a fim de destacá-la mais radicalmente de qualquer imagem peniana.

[29] J.-A. Miller, “Orientação Lacaniana, O Partenaire-sintoma” (1997-1998) lição de 18 de março de 1998

[30] Preciado, B. Testo Junkie. Sexe drogue et biopolitique. Paris, Grasset, 2008, p. 218.

[31] Marret-Maleval S. “Sur Testo Junkie. Sexe drogue et biopolitique de Beatriz Preciado”, Ornicar? 58, 2018, p. 195-198.

[32] Lacan, Outros Escritos, p. 569

[33] AE: título concedido por três anos àqueles cujo percurso e o fim da análise têm valor de ensino, ao final do procedimento do passe, instituído por Lacan, por sua vez, os passadores, analisandos ainda em análise, transmitem ao cartel do passe o testemunho do passante.

[34] No que diz respeito ao sujeito homossexual, Miller afirma que a psicanálise visa “essencialmente obter que o ideal deixe de impedir o sujeito de praticar seu modo de gozo, [...] aliviar o sujeito de um ideal que o oprime por ocasião e colocá-lo em posição de sustentar seu mais-de-gozar, o mais-de-gozar que ele é capaz, o mais-de-gozar que lhe é próprio, ter uma relação mais confortável” (Miller & Laurent, O outro que não existe e seus comitês de ética, lição de 21 de maio de 1997, publicado em espanhol). Não compartilhamos as opiniões dos psicanalistas que afirmam ser capazes de identificar o normal e o patológico, tal como Charles Melman no jornal Le monde de 01 de outubro de 2005: “Façamos uma pergunta simples, a homossexualidade constitui uma patologia? É o que psiquiatria americana hoje rejeita. Se admitirmos que ela está organizada por uma defesa contra a diferença e a alteridade, neste caso, é incontestável que ela constitui”.

[35] Quando a psicose ordinária é suplantada, por exemplo por uma transexualização bem assumida, ela constitui um dos modos de conformidade social, e nada autoriza a considerá-la como uma patologia. (ver Maleval J.-C., « Du fantasme de changement de sexe au sinthome transsexuel », Repères pour la psychose ordinaire. Paris, Navarin, 2019, p. 186-208).

[36] Lacan J., « Joyce le symptôme I », em Joyce avec Lacan, Paris, Navarin, 1987, p. 24

[37] Parece que a cura do autismo permite às vezes não liberar o S1 de um sinthoma, mas sim construir um S1 como síntese.

[38] Jornada do Centro de Estudos e Pesquisas sobre o Autismo, Paris, 10 de março de 2018.

[39] Lacan J., « Fonction et champ de la parole en psychanalyse » (1953), Écrits, Paris, Seuil, coll. Champ Freudien, 1966, p. 321.

[40] Cf. Maleval J.-C., Repères pour la psychose ordinaire, Paris, Navarin, 2019, p. 199-200.

[41] Lacan, Seminário 14, lição de 10 maio de 1967, disponível no blog Lacan em .pdf




 
 
Departamento de Psicanálise - Sedes Sapientiae
Rua Ministro Godoi, 1484 - 05015-900 - Perdizes - São Paulo - Tel:(11) 3866-2753
www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/