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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    54 Junho 2020  
 
 
CRÔNICAS DA QUARENTENA

MOSAICO DE CAQUINHOS


MARIA DE FÁTIMA VICENTE [1]


A bolha


Eu estava, naquela tarde, como observadora na retaguarda da roda. Nessa função, em tempos on-line, me apresento à entrada, retorno ao final e, no transcorrer, observo o desenrolar do trabalho e faço anotações. Sem câmera e sem microfone. Se necessário, posso intervir junto a algum participante que precise de algo, como um apoio ou uma ajuda com a tecnologia de acesso.

Já quando de minha saída aos bastidores, C., um dos participantes que é mais ou menos habitual e que parece não ter me reconhecido naquela tarde, pergunta se não sou um dedo-duro a espreitar o grupo.

A política do medo está no ar.

Como tem se tornado habitual, notícias bombásticas de Brasília, na TV, ameaçam o relativo conforto de mais um fim de semana em confinamento e ameaçam a vida mais ou menos institucional do país. Vida institucional que tem seus pesos e contrapesos em louco desequilíbrio. Mais ainda do que historicamente tem sido.

Na roda, a conversa segue tensa, ora desanimada, ora exaltada, mas continuamente densa. O ar parece rarear e as coordenadoras resgatam os sinais de vida presentes nas falas e injetam, com suas intervenções, algum oxigênio adicional, muito necessário nas circunstâncias.

É frequente e recorrente na fala dos participantes a metáfora, e a condenação, da "bolha em que vivemos". Se temos chance de pensar e falar, devemos nos envergonhar desse privilégio, pois que estamos na bolha.

Aquilo me evoca o mal-estar que me suscita a crença auto-protetora e alienadamente defensiva de que Covid só mata velhinhas e velhinhos. Uma contrariedade que sinto com a desonesta manobra de atribuir a alguns, por meio do pertencimento aos famigerados "grupos de risco", o ônus dessa realidade. Manobra que fez muitos estragos nos inícios da AIDS no mundo, há não tanto tempo, pois os grupos de risco rapidamente se tornam os intocáveis, os executáveis, os matáveis. Porque corrompem aos demais.

Contágios perigosos.

A bolha, mesmo que malvista e autocrítica, se julga a salvo daquele outro contágio.

Seríamos privilegiados e lúcidos?

Lúcidos por que privilegiados?

O inominável

Desde o início do confinamento devido à pandemia, tenho um choro estranho. Talvez tenha nascido dela. É inédito, inaudito. Não apareceu logo que o confinamento começou, mas aconteceu de repente.

Um choro que começa no meio do peito, atrás do esterno, sacode o meu corpo e ouço um guincho. Ao mesmo tempo, as lágrimas escorrem.

Na primeira vez não sabia de onde vinha nem o que era. Me espantei que fosse choro, me espantei por ser eu chorando desse jeito, um jeito que é até para além do desespero.

Toda vez que acontece, eu assusto.

Me espanto que esse choro seja meu.

Esse tal acontece de repente, sem que eu saiba qual motivação desconhecida, ou sem nome, o faz precipitar.

Não vem sozinho, parece ser instigado por algo que eu esteja assistindo.

Algo de uma cena ou imagem que me toque sem aviso.

Nestes tempos em que quase todas emoções nos chegam on-line, os olhos ficam estanhados na fixidez da tela. Esperamos avidamente entrever a densidade daquele que está do outro lado. Outro agora reduzido a uma dimensão unidimensional a qual jamais foi pensada, nem mesmo por Marcuse em seus pesadelos sobre a nova sociedade industrial. A bem dizer, pesadelos quase diáfanos quando vistos agora à distância que estamos daqueles tempos que tramavam estes. Hoje tudo é por demais transparente, ou seja, tudo é claro, duro. Sem sombra nem silêncio. Estridências.

Às vezes isso falha.

Acho que é na brecha dessa falha que esse meu insólito choro brota.

Às vezes, a brecha é a música.

Não as apresentações de Yo-Yo Ma, que são belíssimas e me comovem. Não as cantorias de Mônica Salmaso e amigues no Ô de Casas, que me emocionam e me deixam exaltada a cantar. Não, é sempre por algo menor. Uma canção cantada por alguém. Alguém cantando longe daqui, alguém cantando longe… como na canção de Caetano. Como um chamado ao final de tarde.

