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    JORNAL DIGITAL DOS MEMBROS, ALUNOS E EX-ALUNOS
    59 Julho 2021  
 
 
PSICANÁLISE EM PANDEMIA

VIVEMOS PRA TRABALHAR OU TRABALHAMOS PARA VIVER? O VALOR DO TRABALHO E DA VIDA

NOTAS PARA UM CURRÍCULO UTÓPICO




M. LAURINDA RIBEIRO DE SOUZA[1]




Pátria, para mim, são os homens pelos quais tenho responsabilidade
Vilém Flusser


Para celebrar o Dia Mundial da Saúde, que aconteceu no dia 7/4, formalizou-se uma parceria entre o Instituto Sedes Sapientiae e o SESC Vila Mariana. Um grupo de analistas que fazem parte do Grupo de Trabalho: Saúde, Trabalho e Direitos Humanos (GTSTDH) e do Departamento de Psicanálise (Cleide Monteiro, Eliana Pintor, Eva Wongtschowski, M. Laurinda R. Sousa e Pedro Mascarenhas), junto com a equipe do SESC responsável pelo projeto Inspirar - ações para uma vida saudável, elaboraram uma programação que se estendeu do dia 7 a 18 de abril.

Quero destacar, logo de início, como dado significativo deste evento, a importância da parceria entre essas duas instituições neste momento de tanto isolamento e precarização. A solidariedade que estabelecemos durante a organização desta programação nos permitiu formar um coletivo de trabalho e de análise dos temas que nos propusemos a discutir de forma criativa e prazerosa.

O texto que se segue é um recorte das considerações levantadas para a apresentação e mediação das mesas realizadas nos dias 7 e 14/4 e para o Psicodrama coletivo que aconteceu no dia 9/4, coordenado por Pedro Mascarenhas e por Rosane Rodrigues e Blevio Zanon, como ego-auxiliares.

Desde o ano passado, 2020, a OMS vem alertando e considerando a necessidade de se criar espaços de discussão e tratamento para os efeitos da pandemia sobre a Saúde Mental.

Certas queixas de sofrimento psíquico como a depressão, a ansiedade, o cansaço, o desgaste mental, a hipocondria, o consumo de drogas lícitas ou ilícitas, as perturbações do sono e da memória, a dor dos rituais de lutos mal vividos, têm aumentado significativamente em decorrência do isolamento provocado pela pandemia e pela ameaça incessante da contaminação e da morte.

As notícias constantes sobre o número de mortes (já estamos próximos de 500.000 mortos), a falta de insumos médicos, a lotação das UTIs, o aumento do desemprego, da fome e da violência – principalmente contra as mulheres e crianças, nos atravessam e nos deixam em estado de extremo desamparo.

As desigualdades se evidenciaram e se acentuaram. Trabalhadores antes invisíveis, ganharam visibilidade e mostraram sua importância: empregadas domésticas, entregadores, carteiros, coletores de lixo. E outros, que já eram visíveis, tiveram sua importância acentuada: trabalhadores da saúde, pesquisadores, professores.

A sobrecarga do trabalho feminino mostrou o quanto essa divisão é injusta. As escolas viveram e vivem um grande impasse – entre abrir e fechar. As crianças sofrem com a ausência dos espaços de socialização, com o tédio das aulas pela internet, com a dificuldade, em muitos lugares, do acesso à rede e com pais sobrecarregados pelo trabalho de home office.

Os adolescentes e jovens sofrem pela impossibilidade do que lhes é mais vital: o encontro grupal, a construção de uma passagem para fora do âmbito familiar, a descoberta e as experiências dos primeiros encontros amorosos, tendo como consequência, muitas vezes, as atuações em saídas inconsequentes.

Tudo isso se acentua quando assistimos ao negacionismo praticado pelas autoridades que estariam na função de proteção e defesa de nossas condições de vida, com a falta de coordenação sanitária, com o desrespeito ao que já estava formalizado na consolidação do Estado Social de Direito.

É preciso dizer que a precarização da vida é anterior ao surgimento da pandemia. A expansão do neoliberalismo construiu uma forma de existência marcada pela figura do empreendedorismo, do individualismo e da concorrência. A ilusão de um sujeito autossuficiente, isolado narcisicamente e assombrado pela exigência desmedida do cumprimento de metas e ideais, corrói as possibilidades da cooperação e da solidariedade.

Embora a pandemia tenha tornado evidente a necessidade de construção de uma outra forma de habitar o mundo, práticas que incluem o social, o coletivo, o comum, vão se tornando cada vez mais esgarçadas e distantes do que seria um mundo mais saudável e mais justo, como preconizado, este ano, pela Organização Mundial de Saúde.

Desde o início do século passado, consideraram-se como direitos fundamentais o direito à moradia, ao trabalho, ao lazer, à saúde, à educação e à seguridade social.

