LUDMILA FRATESCHI [1]
Tento escrever como de costume, mas algo me impede. Dou-me conta de que sempre escrevi caminhando pelas ruas da cidade, dentro da cabeça distraída, antes que no papel. Sinto saudades do meu caminho cotidiano, do bom dia aos taxistas que discutem política ou futebol, inflamados, na esquina; da troca de palavras com o seu Zé do coco e seu filho Rafa; dos fones que ponho para ouvir playlists que eu mesma monto, de cantá-las alto enquanto caminho, às vezes até incomodando os fiéis que entram na igreja. Sinto falta do posto de gasolina; de atravessar devagar o viaduto (sempre gostei de parar sobre viadutos: olhar, fotografar, sentir o vento). Da banca de flores e de me perder nos seus arco-íris. De afugentar as baratas, com nojo, na frente do cemitério. De ouvir o dedilhado mal treinado de um aprendiz ávido por comprar sua primeira guitarra dentro da loja. De descer a rua apressada e olhar nos olhos dos seguranças, que sempre sorriem e acenam com a cabeça - nunca sei se olham por mim, por si mesmos, pelos prédios que vigiam.
Mas não é só a perda do ensaio devaneado que me confunde. Não sei mais sobre o que escrever. Escuto atenta a muitas coisas, mas as articulações me faltam.
Penso se poderia falar do desastre. Não do meu, mas do verdadeiro, escancarado nos números, nos mapas, na distribuição das mortes, na negligência genocida. Não posso. Sei da tragédia, sofro por ela, mas não a experimento. Não posso ir às ruas nas quais eu sentiria seu cheiro, seu peso, onde eu a enfrentaria nos olhares dos desconhecidos. Não consigo escrever sobre a tragédia - ela estranhamente ainda não é minha, embora seja de todos nós e eu sinta que vá ser parte (traumática?) de nossas histórias para sempre.
O que experiencio é a saudade. Da rua. Do outro com quem não esbarro mais. Dos amores da vida de antes. Talvez eu pudesse escrever uma carta de amor... Sim, ridículo seria não escrevê-la! Se eu morrer, estará escrita. Se eu viver, poderá ser queimada. Amores serão sempre amáveis. Sim, uma carta de amor eu posso escrever...
Eu sei que estou bem na minha casa, que tenho muitos privilégios, que o mundo lá fora neste momento é muito mais hostil do que esse mundinho em que posso me guardar. Mas não sei bem o que fazer com a saudade do cheiro de bacon na chapa e café queimado do boteco da frente do ponto de ônibus.
É como o que sinto quando penso em você. Não sei bem o que fazer com a memória invasiva do instante de tempo suspenso, quando, depois de horas emendando assuntos de repente íntimos, rimos os dois, com os olhares colados: de nós mesmos, um do outro e um com o outro.
Sentimentos que não deveriam ter lugar: é imperativo seguir vivo, apostar na liberdade, abrir-se para um novo amor. Maldito pozinho acumulado na quina que, nem com cotonete, não sai não...
Sonhei com você hoje, de novo. Foi um sonho longo, desses em dois capítulos. No primeiro, enredava-se um desencontro. No segundo, também. A coisa é que a sensação não era de angústia, mas de uma certeza de que nos mantínhamos conectados, como num livro do Murakami em que o tempo certo é sempre o oposto do tempo da urgência. A cena final era você deitado sobre uma superfície colorida (grama? pétalas?), eu o via pela tela de um celular. Você me perguntava: "acha loucura eu ter vindo passar a pandemia na África do Sul"? Eu sorria largo e respondia que você estava lindo. Você sorria largo também e nos despedíamos com um "até já"...
Vou até a janela e olho para a rua esvaziada lá embaixo. Talvez valha, à pena, sentir saudade.
[1] Psicóloga, psicanalista, aspirante a membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.