Pois então, acabei de chorar esse choro, meio guincho, meio urro, meio berro. Desta vez, o que me sacudiu foi uma desconhecida canção vinda da Argentina.

Assistia bem comovida e, confesso, com um pouco de inveja, ao vídeo em que o presidente argentino faz uma homenagem aos trabalhadores na linha de frente contra a propagação do vírus de 2019.

Ele está quieto e a mulher que preside a cerimônia fala. Agradece àqueles e a cada um por "ser e estar e por pôr o corpo" nessa luta. Sem anúncio nem pausa, começa a cantar.

Não conheço a canção e naquele emaranhado de sentimentos, pensamentos e emoções, mal entendo a letra. Ouço a voz na melodia.

Meu corpo "se põe" em quase movimento.

Nessa paralisia da quarentena e do traumatismo político-midiático semanal, a esse corpo resta guinchar e urrar. Aquele choro me sobrevém.

Mas, desta vez, isso evolui.

Quando, finda a canção, o presidente argentino passa a cumprimentar, respeitosamente, um a um dos trabalhadores ali presentes.

Nesse momento, vira a chave e, sob efeito desse ato, choro copiosamente. Amei os argentinos e a Argentina.

Chorei o luto do futuro que não teremos, chorei o luto do presente, e do presidente, que não temos.

Estamos vergados.

O que nos dobrou foi um Brazil?

O que nos sobrou?

A respiração artificial de Piglia

A roda vai chegando ao final e devo voltar à cena do zoom. Posso falar ou não, não há protocolos nem praxe estabelecida. Escolho falar. Digo o que a roda me trouxe. Relembro um título de Ricardo Piglia, Respiração artificial. Falo que penso que a bolha - que sofrera metamorfoses em sua perambulação pela roda - pode ser um respirador que provê respiração artificial. Que ali onde estamos há uma bolha feita de escuta, fala e aposta no dizer de cada um.

Para que a gente tenha o oxigênio adicional que precisamos.

Terminada a roda, mesmo tendo falado o que julguei que se equacionava naquele contexto, vou embora inquieta. Vou pensando no enigma de haver me lembrado desse livro nessa hora, pois do livro nada me lembro! Só o nome.

E penso em Piglia. Que morreu, não há muito tempo, de uma doença degenerativa - E.L.A. - mais ou menos lenta. E que, enquanto morria, escrevia diários. Terminava de escrever seus diários, começados aos 16 anos. Os diários de Emilio Renzi, personagem de contos e romances seus e cujo nome se formou com as partes sem uso de seu nome público. Ficção sob a forma de Diários, diários para poder fazer Ficção. E História.

No dia seguinte, Sílvia N. me pergunta se quero escrever para o boletim "sobre Piglia". Aceito. Ainda não me lembro do conteúdo do livro. Penso que o lerei outra vez, antes de escrever. E que sei pouco sobre Piglia. Só li esse livro. E assisti Coração iluminado, me lembro depois, cujo roteiro Piglia escreveu para Babenco, argentino que fazia cinema no Brasil.

Uma evocação

Aquele que fala a um bebê humano está cantando para ele, mesmo que quem fale não saiba.

Sobre isso muito escreveu Alain Didier-Weill, um psicanalista poético e muito rigoroso. É por cantar à cria que esta se torna ouvinte, depois cantante e logo, falante.

A essa operação aquele autor denominou, a partir de Lacan, invocação musical - uma sonata materna que promove identificação com o desejo de se fazer ouvir e que resultará na fala, em outro momento dos tempos lógicos da causação do sujeito.

Aquela operação inaugura a possibilidade de apelar ao semelhante, acreditando que se será escutado. Dito de outra forma, instaura a confiança que o pedido será entendido e que sua legitimidade em pedir será reconhecida. Se o pedido será atendido ou não, não é o mais importante.

Isso é possível porque uma mãe - vamos nomeá-la assim - é esse sujeito capaz de transformar em fonemas os sons caóticos que habitam o mundo do bebê, incluindo seus gritos, seus vagidos. Sobre isso escreve Jean Bergès, que marca quão substancialmente estão ligados a materialidade do corpo e o sopro da voz, como se lê em "Na criança, o simbólico é primeiro" de um de seus livros[2]. O simbólico inscrito na carne do outro materno, bem entendido. Ele afirma que a façanha civilizatória que Freud reconhece na criança com seu carretel, jogo que nomeia a ausência/presença da mãe, se enraíza nesse lugar partilhado pela mãe e a criança naquela transformação da qual os fonemas advêm. Isso cifra o caos desse gozo desvairado que guincha.