Haveria que incluir, também, um outro direito, defendido por Antonio Candido (1988), que é o direito à literatura e que pode ser estendido a toda espécie de arte. Para ele, a escrita literária tem um sentido humanizador e organizador sobre nossa mente e sobre o caos. “Quer percebamos claramente ou não, o caráter de coisa organizada da obra literária torna-se um fato que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos” (p.179).

Mas, há um direito fundamental que está na base de todos os outros que é o direito a uma vida digna.

Segundo a constituição brasileira de 1988, a existência digna está diretamente relacionada à valorização do trabalho.

Então, um dos desafios que temos é o de apontar caminhos para que essas determinações constitucionais possam de fato se tornar realidade e avaliar o quanto e se isso será possível.

As transformações recentes sofridas pelas condições do trabalho e as mudanças provocadas pela pandemia têm agravado significativamente essas perspectivas. No entanto, o desafio nos convoca e para isso é necessário que possamos aprofundar nosso olhar sobre a realidade do presente e abrir espaços para uma fala coletiva, uma fala de troca e de hospitalidade às diferenças. O futuro só se anuncia se podemos avaliar com olhar crítico o que acontece em nosso presente.

Iniciei este breve ensaio partilhando com vocês uma frase de Vilém Flusser, filósofo que nasceu em Praga e veio para o Brasil em 1941, fugindo do nazismo. Radicou-se em São Paulo onde viveu por 20 anos tornando-se professor na USP, jornalista e escritor. Foi um dos pensadores do mundo da tecnologia abordando precocemente, já nos anos 80, a ideia de uma comunicação em rede. Ele, que viveu situações extremamente difíceis e teve todos seus parentes mortos em campos de concentração, transformou o exílio em uma prática de conquista e liberdade.

Se resgatei, de seus escritos, esta frase é porque ela me parece apropriada para o momento que vivemos e se contrapõe ao individualismo egocêntrico contemporâneo, à xenofobia, a todas as formas de exclusão, e à ameaça da melancolização.

“Pátria, para mim, disse ele, são os homens pelos quais tenho responsabilidade”. Esta frase é um convite à solidariedade, à amizade e a uma ética marcada pelo cuidado de si, pelo cuidado com o outro e pelo cuidado com o ambiente em que vivemos.

Ouvi, em noticiário recente que comentava os índices de desemprego e desalentados (cerca de 20 milhões de pessoas), uma entrevista com um jovem que não tinha acesso à internet. Além de comentar as dificuldades por não poder acompanhar a escola, tinha, também, a impossibilidade de conseguir um trabalho, pois não podia enviar seu currículo às possíveis empresas que o contratariam. Ele é mais um dos que fazem parte da geração sem acesso à escola e ao trabalho.

Sensibilizada por esse depoimento e pela convocação de Vilém Flusser, lembrei-me do poema de Wislawa Symborska, “Escrevendo um currículo”. Nesse poema, ela faz a denúncia de um mundo anônimo, formal e dessubjetivante. Inspirada por ele, decidi construir uma outra proposta de currículo, um currículo utópico. É meu desejo que ele possa ser partilhado como um convite a outra forma possível de habitar o mundo.

Para escrever um currículo utópico:

O que é preciso?
Nada é preciso.
Faça por gosto, por prazer
Como se fosse escrever a um amigo
Um amigo à espera de suas palavras

Diga das paisagens que encontrou
Dos lugares que conheceu
Dos encontros que teve.

Escreva como se falasse consigo

Fale de seus sonhos, de suas viagens
Das que fez,

Das que imaginou
Das que fará.

Fale das coisas que aconteceram
e que não eram para acontecer
Do que era para ter sido e não foi.

Das injustiças que viu, das dores que partilhou
Dos que tinham o direito de viver e partiram.

Acrescente uma foto do mundo
Onde caiba o latido dos cães,
o miar dos gatos,
o canto dos pássaros
O som da água nas corredeiras,
o farfalhar do vento nas florestas.

Tudo isso falará de você e será o seu currículo.

Coloque-o no correio endereçado
“a todos que queiram habitar o mundo de uma outra forma”.

Você poderá escutar, quem sabe,
A diversidade dos dialetos e cantos humanos.
Assim seja!


Referências bibliográficas:
Cândido, Antonio (1988). Vários escritos. Rio de Janeiro: Edit. Ouro sobre azul, 2011.

Szymborska, Wislawa. Poemas. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

Nota: As falas da mesa do dia 7 - “Vivemos para trabalhar ou trabalhamos para viver? O valor do trabalho e da vida”, podem ser acompanhadas pelo YouTube no Portal do SESC Vila Mariana: https://www.youtube.com/watch?v=gMZ1JerzmGo.




[1] Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora no Curso de Psicanálise.




 
 
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