MARA CAFFÉ[1]
A mesa Punição e impunidade reuniu dois ângulos fundamentais e complementares na lida com os efeitos sinistros de uma ditadura civil militar, através das apresentações do jurista Belisário dos Santos Jr. e do psicanalista Paulo Endo.
Dando início, Belisário comentou o processo de domesticação da cidadania pelos regimes totalitários, os modos de reprodução da impunidade e os diversos dispositivos jurídicos de reparação aos sujeitos atingidos pela violência política de Estado. Tal esclarecimento é de grande importância para nós, psicanalistas, abrindo novas perspectivas de compreensão do problema e a possibilidade de trabalhos fecundos em colaboração com o direito. Nesse sentido, as Comissões da Verdade, conforme mencionadas por Maria Rita Kehl, e as Clínicas do Testemunho, apresentadas por Maria Cristina Ocariz e Moisés Rodrigues da Silva Junior, operam efeitos em um campo híbrido, que comporta a escuta singular de cada sujeito, através dos depoimentos colhidos um a um, e a recepção e reparação pública, através do reconhecimento jurídico do Estado. Belisário também apresentou sua posição contra a revisão da Lei da Anistia, o que poderia retardar os processos e dar margem a manobras indesejáveis; observou que já temos uma Convenção Internacional que garante pontos importantes e suficientes neste assunto.
Paulo Endo, na perspectiva da psicanálise, abordou o sonho no plano da coletividade, como porta voz da resistência política, da resiliência, do contra poder, como uma usina subjetiva e social de criação simbólica diante dos traumas da guerra, das ditaduras e dos desaparecimentos forçados. O que se abre, assim, é a possibilidade da psicanálise no trabalho com os arquivos oníricos da resistência política. Nesse sentido, Paulo mencionou o livro de Charlotte Beradt, denominado The Third Reich of Dreams, em que a autora reúne 300 sonhos de cidadãos alemães comuns na época da ascensão de Hitler. No seu conjunto, estes sonhos encenam uma forte oposição ao nacional socialismo, orquestrada na calada da noite. Através de sua pesquisa, Beradt traz à luz um exército de sonhos no combate à depauperação simbólica produzida no clima de terror do nazismo!
Relacionando as duas apresentações desta mesa, podemos pensar que a rememoração e elaboração de situações traumáticas coletivas demandam a atividade onírica no ambiente recolhido das noites de sono tanto quanto o reconhecimento e a reparação pelo poder público, no sentido da justiça social. Temos, aqui, o apelo a uma clínica multidisciplinar, onde a psicanálise possa se aliar a outras práticas institucionais, dentre elas, por exemplo, a prática do Direito.
Setembro de 2014
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[1]Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.