Os artistas são como essas mães, ou melhor, eles estão nesse lugar de encontro.

Assim fez Piglia com sua escrita, em toda sua obra. Ele cifrou o gozo de um país em um de seus piores momentos históricos. Dessa forma, insuflou vida nesse país.

Aquele seu livro, Respiração artificial, seu primeiro romance, foi escolhido, por cinquenta escritores argentinos, como um dos dez melhores romances da história da literatura daquele país.

Uma resenha desse livro, redigida por sua editora no Brasil, que o apresenta em edição mais recente e popular, afirma que o estilo do autor, nesse livro, mais disfarça do que mostra e que, por isso, é uma vitória luminosa sobre a repressão do pensamento, já que escrito sob ditadura.

O que o colocaria como matéria a ser decifrada, alegoria a ser entendida por bons entendedores.

Tenho pra mim que o valor desse romance não é só esse. Nem principalmente esse, talvez.

Penso que é por fazer ficção da vida diária e a partir da vida diária, fazer sua ficção, que Piglia e esse romance importam.

Pois, fazer com que a experiência seja possível, porque se a nomeia e se a torna comum por transmissão, possibilitou, a meu ver, pensar e fazer viver a História da Argentina naqueles tempos. Tempos em que o predomínio do inominável trazia em seu bojo o risco de esterilizar indefinidamente a vida vivível daquela nação. A vida diária na Argentina naqueles tempos era feita de projetos de morte. Como daqueles outros projetos, das políticas de morte nazistas que inauguraram, historicamente, a impossibilidade de narrar e que atestam a perda da possibilidade de experiência vivida.

Quando, em 1987, li Respiração artificial, soube que a História da Argentina era a minha também.

Porque somos vizinhos, porque nossas Histórias caminham próximas. Mas, principalmente porque nossos artistas nos contam, nos cantam, nos falam que desejamos que haja mundo. Eles nos ensinam a desejar o mundo.

O mundo, essa bolha de ar civilizatória que construímos juntos para enfrentar as violências e trabalhar com as fontes do mal-estar. Aquelas que estão na caducidade do corpo, na finitude da vida e na difícil convivência com o outro. Como disse Freud.

Dedicatória

Atualmente, Uruguai e Paraguai fecharam suas fronteiras para o Brasil. Os Estados Unidos da América não permitem a entrada de voos procedentes daqui. Enquanto escrevo, a situação pode ter mudado. Mais países podem ter seguido tal caminho.

Nós, os brasileiros e os residentes no Brasil, estamos a nos tornar párias, pois o risco de contágio conosco é real. Não principalmente pelo vírus, mas porque aqui, com a política de morte vigente, o risco se tornou maior e pior. Proliferante.

Acredito que muitos no interior daqueles países, e no interior dos que ainda nos mantêm as portas abertas, lamentem esse estado de coisas e sintam compaixão por nós. Espero que o lamento e compaixão deles e nossos choros guinchados e lamentos mudos se juntem e se multipliquem, que ganhem vozes e nomes, que nossas ações criem narrativas coletivas que venham a dar lastro às experiências individuais de cada um de nossos países e às experiências singulares, no um a um de cada habitante deste vasto mundo. Já fizemos isso antes. Podemos fazer de novo, o novo.

Finalmente, dedico este texto aos colegas argentinos e uruguaios do Sedes - de todos setores e departamentos - com menção especial aos colegas professores do Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise. E a Beatriz Aguirre.

Com gratidão,

Maria de Fátima Vicente



Referências bibliográficas:

Bergès, Jean. O corpo na neurologia e na psicanálise - lições clínicas de um psicanalista de crianças; Tradução Maria Folberg. Porto Alegre: CMC, 2008. (O texto referido se encontra na página 293).

Piglia, Ricardo. Respiração artificial. São Paulo: Iluminuras,1987.





[1] Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise, professora no Curso de Psicanálise, integrante do coletivo Escuta Sedes.

[2] O corpo na neurologia e na psicanálise.




 
 
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